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Visualizando a elaboração da linguagem em surdos bilíngues por meio da ressonância magnética funcional

Viewing the production of language in bilingual deaf subjects through functional magnetic resonance imaging

Resumos

As línguas de sinais são línguas naturais que compartilham as propriedades das línguas orais. Este estudo buscou visualizar as áreas corticais ativadas em surdos bilíngues em Língua Brasileira de Sinais e em Língua Portuguesa. As tarefas envolveram a elaboração da linguagem. Foram feitos treze exames de Imagem por Ressonância Magnética Funcional. Foi utilizada, ainda, uma sequência de imagem ecoplanar para a aquisição BOLD (Blood Oxygen Level Dependent) e, para corregistro, foram buscadas imagens de alta resolução de todo o encéfalo. Os mapas estatísticos foram obtidos com o Modelo Geral Linear, utilizando o programa Brain Voyager.TM A tarefa de elaboração da linguagem em Língua Brasileira de Sinais proporcionou ativações mais significativas do que a tarefa de elaboração em Língua Portuguesa, sugerindo que os surdos bilíngues apresentam maior competência linguística em língua de sinais.

língua brasileira de sinais; língua de sinais; linguagem; surdez, imagem por ressonância magnética funcional


Sign languages are natural languages that have the same properties of oral languages. This study aimed to identify the cortical areas activated in bilingual deaf subjects who communicate through Brazilian Sign Language and Portuguese Language. Tasks involved the production of language. Thirteen functional magnetic resonances imaging (fMRI) exams were performed. An Echo Planar Imaging (EPI) sequence was used to obtain the BOLD (Blood Oxygen Level Dependent), associated with a whole brain high resolution imaging for co-register. The statistical maps were obtained using the General Linear Model with Brain VoyagerTM software. The task of producing Brazilian Sign Language provided more significant activations than did the task of producing Portuguese Language, suggesting that bilingual deaf subjects present a higher language proficiency in sign language.

Brazilian Sign Language; sign language; language; deafness, functional magnetic resonance imaging


Visualizando a elaboração da linguagem em surdos bilíngues por meio da ressonância magnética funcional

Viewing the production of language in bilingual deaf subjects through functional magnetic resonance imaging

Michelle Nave ValadãoI,* * michelle.nave@ufv.br ; Myriam de Lima IssacII,** ** mylis@fmrp.usp.br ; Sara Regina Escorsi RossetIII,*** ** sararroset@gmail.com ; Draulio Barros de AraujoIV,**** **** draulio@neuo.ufrn.br ; Antonio Carlos dos SantosV,***** ***** acsantos@fmrp.usp.br 1 William Stokoe (1960) foi o primeiro a descrever as características linguísticas das línguas de sinais, comprovando que elas são línguas naturais assim como as línguas orais. Para melhor compreensão, consultar: STOKOE, W. Sign language structure: an outline of the visual communication systems of the American deaf. 2 nd ed. Maryland, Linstok Press, 1960/1978. 2 Para melhor entendimento acerca das abordagens educacionais em relação às pessoas surdas, consultar: CAPOVILLA, F.C. Filosofias educacionais em relação ao surdo: do oralismo à comunicação total ao bilinguismo. Revista Brasileira de Educação Especial, v.6, n.1, 2000. 3 Trata-se do paradigma utilizado na maioria dos centros que fazem estudos com IRMf e consiste em períodos de atividade alternados por períodos iguais de repouso. Assim, ocorre a geração de estados " on" e " off" da atividade neuronal, os quais se correlacionarão diretamente à intensidade perfusional (e, consequentemente, ao sinal BOLD) na área de interesse. Obtém-se, assim, um estado da atividade neuronal que estará, a princípio, correlacionada a um aumento de perfusão local. Esse método visa a localizar as regiões que responderam seletivamente à alternância entre a execução da atividade e os períodos de repouso. Sua maior vantagem está na capacidade de localização das áreas anatomofuncionais de interesse. 4 O sistema de coordenadas Talairach é embasado no plano entre duas formações anatômicas típicas: a comissura anterior e a comissura posterior. Após a definição do plano de coordenadas, são geradas quatro linhas de referências que formam o sistema de grade Talairach, que é estabelecido com base nas máximas dimensões do cérebro. O passo seguinte, de demarcação, é utilizado para definir a periferia cortical. Depois da demarcação das dimensões máximas de cada cérebro, são feitas contrações e expansões na imagem do cérebro para que ele preencha este sistema de grade. Por meio desses processos, é possível normalizar cada cérebro para uma estrutura padrão.

IUniversidade Federal de Viçosa Viçosa - Minas Gerais / Brasil

IIUniversidade de São Paulo São Paulo - São Paulo / Brasil

IIIUniversidade de São Paulo São Paulo - São Paulo / Brasil

IVUniversidade Federal do Rio Grande do Norte Natal - Rio Grande do Norte / Brasil

VUniversidade de São Paulo São Paulo - São Paulo / Brasil

RESUMO

As línguas de sinais são línguas naturais que compartilham as propriedades das línguas orais. Este estudo buscou visualizar as áreas corticais ativadas em surdos bilíngues em Língua Brasileira de Sinais e em Língua Portuguesa. As tarefas envolveram a elaboração da linguagem. Foram feitos treze exames de Imagem por Ressonância Magnética Funcional. Foi utilizada, ainda, uma sequência de imagem ecoplanar para a aquisição BOLD (Blood Oxygen Level Dependent) e, para corregistro, foram buscadas imagens de alta resolução de todo o encéfalo. Os mapas estatísticos foram obtidos com o Modelo Geral Linear, utilizando o programa Brain Voyager.TM A tarefa de elaboração da linguagem em Língua Brasileira de Sinais proporcionou ativações mais significativas do que a tarefa de elaboração em Língua Portuguesa, sugerindo que os surdos bilíngues apresentam maior competência linguística em língua de sinais.

Palavras-chave: língua brasileira de sinais; língua de sinais; linguagem; surdez, imagem por ressonância magnética funcional.

ABSTRACT

Sign languages are natural languages that have the same properties of oral languages. This study aimed to identify the cortical areas activated in bilingual deaf subjects who communicate through Brazilian Sign Language and Portuguese Language. Tasks involved the production of language. Thirteen functional magnetic resonances imaging (fMRI) exams were performed. An Echo Planar Imaging (EPI) sequence was used to obtain the BOLD (Blood Oxygen Level Dependent), associated with a whole brain high resolution imaging for co-register. The statistical maps were obtained using the General Linear Model with Brain VoyagerTM software. The task of producing Brazilian Sign Language provided more significant activations than did the task of producing Portuguese Language, suggesting that bilingual deaf subjects present a higher language proficiency in sign language.

Keywords: Brazilian Sign Language; sign language; language; deafness, functional magnetic resonance imaging.

INTRODUÇÃO

O interesse científico acerca das línguas de sinais iniciou-se após a década de 1960, com a publicação dos achados de Stokoe.1 * michelle.nave@ufv.br Até esse período, os estudos relacionados à linguagem humana eram embasados em investigações nas línguas orais. Todavia, o reconhecimento linguístico das línguas de sinais bem como a análise das suas características vísuo-espaciais possibilitaram que novos olhares fossem lançados sobre a linguagem, seu processo de aquisição e desenvolvimento e seu funcionamento. De maneira extraordinária, novas perspectivas foram motivadas, alcançando dimensões que não poderiam ser plenamente elucidadas pelas línguas orais.

Além de possibilitar maior visibilidade, a conceituação das línguas de sinais como línguas naturais suscitou questões acerca do status dessa modalidade de língua para as pessoas surdas. Nessa conjuntura, as discussões não ficaram restritas aos aspectos linguísticos, mas adentraram os contextos de uso efetivo e do significado que as línguas de sinais assumem diante do desenvolvimento da linguagem.

Não é novidade que a linguagem e o seu funcionamento perante as línguas, sejam orais ou de sinais, despertam o interesse investigativo dos mais diversos campos de conhecimentos, entre eles, o campo das neurociências. Essa área tem contribuído para a elucidação de questões inerentes à linguagem, principalmente a partir do advento dos exames de neuroimagem, em especial, a imagem por ressonância magnética funcional (IRMf). Por seu caráter não invasivo, a IRMf é um poderoso método para investigar o cérebro em resposta a testes cognitivos, possibilitando a geração de imagens do cérebro durante seu funcionamento. Desde seu advento, a IRMf tem permitido o detalhamento e a caracterização dos sistemas neurais envolvidos nos processos mentais, principalmente os relacionados à linguagem.

Dessa forma, este artigo apresenta os achados de uma pesquisa que investigou a representação cortical da linguagem em pessoas surdas. O objetivo geral é discutir como a IRMf possibilitou a identificação de áreas de ativação cortical envolvidas nas atividades de elaboração da linguagem em Língua Portuguesa e em Língua Brasileira de Sinais (Libras) realizadas por participantes surdos bilíngues.

2. CONCEPÇÕES ACERCA DA AQUISIÇÃO DA LÍNGUA DE SINAIS PELAS PESSOAS SURDAS

Já foi demonstrado que as línguas de sinais são consideradas línguas naturais por compartilharem, de acordo com Quadros e Karnopp (2004, p.30), "uma série de características que lhes atribui caráter específico e as distingue dos demais sistemas de comunicação". Essa concepção linguística incidiu diretamente sobre concepções educacionais voltadas para as pessoas surdas. Assim, no Brasil, o bilinguismo, como abordagem educacional, preconiza a competência linguística dos surdos em duas línguas: a Língua Brasileira de Sinais e a Língua Portuguesa. Para isso, Capovilla (2001, 2004), Lacerda (1998) e Moura, Lodi e Harrison (2005) argumentam que a criança surda deve adquirir precocemente a língua de sinais para assim desenvolver competências cognitivas e linguísticas que lhe servirão de base para a aquisição de uma segunda língua, a língua majoritária do país.

Esse modelo é defendido pelos autores supracitados por considerarem não haver barreiras de natureza perceptual para a aquisição da língua de sinais pelos surdos. Suas propriedades vísuo-espaciais permitem que sejam adquiridas naturalmente, desde que as condições visuais e manuais estejam preservadas. Os autores destacam que a criança surda deve ser exposta o mais cedo possível a uma comunidade sinalizadora, preferencialmente surda. Dessa maneira, a criança irá interagir precocemente com a língua de sinais através de interlocutores surdos ou ouvintes que tenham fluência na língua e, assim, ela poderá ser adquirida naturalmente. Tais interações são fundamentais para propiciar um ambiente linguístico natural, de maneira semelhante ao vivenciado pelas crianças ouvintes. Entretanto, pesquisas realizadas por Quadros (1997) e Silva, Pereira e Zanoli (2007) constataram que a maioria das crianças surdas não dispõe de um adequado ambiente de interação linguística. Os autores estimam que aproximadamente 95% das crianças surdas sejam filhas de pais ouvintes que não têm conhecimentos acerca da língua de sinais e, portanto, terão dificuldades para atuarem como interlocutores com seus filhos surdos.

Além das restrições linguísticas, no Brasil, fatores históricos, sociais e educacionais também têm impossibilitado a aquisição precoce da língua de sinais por crianças surdas, filhas de pais ouvintes. As iniciativas promotoras de uso e divulgação da Libras ainda são incipientes. Faltam espaços onde a língua de sinais possa circular com o mesmo status das línguas orais e onde os surdos possam conviver com seus pares linguísticos, em situações promotoras e mantenedoras da linguagem. Ainda, há escassez de profissionais com formação específica em Libras para atuar junto aos surdos e mediar a comunicação entre surdos e ouvintes.

Diante da complexidade da questão, Silva (2008) faz algumas ressalvas acerca da condição bilíngue vivenciada pelos surdos e dos conceitos que língua materna, língua natural e primeira língua assumem frente a essa condição. A autora argumenta que, no caso da surdez, tais conceitos se encontram nas bordas do que é considerado como norma. Citando Behares e Peluso (1997), a autora aponta algumas distinções entre línguas naturais e primeira língua. A esse respeito, estabelece diferenças entre as situações de bilinguismo que ocorrem, por exemplo, com filhos de imigrantes, das que ocorrem com as pessoas surdas. Para aqueles, o conceito de primeira língua faz referência a fatores temporais e cronológicos, ao passo que, para os surdos, tal referência se apoia na possibilidade de acesso imediato, sem impedimentos físicos e sensoriais, a uma língua com propriedades vísuo-espaciais. Em consonância com tais diferenças, Lacerda (1998) reitera que a condição de bilinguismo das crianças surdas também é diferente daquela vivenciada por filhos de imigrantes no que concerne às modalidades das línguas. Esses últimos são considerados bilingues unimodais, pois aprendem duas línguas de mesma modalidade, oral-auditiva, ao passo que os surdos são bimodais, já que a aprendizagem envolve duas línguas de modalidades distintas.

Com o intuito de discutir algumas implicações que a língua de sinais pode ter no desenvolvimento da linguagem, este estudo não foi desenhado com vistas às situações ideais de aquisição precoce da língua de sinais; ao contrário, interessou-se por abarcar participantes que representassem a realidade linguística vivenciada comumente pela comunidade surda brasileira: surdos bilíngues, filhos de pais ouvintes.

Importa citar que o propósito deste trabalho não foi adentrar às muito discutidas abordagens educacionais oferecidas aos surdos.2 ** mylis@fmrp.usp.br O enfoque foi voltado para essa habilidade essencialmente humana de se apropriar de diversas línguas seletivamente, de modalidades diversas, mesmo diante de tantos fatores, por vezes, contrários ao seu desenvolvimento.

3. IMAGEM POR RESSONÂNCIA MAGNÉTICA FUNCIONAL COMO FERRAMENTA PARA A IDENTIFICAÇÃO DOS PROCESSOS ENVOLVIDOS NAS LÍNGUAS DE SINAIS

Os exames de Imagem por Ressonância Magnética funcional (IRMf), de acordo com Huettel, Song e McCarthy (2004), utilizam, basicamente, o fenômeno de ressonância magnética e o nível de oxigenação da hemoglobina para mostrar a atividade neuronal de uma maneira indireta, por meio de uma resposta hemodinâmica induzida por uma ação. Essa ação, que pode ser mexer um dedo ou ler uma palavra, gera uma atividade neuronal que irá promover um discreto aumento local do metabolismo cerebral e do consumo de oxigênio. Esse fenômeno é seguido por um aumento da perfusão cerebral local, responsável por uma elevação do transporte de oxi-hemoglobina, que ultrapassa o consumo de oxigênio, resultando em uma hiper-oxigenação sanguínea local, no capilar e à sua volta, podendo ser detectada pela IRMf.

Essa técnica faz uso do chamado efeito BOLD (Blood Oxygen Level Dependent). O efeito BOLD deve-se às mudanças locais na proporção de oxi e deoxi-hemoglobina, o que ocorre em virtude do aumento da variação do fluxo sanguíneo e da demanda de oxigênio por parte do tecido ante a ativação neuronal e foi descrito pela primeira vez por Ogawa et al. (1990a, 1990b).

O desenvolvimento e a acessibilidade de técnicas de neuroimagem possibilitaram o detalhamento e a caracterização dos sistemas neurais envolvidos em atividades cognitivas. Essas técnicas revelaram que o cérebro humano é altamente diferenciado em sistemas e subsistemas especializados para processar diferentes informações. A esse respeito, as pesquisas com línguas de sinais forneceram um novo paradigma acerca da compreensão dos mecanismos corticais envolvidos no processamento das funções da linguagem. Os interesses foram embasados nos sistemas cerebrais envolvidos nessas funções e em que medida esses sistemas podem ser moldados pela experiência auditiva ou pela exposição a uma língua natural, que pode não ser acusticamente estruturada. Além disso, buscaram compreender se a organização cortical poderia sofrer adaptações ou reorganizações de acordo com diferentes inputs sensoriais.

Um pioneiro estudo desenvolvido por Neville et al. (1998) indagou se a organização do córtex cerebral em sistemas altamente especializados seria biologicamente estabelecida ou possível de ser modificada por inputs do ambiente. Usando IRMf, os autores propuseram caracterizar essa organização durante o processamento da Língua Inglesa e da Língua de Sinais Americana, considerando fatores como condição auditiva, bilinguismo e período de aquisição da segunda língua, em três grupos: ouvintes falantes do inglês; surdos bilíngues e ouvintes bilíngues. Seus achados mostraram que tanto os surdos quanto os ouvintes bilíngues, quando realizavam tarefas em suas línguas nativas, apresentaram robustas ativações em áreas clássicas da linguagem no hemisfério cerebral esquerdo. Entretanto, as tarefas na segunda língua não apresentaram ativações nessas regiões, sugerindo que a aquisição precoce de uma língua natural é importante para a mediação da linguagem nessas áreas, independentemente da modalidade da língua.

Com o intuito de compreender a evolução da linguagem humana, MacSweeney et al. (2002a) analisaram os principais sistemas neurais que subsidiam o processamento da linguagem em suas diversas formas. Para isso, realizaram um estudo envolvendo tarefa de percepção de sentenças anômalas em Língua de Sinais Britânica por participantes surdos e em Língua Inglesa por ouvintes. Os resultados mostraram que alguns padrões de localização da linguagem não dependem da modalidade da língua, enquanto outros dependem. Em relação aos padrões independentes, regiões préfrontais inferiores, incluindo área de Broca, e regiões temporais superiores, incluindo área de Wernicke, foram ativadas bilateralmente. Os padrões de lateralização foram semelhantes para as duas línguas, sem evidência de maior recrutamento do hemisfério cerebral direito. Entretanto, para os ouvintes, o inglês proporcionou maior ativação em regiões do córtex auditivo primário e secundário, ao passo que, para os surdos, a Língua de Sinais Britânica possibilitou maior ativação em regiões têmporo-occipitais posteriores.

Importantes publicações como as de MacSweeney et al. (2002b, 2004, 2008) e Neville et al. (1997) mostram que a condição auditiva pode interferir na organização cortical das tarefas de linguagem. Por outro lado, quando os estudos são conduzidos respeitando as especificidades linguísticas presentes tanto nas línguas de sinais quanto nas línguas orais, as diferenças entre elas são minimizadas. Campbell, MacSweeney e Waters (2008) revisaram diferentes estudos que compararam a organização cortical envolvida, tanto no processamento da língua de sinais quanto no da língua oral. Os autores concluíram que ambas as línguas envolvem regiões perisylvianas no hemisfério cerebral esquerdo classicamente relacionadas ao processamento da linguagem. As diferenças apresentadas estão limitadas às regiões envolvidas nos níveis iniciais de processamento das informações linguísticas.

Com relação ao bilinguismo, Newman et al. (2002) mostraram diferenças na organização cortical da linguagem relacionadas ao período de aquisição da língua de sinais pelos ouvintes. Para isso, investigaram ouvintes bilíngues precoces (filhos de pais surdos) e bilíngues tardios (que aprenderam a língua já na idade adulta). Os autores sugerem que os padrões de ativação são altamente sensíveis a uma escala de fatores tais como grau de instrução, idade de aquisição da língua e condições do aprendizado da segunda língua no contexto de uma língua previamente instruída.

Assim, as questões relativas à organização neural envolvida no processamento das línguas orais e das línguas de sinais ainda não estão claramente estabelecidas e necessitam ser exploradas a partir de diversas perspectivas. Existem diferenças nas redes que suportam as línguas de sinais e as línguas orais que podem estar presentes nos estágios iniciais do processamento sensorial, ou em altos níveis do processamento da linguagem. Estas diferenças são o foco desse artigo.

4. MÉTODO

Foram feitos exames de IRMf em um grupo composto por 13 participantes surdos congênitos, dos quais, 8(oito) pertenciam ao gênero feminino e 5(cinco) ao gênero masculino, com média de 34,92 anos de idade e 8,61 anos de escolaridade. Todos apresentavam perda auditiva sensorioneural (SN), de grau profundo bilateralmente (limiares audiométricos tonais acima de noventa e um dBNA para as frequências de 500, 1000 e 2000Hz - segundo Davis, 1970), e se comunicavam em Libras e em Língua Portuguesa.

Os sujeitos pesquisados assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, tendo a liberdade de aceitar ou não participar dessa pesquisa, podendo, a qualquer momento, retirar-se do estudo, sem que isso acarretasse algum prejuízo ou dano a eles. O estudo foi desenvolvido no Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.

Foram feitas entrevistas com todos os participantes, nas quais foram coletados dados como gênero, idade, escolaridade, uso de Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI), idade de adaptação do AASI, realização de terapia fonoaudiológica, condição auditiva dos familiares (surdos ou ouvintes), idade e modo de aprendizagem das línguas - Libras e Língua Portuguesa.

Para analisar as áreas corticais envolvidas na elaboração da linguagem, tanto em Libras quanto em Língua Portuguesa, os participantes surdos bilíngues fizeram duas tarefas: elaboração em sinais (EL sinais) e elaboração oral (EL oral).

A tarefa EL sinais versou em elaborar mentalmente o maior número possível de sinais em Libras iniciados por determinadas configurações de mão. Os estímulos foram apresentados aos participantes da pesquisa através de gravação visual digital que consistiu na exposição de um filme no qual um ator, um indivíduo surdo do gênero masculino, apresentou consecutivamente cinco configurações de mão.

Por sua vez, a tarefa EL oral consistiu em elaborar mentalmente o maior número possível de palavras em Língua Portuguesa, iniciadas por determinadas letras do alfabeto. O estímulo foi apresentado de maneira semelhante ao da tarefa anterior, porém, com a apresentação de cinco letras consecutivas.

Os vídeos foram projetados por um projetor digital em uma tela translúcida, verticalmente colocada em posição próxima aos pés dos participantes, que permaneceram deitados dorsalmente no scanner e assistiram aos filmes olhando para a tela por meio de um espelho acoplado à cabeça.

O equipamento utilizado foi um aparelho de Ressonância Magnética Siemens, modelo Magneton Vision, de 1.5 Tesla, com bobina de cabeça de quadratura e polarização circular, comercialmente disponível.

O paradigma de bloco3 ** sararroset@gmail.com também foi utilizado. Ele consistiu em 11 blocos, divididos em 5 estados ativos intercalados por 6 estados de repouso, com média de 27,5 segundos cada, de modo que o tempo total do exame resultou em aproximadamente 5 minutos para cada tarefa. Os estímulos, que diferenciavam os períodos de atividade e de repouso, foram apresentados por meio de gravação digital visual. Para os períodos de atividade, os participantes foram instruídos a pensar nas palavras, em Libras ou em Língua Portuguesa, de acordo com a tarefa. Para os intervalos de repouso, cujo intuito foi interromper a atividade cerebral gerada pela tarefa solicitada (período de atividade), os participantes foram instruídos a não pensar em nada ou pensar em uma parede branca.

Todos os participantes passaram por treinamentos que reproduziam as situações que seriam vivenciadas dentro do equipamento. Assim, com aproximadamente o mesmo intervalo de tempo de atividade, os participantes foram solicitados a verbalizar ou sinalizar o maior número de palavras de acordo com o paradigma aplicado. Na situação de treinamento, os participantes eram instruídos a verbalizar ou sinalizar as palavras para que a examinadora analisasse a compreensão da tarefa. Na situação do exame, dentro do equipamento, as palavras deveriam ser geradas mentalmente, evitando-se artefatos por movimentos.

Para a série de imagens funcionais, foi utilizada uma sequência de imagem ecoplanar para aquisição BOLD. Como a imagem apresenta uma resolução de menor qualidade, fez-se necessária a utilização de uma imagem de alta resolução espacial. Assim, foram empregadas imagens sagitais ponderadas em T1, cobrindo ambos os hemisférios cerebrais, utilizando uma sequência do tipo gradiente eco 3D de alta resolução. Após a aquisição das imagens, elas foram processadas por meio de um programa comercial (BrainVoyager QX, Brain Innovation, Maastricht, The Netherlands).

Quanto aos resultados da IRMf, a análise estatística foi baseada no Modelo Geral Linear. Nesse método, a evolução temporal da intensidade de cada pixel foi comparada a uma função de referência modelada do sinal, verificando-se a similaridade entre ambas. Assim, foram observados os pixeis que apresentaram comportamento mais próximo do esperado. As visualizações dos mapas estatísticos foram feitas pela sua superposição em imagens de boa resolução anatômica, provenientes de sequência T1 volumétrica.

Os mapas de ativação obtidos nos estudos funcionais para cada indivíduo foram transformados em um espaço comum de coordenadas: o espaço Talairach4 **** draulio@neuo.ufrn.br (TALAIRACH; TOURNOUX, 1988). Esse sistema de coordenadas facilita a comparação direta entre os resultados de localização funcional e, por ser uma ferramenta de correção das variações anatômicas cerebrais entre os sujeitos estudados, também supre a necessidade de comparação interindividual, como descreve Justina (2005).

A significância estatística foi corrigida, para múltiplas comparações, por meio da False Discovery Rate, que tem como objetivo principal colocar a taxa de falsos positivos para α de 0,05. Visando a garantir a consistência dos resultados, foi feito um procedimento de agrupamento ou "clusterização"dosvoxeis com diferenças estatísticas significativas: nesse trabalho, os clusters deveriam ter mais de 50 voxeis.

Uma vez que o maior interesse dos estudos em neuroimagem é a apresentação de resultados que representem estudos populacionais, após a obtenção dos dados de cada indivíduo, a próxima etapa se referiu à geração do estudo de grupo, ou seja, à análise das áreas comumente ativas para todos os participantes do grupo, que também foram colocadas no espaço Talairach.

Para esta análise estatística, utilizou-se ainda o artifício Random effect, que se refere a uma análise intersujeito que assume o efeito do experimento como variável entre os indivíduos. As séries temporais de cada participante foram traduzidas em mapas estatísticos, que passaram por uma segunda etapa de análise, gerando o mapa estatístico combinado de acordo com o proposto por Huettel, Song e McCarthy (2004).

A análise de grupo foi realizada através do Modelo Geral Linear, por meio do programa Brain Voyager. Nessa análise, foram selecionadas, considerando todos os participantes do grupo, as regiões corticais predominantemente ativadas, e as imagens foram escolhidas de modo a ilustrar as principais áreas corticais, áreas de Brodmann (BA), ativadas no estudo de grupo. Na descrição dos resultados, as áreas de comum ativação, encontradas em todo o grupo, foram representadas, para visualização, através de imagens da cabeça de apenas um dos participantes.

As imagens obtidas indicaram as áreas de comum ativação entre os participantes de acordo com a tarefa realizada: EL sinais e EL oral. Em seguida, foram feitas análises comparativas entre as duas tarefas.

5. RESULTADOS

Ativações em áreas corticais responsáveis pelo processamento da linguagem foram eliciadas pela tarefa EL sinais. As imagens a seguir ilustram algumas dessas áreas. A tarefa proposta proporcionou ativação em região do giro frontal inferior, BA 44 bilateralmente (Figuras 01 e 02). Ativações também ocorreram em área motora primária BA 4 esquerda (Figura 03) e área motora suplementar, BA 6 (Figura 04). Em relação às áreas préfrontais, as ativações foram encontradas em BA 9 e BA 10 no hemisfério cerebral esquerdo (Figura 05). Regiões parietais associativas, cuja função está relacionada à visão espacial, também foram ativadas em BA 7 (Figura 06). Em relação às regiões occipitais, ocorreram ativações do córtex visual primário em BA 17 (Figura 07).








Em relação à análise das ativações para a tarefa EL oral, embora os participantes fossem bilíngues, poucas ativações foram observadas. As principais ocorreram em área motora suplementar BA 6 (Figura 08) e giro do cíngulo BA 24 (Figura 09).



Em seguida, as análises buscaram contrastar os achados encontrados entre as tarefas EL sinais e EL oral, comparando as áreas que apresentaram preponderância de ativação para cada uma das tarefas. Os resultados dessas análises estão representados nas tabelas a seguir.

A Tabela 01 apresenta as áreas corticais que tiveram predomínio de ativação para a tarefa EL sinais. Essa tarefa proporcionou ativações mais significativas do que as apresentadas na tarefa EL oral. No hemisfério cerebral esquerdo, houve ênfase em regiões do lóbulo parietal inferior (BA 40), giro pós-central (BA 40), giro occipital superior (BA 39) e giro supramarginal (BA 40). Em relação ao hemisfério cerebral direito, as ativações destacaram-se no giro temporal médio (BA 22, BA 37 e BA 39), no giro temporal inferior (BA 21), no giro fusiforme, no giro lingual, no cúneos e nas áreas relativas ao córtex visual primário (BA 17) e secundário (BA 18 e BA 19). Ativações também foram mais proeminentes em área motora primária (BA 4) e motora suplementar (BA 6).

Por sua vez, a Tabela 02 representa as áreas anatomofuncionais do córtex cerebral que apresentaram predomínio de ativações durante a realização da tarefa EL oral. Poucas regiões se destacaram nesse contraste, sendo todas no hemisfério cerebral esquerdo, principalmente no giro temporal médio (BA 39) e superior (BA 39), além do giro do cíngulo (BA 24).

6. DISCUSSÃO

O reconhecimento das línguas de sinais como línguas naturais propiciou avanços na compreensão dos mecanismos envolvidos no processamento da linguagem por surdos sinalizadores. Nas últimas duas décadas, os estudos passaram a explorar as propriedades que são originais às línguas de sinais, e os questionamentos abarcaram questões referentes aos processos de produção e compreensão envolvidos nessas línguas. Dadas as especificidades abrangidas, os trabalhos publicados na literatura variam consideravelmente em relação aos desenhos metodológicos.

Em relação à produção dos sinais, San José-Robertson et al. (2004) investigaram os sistemas cerebrais envolvidos na produção das línguas de sinais, diferenciando os estágios de processamento relativos à seleção lexical, à codificação fonológica e à articulação. O estudo empregou duas diferentes tarefas para geração de verbos e de substantivos. Uma associada com testes de repetição do sinal e a outra, com observação passiva do mesmo. Com relação aos verbos, as análises revelaram ativação no hemisfério cerebral esquerdo em regiões perisylvianas, frontais e subcorticais. Tais ativações são geralmente observadas em tarefas de geração de palavras nas línguas orais e relacionadas aos processos de caráter semântico e de seleção lexical. A análise da repetição de substantivo, quando comparada à condição de observação passiva, revelou a ativação dos sistemas distintos que suportam a codificação fonológica e a articulação, incluindo a ativação bilateral de áreas sensóriomotoras e do córtex de associação nos lóbulos temporal, parietal e occipital. Além disso, os processos articulatórios geraram ativação de áreas motoras e a seleção lexical de circuitos pré-frontais.

No estudo aqui apresentado, o enfoque foi dado nos processos de elaboração da linguagem envolvidos na geração de palavras em Libras e em Língua Portuguesa. Em pessoas ouvintes, a intenção de produzir uma palavra gera ativação da informação conceitual semântica, que, por sua vez, incide sobre representações semântico-lexicais, tendo como resultado a ativação de uma palavra que seja consistente com o conceito desejado. Após a seleção semântico-lexical, ocorre a seleção das representações das unidades mínimas que compõem este nível. No caso das línguas orais, essas unidades são os fonemas, enquanto nas línguas de sinais, são os parâmetros - configuração de mão, movimento, locação, expressão não manual e orientação das mãos.

Em relação aos achados em neuroimagem, o padrão observado nos participantes surdos para a tarefa EL sinais foi o de ativação em regiões frontais, tradicionalmente relacionadas com a expressão da linguagem, como a área de Broca (BA44), área motora suplementar (BA 6 medial) e áreas do cíngulo anterior (BA 24), bem como a área frontal lateral (BA 9). Os achados encontrados na elaboração dos sinais são coincidentes com os encontrados em tarefas fonológicas realizadas por ouvintes na elaboração de palavras em línguas orais, conforme Costafreda et al. (2006). A comparação entre os estudos sugere um padrão muito semelhante, porém, com representação bilateral e envolvimento da porção anterior do giro do cíngulo.

Petito et al. (2000), ao analisarem a Língua Americana de Sinais e a Língua de Sinais de Quebec, relataram que as tarefas envolvendo a elaboração dos sinais ocasionaram ativações restritas ao hemisfério cerebral esquerdo, em regiões frontais inferiores e regiões temporais superiores, que incluíram a área de Wernicke e Broca. Comparando a produção narrativa em língua de sinais e língua oral em ouvintes bilíngues, Braun et al. (2001) mostraram que circuitos neurais semelhantes foram recrutados para ambos os tipos de planejamento das línguas.

A tarefa EL sinais eliciou, ainda, ativação do giro temporal superior, especificamente em BA 22. Esse achado foi semelhante ao de San José-Robertson et al. (2004), que encontraram ativação no giro temporal superior, especificamente no plano temporal (BA 22) para tarefas de repetição de nomes, sugerindo o envolvimento do plano temporal nos processos articulatórios e fonológicos. Esta observação foi semelhante aos resultados de Petito et al. (2000), que relataram ativações no giro temporal superior durante o processamento de sinais com e sem significado.

Corina et al. (1999) referiram que o giro supramarginal esquerdo, no lobo frontal inferior, parece ter uma importância particular no processamento fonológico da língua de sinais. Os autores mostraram que a estimulação direta dessa região ocasiona erros na seleção apropriada da configuração das mãos e movimentos durante a produção de sinais.

Ativações em regiões do córtex pré-frontal (BA 46 e BA 9) também foram encontradas em tarefas de geração de palavras em inglês por Lurito et al. (2000) e de verbos em Língua de Sinais Americana por San José-Robertson et al. (2004), sugerindo que essas regiões podem estar relacionadas com tarefas de seleção lexical.

Além das áreas frontotemporais, a tarefa EL sinais desencadeou ativação no lobo parietal inferior. A literatura atribui um papel especial para o lobo parietal no processamento da língua de sinais. Robustas ativações foram relatadas nessa região por MacSweeney et al. (2008) durante a produção da língua de sinais. Além disso, o lobo parietal inferior foi recrutado durante a imitação e produção de movimentos e configurações das mãos e também quando estes estímulos foram passivamente observados ou imaginados, conforme referem Rizzolatti e Craighero (2004).

Por sua vez, a ativação do giro do cíngulo em tarefas fonológicas pode estar relacionada aos estágios mais elevados da seleção da resposta, da cognição e do controle motor, conforme argumentam San José-Robertson et al. (2004) e Picard e Strick, (2001).

Extensas regiões de ativação bilateral foram observadas em área prémotora e motora suplementar (BA 6) durante a tarefa de EL sinais. Esse achado pode ser atribuído à intenção de planejamento do movimento durante a atividade de gerar sinais em Libras. De acordo com Matelli e Lupino (1997), a área 6 de Brodmann está envolvida na preparação do ato motor e recuperação da memória na resposta apropriada ao contexto e à execução de movimentos selecionados.

Importa destacar que os participantes desse estudo apresentaram duas características muito singulares. A primeira diz respeito à diferença temporal entre os períodos de aquisição da Língua Portuguesa e da Libras. A segunda, por sua vez, refere-se ao fato de serem bilíngues em duas modalidades diferentes de língua - oral-auditiva e vísuo-espacial.

Quanto à diferença temporal entre a aquisição das duas línguas, os participantes informaram que a Língua Portuguesa foi a primeira a ser adquirida, o que ocorreu ainda na infância. Devido à surdez, a aquisição dessa língua só foi possível por meio do uso do aparelho de amplificação sonora - AAS e de um intenso trabalho de estimulação das habilidades auditivas, de linguagem oral feito por fonoaudiólogos e⁄ou professores especialistas em educação especial. Todos os participantes referiram que aprenderam Libras após o ingresso na escola por meio da convivência com colegas surdos. Assim, o contato com a Libras ocorreu após os sete anos de idade e, em alguns casos, após os dez anos.

Embora a Língua Portuguesa tenha sido adquirida anteriormente à Libras, a tarefa EL sinais proporcionou ativações corticais mais intensas que a tarefa EL oral. Esse achado sugere que, embora adquirida posteriormente, a Libras é a língua que proporcionou maiores experiências linguísticas para esses participantes. A esse respeito, Harrison, Lodi e Moura (2005) discutem a complexidade em relação à definição da língua de sinais como primeira língua, no sentido de que, além da origem, ou seja, qual língua foi primeiramente desenvolvida, devam ser considerados outros critérios como com qual língua a pessoa se identifica e é identificado pelos outros como falante, qual a língua de melhor competência e a mais utilizada socialmente.

A distinção entre diferentes períodos de aquisição das línguas é proposta por Hamers e Blanc (1989) ao considerarem as pessoas que adquiriram a segunda língua na idade adulta, bilíngues tardias em relação àquelas que a adquiriram durante os estágios iniciais de aquisição e desenvolvimento da linguagem, sendo essas últimas consideradas bilíngues precoces.

Quanto ao envolvimento das áreas corticais, Gomez-Tortosa et al. (1995) e Zatorre (1989) investigaram o processamento da linguagem em bilíngues precoces e tardios e constataram o envolvimento das áreas de Wernicke e Broca para as duas condições. A esse respeito, Kim et al. (1997) realizaram IRMf em tarefa de expressão da linguagem oral com participantes bilíngues tardios e precoces. O objetivo do estudo era determinar a relação espacial no córtex cerebral entre a língua nativa e a segunda língua. Seus achados mostraram que os centros de ativação da linguagem foram espacialmente distintos de acordo com a condição bilíngue do participante. A área de Broca esteve prioritariamente envolvida quando a segunda língua foi adquirida tardiamente. Por sua vez, a área de Wernicke mostrou pouca ou nenhuma diferença espacial em relação à idade de aquisição da língua.

O ponto envolvendo modalidades diversas de línguas também merece ser discutido. Isso porque os estudos envolvendo bilinguismo geralmente são desenvolvidos com condições unimodais. Essas condições se referem às pessoas fluentes em duas línguas de mesma modalidade. Diferentemente de tais estudos, nossos participantes surdos são fluentes em duas línguas de modalidades diferentes: uma oral-auditiva e outra vísuo-espacial. Esse grupo apresenta uma condição muito particular de bilinguismo, uma vez que cada língua faz uso de sistemas sensoriomotores distintos, tanto para a compreensão quanto para a produção. Além disso, os fatores linguísticos, sociais, educacionais e culturais envolvidos no bilinguismo relacionado à surdez são distintos daqueles relacionados ao bilinguismo que ocorre entre as línguas orais.

Em geral, as pesquisas envolvendo bilíngues bimodais são realizadas com participantes ouvintes que são filhos de pais surdos. Nesse âmbito, Bavelier et al. (2001) referiram que a condição desses ouvintes bilíngues bimodais é consequência da aquisição simultânea de duas línguas: a de sinais, pelas interações linguísticas entre os familiares, e a oral, pela convivência com a comunidade ouvinte. Capek et al. (2008), Emmorey e McCullough (2009) e MacSweeney et al. (2002b) sugeriram que tal condição possa interferir na organização cerebral das línguas. Seus estudos revelaram que, quando comparados aos participantes surdos, os ouvintes bilíngues apresentaram predomínio de ativações corticais em regiões posteriores do córtex temporal superior esquerdo para tarefas de compreensão da língua de sinais. Esses trabalhos discutiram que as diferenças na organização neural podem ser decorrentes de o processamento da fala priorizar regiões anteriores do sulco temporal superior, possivelmente pela necessidade em segregar o processamento da fala do processamento do sinal nesta região. Além disso, Keehner e Gathercole (2007) ressaltaram que a aquisição da língua de sinais por ouvintes, mesmo na idade adulta, poderia causar adaptações nos processos cognitivos associados com a manipulação da informação vísuoespacial.

Poucos trabalhos investigam os mecanismos corticais envolvidos no processamento da linguagem em participantes surdos bilíngues bimodais. Um grupo de pesquisa liderado por Ruth Campbell e Cheryl M. Capek, da Universidade de Londres, foi pioneiro nessas investigações. Entretanto, ao contrário do nosso trabalho, o grupo pesquisou aspectos relacionados à percepção da fala por meio de leitura orofacial (LOF) em tais participantes.

Cabe ainda ressaltar que os participantes surdos desses estudos eram filhos de pais surdos.

Capek et al. (2008) usaram IRMf para analisar o processamento da linguagem em inglês e em Língua Britânica de Sinais por surdos bilíngues nessas línguas. Aspectos comuns no processamento das duas línguas foram encontrados por desencadearem ativações em regiões perisylvianas, tanto para as palavras em inglês quanto para os sinais. As diferenças mostraram que os estímulos na língua oral eliciaram maior ativação no córtex temporal medial e superior esquerdo do que na língua de sinais. Por outro lado, a língua de sinais gerou maior ativação na região têmporo-parieto-occipital em ambos os hemisférios cerebrais.

De maneira semelhante, em nosso estudo, a tarefa EL oral demonstrou que a intenção da articulação oral das palavras gerou ativação em regiões do giro temporal médio e superior esquerdo. A tarefa EL sinais, por sua vez, demonstrou que a intenção na produção em sinais eliciou ativações bilaterais em porções do giro temporal médio e superior, bem como em regiões têmporo-parieto-occipitais.

Em uma segunda publicação daquele mesmo grupo de pesquisa, Campbell e Capek (2008) realizaram IRMf para avaliar o processamento da língua oral em surdos bilíngues bimodais quando comparado com o de ouvintes monolíngues. Seus achados demonstraram que o córtex temporal superior esquerdo, incluindo regiões auditivas, foi fortemente ativado nos participantes surdos, quando comparados com participantes ouvintes, durante o processamento de lista de palavras articuladas silenciosamente em língua inglesa.

Por último, Capek et al. (2010) analisaram a proporção com que a ativação no córtex temporal superior posterior foi modulada pelo conhecimento linguístico, independentemente das diferenças de modalidade das línguas. Usando IRMf, eles novamente compararam os surdos bilíngues com ouvintes monolíngues que não conheciam a língua de sinais. Ambos os grupos realizaram tarefas com articulação de palavras em inglês e em sinais. Seus achados revelaram ativação no córtex temporal superior, bilateral, focalizado nos giros temporais superiores posteriores (BA 42, BA22). Em ouvintes, essas regiões tiveram predomínio de ativação para estímulos de fala, enquanto os surdos mostraram níveis similares de ativação para ambas as línguas. Esses resultados sugeriram que as regiões temporais superiores e posteriores são altamente sensíveis ao processamento da linguagem, independentemente da modalidade do estímulo.

A tarefa EL sinais, quando comparada à tarefa EL oral, mostrou predomínio de ativações que envolveram regiões frontais, temporais, parietais, pré-centrais e occipitais. Tais achados incitam importantes questionamentos acerca do significado da língua de sinais para as pessoas surdas. Ainda que a língua de sinais tenha sido adquirida após o período considerado propício à aquisição e desenvolvimento da linguagem, o desempenho na tarefa EL sinais mostrou que ela foi realizada com maior competência linguística, assemelhando-se aos processos fonológicos realizados por ouvintes em suas línguas orais.

7. CONCLUSÕES

A IRMf, pela técnica BOLD, mostrou ser uma importante ferramenta para a visualização dos campos expressivos da linguagem desenvolvidos por meio de tarefas em Libras e em Língua Portuguesa.

Os resultados encontrados e as discussões conduzidas sugerem que as investigações envolvendo as línguas de sinais são complexas e estão longe de serem prontamente elucidadas. As semelhanças e as diferenças com as línguas orais são fontes iniciais de investigações. Estudos dessa natureza, ao mesmo tempo em que valorizam suas características linguísticas, também despertam para a riqueza de detalhes envolvidos nos processos de aquisição e nas variáveis sociais, linguísticas, educacionais e culturais. A compreensão dos mecanismos corticais, envolvidos no processamento da língua de sinais, está longe de ser totalmente esclarecida e, por isso, abre portas para que futuros estudos possam contribuir cada vez mais para o seu entendimento.

Data de submissão: 25/02/2014.

Data de aprovação: 17/07/2014.

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    William Stokoe (1960) foi o primeiro a descrever as características linguísticas das línguas de sinais, comprovando que elas são línguas naturais assim como as línguas orais. Para melhor compreensão, consultar: STOKOE, W.
    Sign language structure: an outline of the visual communication systems of the American deaf. 2
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    2
    Para melhor entendimento acerca das abordagens educacionais em relação às pessoas surdas, consultar: CAPOVILLA, F.C. Filosofias educacionais em relação ao surdo: do oralismo à comunicação total ao bilinguismo.
    Revista Brasileira de Educação Especial, v.6, n.1, 2000.
    3
    Trata-se do paradigma utilizado na maioria dos centros que fazem estudos com IRMf e consiste em períodos de atividade alternados por períodos iguais de repouso. Assim, ocorre a geração de estados "
    on" e "
    off" da atividade neuronal, os quais se correlacionarão diretamente à intensidade perfusional (e, consequentemente, ao sinal
    BOLD) na área de interesse. Obtém-se, assim, um estado da atividade neuronal que estará, a princípio, correlacionada a um aumento de perfusão local. Esse método visa a localizar as regiões que responderam seletivamente à alternância entre a execução da atividade e os períodos de repouso. Sua maior vantagem está na capacidade de localização das áreas anatomofuncionais de interesse.
    4
    O sistema de coordenadas Talairach é embasado no plano entre duas formações anatômicas típicas: a comissura anterior e a comissura posterior. Após a definição do plano de coordenadas, são geradas quatro linhas de referências que formam o sistema de grade Talairach, que é estabelecido com base nas máximas dimensões do cérebro. O passo seguinte, de demarcação, é utilizado para definir a periferia cortical. Depois da demarcação das dimensões máximas de cada cérebro, são feitas contrações e expansões na imagem do cérebro para que ele preencha este sistema de grade. Por meio desses processos, é possível normalizar cada cérebro para uma estrutura padrão.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      17 Jul 2014
    • Recebido
      25 Fev 2014
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