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Relato de experiência de um projeto de ensino dos gêneros documentário e entrevista: o quadro europeu comum de referência para as línguas como ferramenta1 1 O artigo é resultante da pesquisa de mestrado sob a orientação do Prof. Dr. José Carlos Chagas da Cunha (UFPA) - Doutor em Ciências da Linguagem pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França), professor da Universidade Federal do Pará (Campus de Belém) e bolsista de produtividade 2 do CNPq.

Experience report on a teaching project regarding the documentary and interview genres: using the common European framework of references for languages as a tool

Resumo:

Neste texto, apresenta-se uma experiência docente realizada com uma turma de 7º ano de uma escola pública de Castanhal - PA, na qual o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR) serviu de referencial para o ensino da produção de textos em língua materna (LM). A partir da análise do QECR e do conhecimento que se tinha do público alvo, elaborou-se um projeto de ensino dos gêneros documentário e entrevista e tomou-se como objeto de estudo as aulas de LM ministradas no âmbito desse projeto, o material didático nelas utilizado e as produções da turma em questão.

Palavras-chave:
ensino-aprendizagem da língua materna; QECR; gêneros documentário e entrevista

bstract:

In this paper, we present a teaching experience held with a group of 7th Grade students in a public school in Castanhal - PA, in which the Common European Framework of Reference for Languages ​​(CEFR) served as reference for teaching writing in the mother tongue. Based on the analysis of the CEFR and the knowledge that was available on the audience, a teaching project was developed regarding the documentary and interview genres; the lessons taught in the mother tongue were the focus of the research as were the teaching material used and the texts produced by the students.

Keywords:
teaching and learning of language; CEFR; genres documentary and interview

Introdução

O presente trabalho se apoia parcialmente em uma pesquisa de observação sistemática de aulas de português em uma turma de 8ª série (atualmente 9º ano) do ensino fundamental de uma escola estadual do município de Castanhal - PA. Durante essa pesquisa de campo, constatou-se, mais uma vez, que as aulas de língua materna (doravante LM) eram cansativas e desinteressantes para os discentes, por privilegiarem o ensino de conhecimentos metalinguísticos sem fazer a necessária relação com práticas sociais que poderiam torná-lo útil e motivante. Meu orientador da pesquisa de mestrado propôs então que fizéssemos uma tentativa de adotar os princípios que direcionaram a elaboração do QECR - cuja proposta original era para línguas-culturas não maternas - e a adaptássemos para o ensino de LM.

Portanto, apresentaremos o QECR e procuraremos mostrar que ele pode ser utilizado como ferramenta de trabalho no ensino-aprendizagem de LM. Em seguida, faremos um relato de experiência no ensino de LM, através do gênero documentário e também do gênero entrevista, que ocorreu em uma turma de 7º ano do ensino fundamental de uma escola estadual no município supracitado. Desenvolvemos essa experiência de ensino adotando o QECR como ferramenta de trabalho e tomando como objeto de estudo as aulas de LM, o material didático nelas utilizado e as produções da turma em questão. Por fim, faremos um rápido balanço dos resultados alcançados nessa experiência de ensino em nossas considerações finais.

1 O Quadro Europeu Comum de Referência (QECR)

O Conselho da Europa3 3 O Conselho da Europa é uma organização internacional, fundada em 5 de maio de 1949, com sede em Estrasburgo, França. Tem por objetivo promover a defesa dos direitos humanos e harmonizar as práticas sociais e jurídicas em território europeu. , visando aperfeiçoar o ensino de línguas faladas no continente, elaborou o Quadro Europeu Comum de Referência (QECR), um instrumento de padronização e qualificação do ensino de língua estrangeira, objetivando atingir uma unidade entre os países membros, uma vez que o desenvolvimento socioeconômico estava correndo o risco de ser dificultado pela falta de comunicação que as variadas línguas e culturas poderiam ocasionar.

1.1 O que é o QECR?

O QECR é uma ferramenta que fornece uma base comum para a descrição das competências necessárias à comunicação em língua estrangeira (LE), como fica claro em sua introdução:

O Quadro Europeu Comum de Referência (QECR) fornece uma base comum para a elaboração de programas de línguas, linhas de orientação curriculares, exames, manuais, etc., na Europa. Descreve exaustivamente aquilo que os aprendentes de uma língua têm de aprender para serem capazes de comunicar nessa língua e quais os conhecimentos e capacidades que têm de desenvolver para serem eficazes na sua actuação. A descrição abrange também o contexto cultural dessa mesma língua. O QECR define, ainda, os níveis de proficiência que permitem medir os progressos dos aprendentes em todas as etapas da aprendizagem e ao longo da vida (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p.19)4 4 As citações e os quadros retirados do QECR estão com sua ortografia original, ou seja, em português de Portugal. .

Desta forma, o QECR promove uma maior interação entre os países europeus, não se esquecendo da diversidade linguística e cultural, o que poderia ser empecilho para o desenvolvimento econômico dessa região; facilita a interação entre os europeus de línguas maternas diferentes, impulsionando a livre circulação, a abrangência de conhecimentos e a cooperação recíproca entre eles, eliminando os preconceitos e a discriminação; e, promove uma cooperação e uma coordenação entre suas políticas nacionais do ensino e da aprendizagem de línguas vivas.

Os professores têm sido encorajados pelo Conselho de Cooperação Cultural do Conselho da Europa a promoverem "(...) programas de pesquisa e de desenvolvimento que visem introduzir, em todos os níveis de ensino, métodos e materiais mais apropriados, de modo a permitir que diferentes grupos e tipos de aprendentes adquiram uma proficiência comunicativa adequada às suas necessidades específicas" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 22), para que haja um desenvolvimento no ensino de línguas a fim de que os cidadãos europeus aprendam em seu próprio país a se comunicar de maneira satisfatória com um estrangeiro e para que saibam transitar em outras nações sem ter problemas com uma língua e uma cultura diferentes das suas, ou seja, o ensino está realmente voltado para o uso efetivo da LE que está sendo ensinada. Os alunos não farão um curso para aprenderem simplesmente regras ou palavras soltas. Estarão sendo preparados para utilizarem essa segunda língua assim que forem solicitados.

Foi necessária a construção desse instrumento a partir de 1991, quando o governo federal suíço promoveu um Simpósio Internacional com o seguinte tema: "Transparência e coerência na Aprendizagem de Línguas na Europa: Objetivos, Avaliação, Certificação", clarificando a necessidade de se intensificar o ensino-aprendizagem de LE entre os países europeus visando uma comunicação internacional mais eficaz sem afetar a identidade e diversidade cultural. Mas, para atingir esse objetivo, seria necessário promover a aprendizagem de línguas ao longo da vida, e isso não é feito apenas em uma única instituição. Assim, era preciso desenvolver um Quadro de Referência para o aprendizado de língua que promovesse "(...) a cooperação entre instituições de ensino de diferentes países (...), [fornecesse] uma base sólida para o reconhecimento mútuo das qualificações em língua (...)" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 25) e ajudasse tanto professores quanto alunos a coordenarem seus esforços.

Como o QECR tem sido um forte aliado na qualificação do ensino-aprendizagem de LE na Europa, vimos a oportunidade de utilizar algumas de suas ferramentas para intervir na realidade tanto no ensino de língua estrangeira como no de língua materna no Estado do Pará onde nos deparamos com dificuldades como as seguintes: imposição por parte da direção e dos pais dos alunos para ministrar aulas de nomenclaturas e classificações gramaticais; livros didáticos com textos desestimulantes; turmas superlotadas (50 alunos em média); e, por que não falarmos também da falta de motivação e de criatividade dos professores para promover situações reais de interação verbal.

Percebemos que o QECR poderia nos ser de grande utilidade na tentativa de reduzir ou eliminar algumas das dificuldades apresentadas acima uma vez que está voltado para o uso da língua e não visa, portanto, somente à estrutura da palavra, da frase ou do texto, mas também ao seu lado social. Como afirma ANTUNES (2008ANTUNES, Irandé. Aula de português - encontro & interação. 6a ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.a, p. 41-42),

Se a língua-em-função apenas ocorre sob a forma da textualidade (...) é natural admitir também que só o estudo das regularidades textuais e discursivas, na sua produção e interpretação, pode constituir o objeto de um ensino da língua que pretenda ser, como se disse acima, produtivo e relevante.

Desta forma, o QECR poderia ser utilizado na elaboração de programas de aprendizagem de língua estrangeira e materna no que diz respeito aos pressupostos (conhecimentos prévios e aprendizagens anteriores), aos objetivos e ao conteúdo; na planificação da certificação linguística em termos de "conteúdo dos programas dos exames; critérios de avaliação, construídos mais em termos de resultados positivos do que com o intuito de sublinhar as insuficiências" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 25-26); na planificação da aprendizagem autodirigida incluindo a conscientização do aprendente de seu nível de conhecimento, a fixação de objetivos reais e alcançáveis, a seleção de material e a autoavaliação.

Mas, para que o QECR possa servir - evidentemente, com as adaptações necessárias à nossa realidade - de instrumento nesse ensino e nessa aprendizagem, ou seja, para que ele possa se constituir em recurso útil para a sala de aula, levar-se-á em consideração as necessidades do aprendente e seu contexto social.

1.2 Os níveis comuns de referência de uma proficiência em língua

O QECR apresenta níveis comuns para o processo de aprendizagem de uma língua, sem desconsiderar o fato de que cada aprendente é único e pode desenvolver competências em níveis diferentes de outro aluno na mesma situação de ensino. É através dessas escalas que pode ser avaliada a situação da aprendizagem e, a partir daí, que podem ser elaborados currículo, material didático, processo avaliativo etc.

Os Níveis Comuns de Referência descrevem o que cada aprendente deverá ser capaz de fazer através da língua que está aprendendo. Esses níveis são apresentados de modo diferente para finalidades diferentes, ou seja, há níveis comuns em uma escala global - que abrange tanto a fala como a escrita de maneira geral -, e há níveis que se restringem a aspectos centrais e se aplicam à compreensão oral, à compreensão escrita, à interação oral, à produção oral, à escrita, aos aspectos qualitativos...

O Quadro de Níveis Comuns de Referência5 5 Em anexo. pode orientar os professores de línguas a identificarem qual o nível de aprendizado de seus alunos e, provavelmente, pensar em materiais didáticos ou estratégias de ensino para que esse aluno eleve seu nível de aprendizado. Quando observamos esse quadro de referências, verificamos que a maioria de nossos discentes do ensino fundamental de LM ainda são utilizadores elementares ou independentes nível B1, ou seja, precisamos trabalhar para que possam galgar para o nível de utilizador proficiente.

O QECR também nos apresenta um quadro para a autoavaliação (Grelha para autoavaliação 6 6 Em anexo. ), a fim de que os alunos também observem em que nível está e aonde quer chegar, no que precisa melhorar. É interessante esse olhar autoavaliativo porque nos deparamos em nosso contexto estudantil apenas com o interesse em se obter notas e não "o que eu sei" ou "o que eu preciso aprender". Nesse quadro observamos uma autoavaliação de habilidades e competências dentro de uma língua para a leitura e produção oral e escrita. Seria muito interessante se nós, docentes, trabalhássemos com a visão de avaliação e autoavaliação, pois nossos alunos teriam a consciência crítica do que sabem fazer dentro de sua língua e o que deveriam saber-fazer.

1.3 A abordagem adotada pelo QECR

O QECR volta-se para o uso de uma língua, detendo-se nas tarefas realizadas pelos seus usuários, pois estes,

(...) como indivíduos e como actores sociais, desenvolvem um conjunto decompetências gerais e, particularmente,competências comunicativas em língua. As pessoas utilizam as competências à sua disposição em vários contextos, em diferentescondições, sujeitas a diversaslimitações, com o fim de realizarem actividades linguísticas que implicam processos linguísticos para produzirem e/ou receberem textos relacionados com temas pertencentes a domíniosespecíficos. Para tal, activam as estratégias que lhes parecem mais apropriadas para o desempenho das tarefas a realizar. O controlo destas acções pelos interlocutores conduz ao reforço ou à modificação das suas competências (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 29, grifos do autor).

Limitando aos conceitos utilizados em nossa análise, teremos o termotarefa como o conjunto de atividades que o indivíduo pode realizar através da língua na "vida real", enquanto que no contexto escolar, falamos de "tarefas pedagógicas", que correspondem a uma lista de atividades que pertencem a esse contexto; estratégias "são um meio que o utilizador da língua explora para mobilizar e equilibrar os seus recursos, para activar capacidades e procedimentos, de modo a estar à altura das exigências de comunicação em contexto e a completar com êxito a tarefa em causa [...]" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 90); e, competência, segundo o QECR, um conjunto de conhecimentos e capacidades que possibilitam o usuário de uma língua realizar ações por meio dela. As competências geraissão uma abrangência dessas capacidades, uma vez que o indivíduo não se restringe somente à língua para fazer alguma coisa, enquanto que as competências comunicativas em língua limitam o fazer aos meios linguísticos. As competências gerais individuais do utilizador de línguas incluem osaber (conhecimento declarativo), osaber-fazer (competência de realização), osaber-ser/estar (competência existencial) e osaber-aprender (competência de aprendizagem).

1.4 Atividades linguísticas e comunicação

As atividades linguísticas dizem respeito à utilização que o usuário da língua faz da competência comunicativa para produzir ou receber textos a fim de realizar uma determinada tarefa. Elas dependem da competência comunicativa, pois é através da interação que a comunicação se estabelece. A recepçãoou produção de textos orais e/ou escritos são ações primordiais, já que ambos são constitutivos da interação. As atividades de recepção "incluem a leitura silenciosa e a atenção aos suportes. Têm também importância muitas formas de aprendizagem (compreensão do conteúdo do curso, consulta de livros de texto, de obras de referência e de documentos)" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 36). As atividades de produção relacionam-se às exposições orais, estudos escritos, relatórios e outros, possuindo um valor social, pois são feitos juízos sobre a apresentação escrita ou a fluência no discurso oral.

A interação possui uma função imprescindível na comunicação, porque vai além da simples compreensão ou produção de textos orais e/ou escritos: como existe uma troca de ações entre os agentes envolvidos, não há papéis estáticos, ou seja, há uma permuta constante nos atos de receber e produzir uma mensagem. Em situação de comunicação, oral ou escrita, há no mínimo dois interlocutores que alternam os papéis de receptor e emissor no decorrer da interação, o que implica em saber interagir eficazmente no decurso da produção e recepção textual.

As atividades linguísticas são efetuadas dentro de domínios, os quais, segundo o QECR (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 36-37), correspondem aos setores sociais em que os usuários da língua estão inseridos, sendo os seguintes os mais relevantes para o ensino-aprendizagem de uma língua:

  • Domínio educativo: insere-se no contexto de ensino/formação, tendo como objetivo a aquisição de conhecimentos e capacidades específicas;

  • Domínio profissional: relaciona-se às atividades profissionais do usuário da língua;

  • Domínio público: referente a atividades de interações sociais comuns, como interações administrativas, de negócios, de lazer, etc;

  • Domínio privado: são as relações familiares e práticas sociais do indivíduo.

O QECR traz um quadro7 7 O quadro encontra-se CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 78. com uma lista de gêneros que pertencem a cada domínio, que podem ser produzidos/recebidos. Se estivermos trabalhando no domínio educativo, por exemplo, poderemos visualizar com quais gêneros trabalhar no contexto escolar, ou seja, teremos uma lista de opções como cadernos de exercícios, artigos de jornais, resumos... para nos auxiliar no planejamento e desenvolvimento de nossas aulas.

Com esses domínios, podem ser discutidos vários temas e subtemas de um texto, de uma composição conforme as necessidades, motivações, características dos aprendentes, trazendo para o contexto de ensino o que for mais relevante para as finalidades da aprendizagem. Evidentemente, o professor pode propor atividades para treinar os educandos a desenvolverem temas, visto que há várias tarefas relacionadas à língua que lhes serão exigidas nos vários contextos situacionais.

Considerando tudo que foi mencionado supra sobre o QECR - sua finalidade e sua utilização -, decidimos repensar nossa prática de ensino de LM e elaboraramos um projeto de ensino para as aulas de LM de nossa própria turma de 7ºano do ensino fundamental, adaptando seus quadros de referências à nossa realidade de ensino, voltando-nos para "(...) os domínios e as situações que constituem o contexto de utilização da língua; as tarefas, os fins e os temas de comunicação: as actividades, as estratégias, os processos de comunicação e os textos, especialmente no que diz respeito às actividades e aos suportes" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 17), demonstrando que é possível a utilização dessa ferramenta para nossa realidade, nos apropriando de uma metodologia de ensino para o uso efetivo da língua.

2 Relato de experiência no ensino de língua materna tendo o QECR como ferramenta

Com base nesses conhecimentos sobre o QECR e conscientes de que o ensino de LM não poderia estar dissociado da prática social, refletimos sobre a maneira de ministrar as aulas de LM e nos questionamos a respeito do que, por que e como ensinar. Realizamos um projeto de ensino8 8 Em anexo, FICHA DE DESCRIÇÃO DE ATIVIDADES. com os gêneros documentário e entrevista com o intuito de ilustrar como se pode fazer um trabalho que corresponda às orientações do QECR, isto é, que estejam voltadas para o uso efetivo da língua e tomem os aprendentes como atores sociais que realmente são.

Esse projeto de ensino foi realizado em uma escola estadual no município de Castanhal - PA, a qual passava por graves problemas estruturais - o prédio da escola precisava urgentemente de uma reforma - e pedagógicos - o público alvo9 9 Alunos do sétimo ano do ensino fundamental - 16 meninas e 13 meninos entre 11 e 13 anos. , por exemplo, tinha sérios problemas com a leitura e a produção de texto - via de regra, os alunos não conseguiam usar a língua formal para se comunicar. A partir da análise do quadro de níveis comuns de referência e da grelha para a autoavaliação do QECR e do conhecimento do público alvo, constatamos que deveríamos realizar um trabalho com assuntos relacionados com seus interesses, para que fossem capazes de sintetizar e avaliar informações e argumentos em diversas fontes. Tínhamos a pretensão de levá-los para um novo nível de leitura e escrita através deste projeto (pois o nível de compreensão de textos e produção era ainda elementar). Partimos do Questionário de Verificação do QECR10 10 Em anexo. para determinarmos que tipo de tarefas com a língua os discentes precisariam dominar ou que lhe seriam exigidos que dominassem.

Daí partiu a escolha para o gênero documentário, pois a docente da turma em questão teria a oportunidade de trabalhar o problema que estava enfrentando na escola através da língua falada e da escrita. Mas para a construção desse documentário, os alunos também tiveram acesso ao gênero entrevista, pois foi com este último que elaboraram as perguntas feitas no primeiro gênero citado.

2.1 Descrição do projeto

A professora, no primeiro dia, introduziu o gênero documentário através de perguntas orais: Vocês sabem o que é um documentário? Já assistiram a algum documentário? Os alunos responderam negativamente. Após esse primeiro diálogo, foi iniciado o trabalho de caracterização do gênero através da leitura dos textos: "Documentário11 11 Disponível em : http://www.freetuga.info/archive/index.php?t-5997.html. Acesso em:20 jul. 09. " e "A ideia do documentário"12 12 Tradução livre e resumida dos principais tópicos do capítulo 9 de: MAKING DOCUMENTARY FILMS AND REALITY VIDEOS. Barry Hampe. New York: Henry Holt and Company, 1997. (Tradução: Roberto Braga). , sendo explicado os aspectos estruturais e para que servia.

No segundo dia, a professora levou para a sala de aula três pequenos documentários para os alunos assistirem e terem contato com o gênero: A escola serve pra quê?; Fortaleza noiada; Ilha das flores 13 13 Referências dos documentários:A escola serve pra quê? Disponível em :http://youtu.be/3JZzSed3loM. Acesso em: 23 jul. 2009.A ideia de documentário. Disponível em:http://pt.scribd.com/doc/96446034/Barry-Hampe-A-ideia-do-documentario. Acesso em: 23 jul. 2009.Fortaleza noiada. Disponível em: http://youtu.be/Dz0BGThxD58. Acesso em: 24 jul. 2009.Ilha das flores. Disponível em:http://youtu.be/KAzhAXjUG28. Acesso em: 15 jul. 2009.O que é documentário? Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/pessoa-fernao-ramos-o-que-documentario.pdf. Acesso em: 23 jul. 2009. . Desses três, o que a turma teve mais dificuldade para compreender foi "Ilha das flores", talvez porque não conseguiram associar de imediato a apresentação do comércio à vida de miséria dos habitantes da ilha. Em seguida, os alunos tiveram que responder a um questionário por escrito sobre cada um dos documentários: Qual o assunto do filme? Qual a ideia que seus autores desejavam mostrar? De qual gostaram mais? E por quê? Como esses documentários foram criados?

No terceiro dia, começamos com um diálogo sobre a produção de um documentário, posteriormente, abrimos o espaço para que os alunos escolhessem o tema a ser trabalhado pela turma. A docente levantou algumas possibilidades de temas, tais como: droga, preconceito racial, violência doméstica, bullying, e a própria escola. Por unanimidade, os alunos escolheram a "escola" como tema para a tarefa. Os discentes foram divididos em cinco grupos. Cada grupo produziu seu próprio roteiro de perguntas14 14 Questionários feitos pelos alunos em anexo. . O primeiro grupo tinha como tema a estrutura física da escola; o segundo, a capacitação dos professores; o terceiro, a história da fundação da escola; o quarto, a inclusão escolar; e, o quinto grupo, a provinha Brasil. A duração dos documentários variaram entre cinco e dez minutos.

Os documentários começaram a ser produzidos a partir da escrita das perguntas que iriam ser feitas aos funcionários da escola. Posteriormente, os alunos gravaram as entrevistas e imagens do local e tiraram fotos com máquinas digitais cedidas pela professora de LM e pela coordenadora pedagógica e também por alguns pais de alunos (nesse aspecto tiveram muitos problemas, porque a escola não dispunha desses recursos). O processo de edição ocorreu através de um revezamento nos dois únicos computadores que a instituição possuía para o uso de seu alunado. Toda essa produção levou duas semanas das aulas de língua portuguesa.

Após esse longo processo, fizeram a apresentação dos documentários à comunidade escolar. A coordenação e direção em exercício na época ficaram com o material para ser usado como provas materiais de que a escola precisava daquela reforma. Desta forma, a LM foi trabalhada para a prática social.

2.2 Roteiros de entrevistas e descrição dos documentários

Como podemos perceber, apesar da complexidade do projeto, não se gastou tempo com a refacção das entrevistas e nem do questionário. O trabalho se desenvolveu com a escrita dos próprios alunos, apesar de produzirem perguntas simples, o interessante é que produziram, escreveram, o que não faziam antes desse projeto.

2.3 Avaliação da tarefa da aula de LM: a produção de um documentário

Com esse projeto de ensino, podemos fazer a seguinte avaliação da atividade de acordo com o QECR :

Com base nos descritores do QECR, foram fixados para os alunos como objetivos que, ao final da experiência, eles fossem capazes de:

  • Ler com independência diferentes textos relacionados ao gênero escolhido, utilizando diferentes fontes de referência, a fim de produzir seu próprio documentário;

  • Fazer uma descrição acerca do assunto escolhido desenvolvendo ou defendendo suas ideias, fazendo notar questões secundárias e dando exemplos relevantes.

Durante o processo avaliativo da tarefa desses alunos na construção de um documentário, pudemos fazer uma retomada ao quadro do QUESTIONÁRIO DE VERIFICAÇÃO supracitado para respondermos às perguntas sobre o processo de ensino-aprendizagem de línguas. Abaixo, colocamos apenas as respostas que obtivemos com esse projeto de ensino:

  • Naquele momento, não poderíamos prever quais as situações futuras em que os alunos teriam que lidar com o uso da língua, mas lhes foi dada a oportunidade de usá-la em situação formal em público, mediada pelo texto escrito (questionário que elaboraram previamente para as entrevistas);

  • Nessa tarefa, tiveram que se relacionar com diversos tipos de pessoas (professores, outros alunos de turmas diferentes, coordenadoras pedagógicas) e por isso, foi-lhe exigido a língua padrão;

  • Nessa produção, tiveram que utilizar o texto escrito (através da leitura), para compreenderam melhor o funcionamento da estrutura do gênero em questão, da máquina digital, do computador, da televisão, do DVD, a fim de produzir e expor um documentário sobre a história e a estrutura física daquela escola, ampliando seu conhecimento de mundo sobre a referida instituição;

  • E a professora da turma pode auxiliá-los, apresentando o gênero, ajudando-os na escolha do tema e na elaboração das perguntas, como também no processo de filmagem e edição. Desta forma, proporcionou momentos de leitura e cinema, de rodas de conversa, produção escrita, produção oral com a variante culta e também a exposição do trabalho deles para a comunidade escolar.

Deste modo, o ensino-aprendizagem de LM não se desvinculou da prática social e pôde contribuir para o desenvolvimento pessoal e cultural dos aprendentes, uma vez que tiveram a oportunidade de trabalhar com diversos materiais para a construção de seu documentário, fizeram uso tanto da língua oral como da escrita padrão para se comunicarem, e também ampliaram seus conhecimentos sobre a instituição na qual estudavam.

Considerações finais

Neste trabalho, tomamos como referencial teórico a visão do QECR sobre o ensino de língua, as noções de competência, estratégia, interação, domínio, tarefa e descritores.

Essas noções permitiram perceber que, a partir do momento em que a professora dessa turma mudou sua prática de ensino associando esta à prática social de leitura e escrita, seus alunos passaram a desenvolver as competências desejadas, sem se fixarem demasiadamente na metalinguagem ou na nomenclatura gramatical.

De acordo com o QECR ,

Para alguns teóricos, "o mais importante que um professor pode fazer é fornecer um ambiente linguístico tão rico que permita que a aprendizagem aconteça sem um ensino formal. (...) No extremo oposto a esta posição, alguns [outros] acreditam que os estudantes que aprenderam as regras necessárias da gramática e o vocabulário serão capazes de compreender e de utilizar a língua em função da sua experiência anterior e do senso comum, sem necessitarem de prática. Entre estes dois polos, a maioria dos aprendentes, dos professores e dos seus serviços de apoio seguem práticas mais ecléticas, reconhecendo que os aprendentes não aprenderão necessariamente o que os professores ensinam e que necessitam de informação (input) linguística inteligível, substancial e contextualizada, bem como de oportunidades de utilização interativa da língua. Acreditam, assim, que a aprendizagem é facilitada, especialmente em situações artificiais de sala de aula, pela combinação da aprendizagem consciente e de bastante prática, de forma a reduzir ou a eliminar a atenção consciente que se presta tanto às capacidades físicas de nível elementar da oralidade e da escrita como à correção sintática e morfológica, libertando, deste modo, o espírito para estratégias de comunicação de nível mais elevado" (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 196-197).

Utilizando as ferramentas oferecidas pelo QECR, procuramos mostrar, a título de ilustração, que é possível desenvolver um projeto de ensino em sala de aula que promova uma interação social efetiva. Isso foi feito primeiramente buscando levar os alunos a produzirem suas perguntas escritas para a produção de entrevistas e, em seguida, a gravação de um pequeno documentário. As propostas apresentadas pareceram-lhes viáveis, com objetivos reais que visavam capacitá-los a compreenderem e serem compreendidos em uma situação real de comunicação.

Ao final desta pesquisa, damo-nos conta de que muito ainda precisa ser feito em nossa sala de aula, como, por exemplo, mudar a prática de um ensino de LM descontextualizado e sem propósito prático e social. Saber escrever e ler é hoje, mais do que nunca, uma necessidade de sobrevivência em sociedades como a nossa, onde tudo, ou quase tudo, é intermediado pela escrita (BORTONE; MARTINS, 2008BORTONE, Márcia Elizabeth; MARTINS, Cátia Regina Braga. A construção da leitura e da escrita: do 6º ao 9º ano do ensino fundamental., São Paulo: Parábola Editorial 2008., p. 59).

Sabemos que tratamos, ainda que superficialmente, de algo inovador - desconhecemos outro trabalho que tenha "explorado" o QECR visando a melhoria do ensino de LM. Os resultados obtidos nos impõem um grande desafio: aprofundar nossa reflexão e nossa ação concreta em sala de aula com o objetivo de promover um ensino de LM voltado para a prática social que seja suscetível de favorecer, cada vez mais, o desenvolvimento não apenas da competência de produção escrita de nossos aprendentes, como também da produção oral.

Referências

  • ANTUNES, Irandé. Aula de português - encontro & interação. 6a ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
  • BORTONE, Márcia Elizabeth; MARTINS, Cátia Regina Braga. A construção da leitura e da escrita: do 6º ao 9º ano do ensino fundamental., São Paulo: Parábola Editorial 2008.
  • CONSELHO DA EUROPA. Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas - Aprendizagem, ensino, avaliação. Trad. por Maria Joana Pimentel do Rosário e Nuno Verdial Soares. Porto Portugal: Edições Asa, 2001.
  • SILVEIRA, Jordana Tavares. Práticas de ensino e produção de textos escritos na 8ª série do Ensino Fundamental: O Quadro Europeu Comum de Referência como ferramenta. 2009. 2009. 146f. Dissertação (Mestrado em Linguística). Belém: Universidade Federal do Pará, 2009.
  • SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa: Uma abordagem pragmática. Campinas: Papirus, 1995.
  • 1
    O artigo é resultante da pesquisa de mestrado sob a orientação do Prof. Dr. José Carlos Chagas da Cunha (UFPA) - Doutor em Ciências da Linguagem pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França), professor da Universidade Federal do Pará (Campus de Belém) e bolsista de produtividade 2 do CNPq.
  • 2
    Mestre em Letras (Estudos Linguísticos) pela Universidade Federal do Pará,é professora na Universidade Estadual do Pará (Campus de São Miguel do Guamá).
  • 3
    O Conselho da Europa é uma organização internacional, fundada em 5 de maio de 1949, com sede em Estrasburgo, França. Tem por objetivo promover a defesa dos direitos humanos e harmonizar as práticas sociais e jurídicas em território europeu.
  • 4
    As citações e os quadros retirados do QECR estão com sua ortografia original, ou seja, em português de Portugal.
  • 5
    Em anexo.
  • 6
    Em anexo.
  • 7
    O quadro encontra-se CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 78.
  • 8
    Em anexo, FICHA DE DESCRIÇÃO DE ATIVIDADES.
  • 9
    Alunos do sétimo ano do ensino fundamental - 16 meninas e 13 meninos entre 11 e 13 anos.
  • 10
    Em anexo.
  • 11
    Disponível em : http://www.freetuga.info/archive/index.php?t-5997.html. Acesso em:20 jul. 09.
  • 12
    Tradução livre e resumida dos principais tópicos do capítulo 9 de: MAKING DOCUMENTARY FILMS AND REALITY VIDEOS. Barry Hampe. New York: Henry Holt and Company, 1997. (Tradução: Roberto Braga).
  • 13
    Referências dos documentários:A escola serve pra quê? Disponível em :http://youtu.be/3JZzSed3loM. Acesso em: 23 jul. 2009.A ideia de documentário. Disponível em:http://pt.scribd.com/doc/96446034/Barry-Hampe-A-ideia-do-documentario. Acesso em: 23 jul. 2009.Fortaleza noiada. Disponível em: http://youtu.be/Dz0BGThxD58. Acesso em: 24 jul. 2009.Ilha das flores. Disponível em:http://youtu.be/KAzhAXjUG28. Acesso em: 15 jul. 2009.O que é documentário? Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/pessoa-fernao-ramos-o-que-documentario.pdf. Acesso em: 23 jul. 2009.
  • 14
    Questionários feitos pelos alunos em anexo.
  • 15
    Em anexo.
  • 16
    CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 159.
  • 17
    17CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 169.
  • 18
    CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 211.
  • 19
    CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 49.
  • 20
    Dados retirados da Grelha para autoavaliação do QECR (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 53-55).
  • 21
    CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 74-75.

Quadro 1: níveis comuns de referência: escala global

Quadro 2: grelha para a autoavaliação

QUESTIONÁRIO DE VERIFICAÇÃO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2014
  • Aceito
    29 Jun 2015
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