Resumos
Neste texto, analisam-se as práticas de leitura de textos em português, construídas por alunos surdos e professora ouvinte, observando-se a forma como esses participantes usam a Língua de Sinais Brasileira (Libras) para ler e se referir ao texto escrito. Para isso, foram exploradas contribuições de estudos do Letramento e estudos da Leitura que focam em seu aspecto social, além de trabalhos do campo da surdez pertinentes ao tema. A partir dessa perspectiva, desenvolveu-se uma pesquisa de cunho etnográfico numa turma de alunos surdos, do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte. A pesquisa identificou padrões interacionais relativos ao uso do português sinalizado e da Libras, contribuindo para a compreensão da importância de estratégias didáticas que considerem as diferenças entre as duas línguas e o uso sistemático de técnicas baseadas na alternância de línguas.
surdos; leitura; mescla linguística; português
In this paper we analyze the practices of reading texts in Portuguese, built by deaf students and a hearing teacher, observing how these participants use Brazilian sign language (Libras) to read and refer to the written text. To achieve this, contributions from Literacy Studies and studies that focus on the social aspect of reading were explored, as well as field studies on the topic of deafness. From this perspective, an ethnographic research was developed in a class of deaf students in the 9th grade of elementary school in a public school of Belo Horizonte. The research identified interactional patterns related to the use of signed Portuguese and of Brazilian Sign Language (Libras), which has contributed to the understanding of the importance of teaching strategies that consider the differences between the two languages and the systematic use of techniques based on codeswitching.
deaf; reading; language mixing; Portuguese
O processo de ensino-aprendizagem da leitura em uma turma de alunos surdos: uma análise das interações mediadas pela Libras1
The teaching-learning process of reading in a class of deaf students: an analysis of interactions mediated by brazilian sign language
Giselli Mara da Silva*
Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte - Minas Gerais / Brasil
RESUMO
Neste texto, analisam-se as práticas de leitura de textos em português, construídas por alunos surdos e professora ouvinte, observando-se a forma como esses participantes usam a Língua de Sinais Brasileira (Libras) para ler e se referir ao texto escrito. Para isso, foram exploradas contribuições de estudos do Letramento e estudos da Leitura que focam em seu aspecto social, além de trabalhos do campo da surdez pertinentes ao tema. A partir dessa perspectiva, desenvolveu-se uma pesquisa de cunho etnográfico numa turma de alunos surdos, do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte. A pesquisa identificou padrões interacionais relativos ao uso do português sinalizado e da Libras, contribuindo para a compreensão da importância de estratégias didáticas que considerem as diferenças entre as duas línguas e o uso sistemático de técnicas baseadas na alternância de línguas.
Palavras-chave: surdos, leitura, mescla linguística, português.
ABSTRACT
In this paper we analyze the practices of reading texts in Portuguese, built by deaf students and a hearing teacher, observing how these participants use Brazilian sign language (Libras) to read and refer to the written text. To achieve this, contributions from Literacy Studies and studies that focus on the social aspect of reading were explored, as well as field studies on the topic of deafness. From this perspective, an ethnographic research was developed in a class of deaf students in the 9th grade of elementary school in a public school of Belo Horizonte. The research identified interactional patterns related to the use of signed Portuguese and of Brazilian Sign Language (Libras), which has contributed to the understanding of the importance of teaching strategies that consider the differences between the two languages and the systematic use of techniques based on codeswitching.
Keywords: deaf, reading, language mixing, Portuguese.
1. INTRODUÇÃO
Com a difusão das propostas de educação bilíngue para pessoas surdas, vem-se discutindo intensamente a mediação da língua de sinais (LS) nas práticas de leitura de surdos usuários da Libras. De modo geral, os trabalhos denunciam a prevalência de práticas que desvalorizam a Libras como língua completa e apropriada para mediar a construção de sentidos, o que levaria a uma leitura lexicalizada, em que se estabelece uma relação biunívoca entre palavra do português e sinal da Libras e ao uso de "sinais" para representar elementos gramaticais do português (BOTELHO, 2002; LODI, HARRISON, CAMPOS, 2002, entre outros). Tais práticas, típicas da abordagem educacional conhecida como Comunicação Total, privilegiam a representação visual da gramática do português em detrimento do uso da Libras nas interações, levando ao uso de mesclas linguísticas que, não raras vezes, dificultam a compreensão pelos surdos e, consequentemente, sua aprendizagem.
Apesar de a mescla linguística ser um fenômeno natural em contextos de contato linguístico, Silva (2005, p.53) afirma que o uso de mesclas em contextos bilíngues tem gerado muita polêmica. De modo geral, pode-se dizer então que, no espaço da sala de aula de surdos, a relação entre as duas línguas presentes torna-se bastante complexa e traz inúmeros desafios para os surdos e seus professores no processo de ensino-aprendizagem da leitura, que precisam transitar entre essas duas línguas durante as aulas.
Como afirma Bloome (1987), um dos compromissos da Etnografia é documentar a história dos grupos minoritários e conhecer o que realmente acontece no cotidiano da sala de aula. Nesse sentido, apesar de hoje a educação bilíngue para surdos estar em plena difusão, faltam trabalhos que abordem como as práticas de ensino têm sido consolidadas e como o acesso às duas línguas tem sido construído localmente no cotidiano da sala de aula. Assim, a partir de uma perspectiva social de leitura e de uma perspectiva etnográfica de pesquisa, pretende-se examinar como alunos surdos e professora ouvinte de uma turma de 9º ano do Ensino Fundamental, todos usuários da Libras, constroem os significados para as práticas de leitura e lidam com as duas línguas (Libras e português) ao longo das interações na sala de aula.
Para tanto, o artigo foi organizado da seguinte forma: na seção inicial, apresentou-se o tema e a presente organização do artigo; na seção 2, delineiase o referencial teórico da pesquisa e na (3), a lógica de pesquisa adotada; na seção (4), apresentam-se os eventos de leitura e a análise dos dados; e, finalmente, na seção (5), desenvolvem-se os apontamentos finais e indicam-se algumas implicações da pesquisa no que tange ao ensino da leitura.
2. LEITURA COMO PROCESSO SOCIAL
Segundo Bloome e Green (1982), avanços em vários campos do conhecimento têm apontado novas direções no estudo da leitura, que passa a ser vista numa perspectiva multidisciplinar. A leitura então é tomada não somente como um processo linguístico-cognitivo, mas também como um processo social. Segundo esses autores, a natureza social da leitura tem sido estudada sob dois pontos de vista: (1) leitura como processo embebido e influenciado pelo contexto social; (2) leitura como atividade social em que ações de leitura são usadas para mostrar pertencimento ao grupo, compartilhar informações, etc. Os estudos que se orientam pela primeira perspectiva mostram os diferentes níveis de contextos nos quais ocorrem as práticas de leitura: contexto da sala de aula, contexto da comunidade, entre outros. Observa-se como a leitura se relaciona a tais contextos, considerandose que esses afetam a natureza dos processos de leitura e do desempenho observado. Os estudos orientados pela segunda perspectiva consideram que os comportamentos durante a leitura são usados para sinalizar pertencimento ao grupo, sendo que o contexto da leitura é algo construído na interação entre os participantes.
Nesta pesquisa, adoto especialmente a segunda perspectiva: "A leitura é vista como uma atividade social em que ações de leitura são usadas para mostrar pertencimento ao grupo, para compartilhar informações, para adquirir status ou posição ou para estabelecer interações sociais (Bloome, 1980, 1981a, 1981b)." (BLOOME; GREEN, 1982,p.310)2 . Essa perspectiva coloca a leitura como algo definido localmente pelos participantes, que constroem padrões de comportamentos, normas e expectativas relativos a eventos de leitura de textos. Assim, participar de práticas de leitura significa tornar-se membro de uma comunidade, onde se determinam formas apropriadas de se constituírem eventos com a linguagem escrita, isto é, formas de interagir com textos escritos e interpretá-los (BLOOME, 1987, p.101).
Importante salientar que, apesar de se focalizar especificamente a leitura, poderíamos pensar sobre as mesmas questões abordando o Letramento. Castanheira (2004), ao discutir sobre o papel central da linguagem nos processos de ensino-aprendizagem, enfatiza como, nas últimas décadas, a compreensão desse papel "impulsionou o abandono de uma abordagem individualista da aprendizagem e de uma visão de ensino como processoproduto em favor de uma perspectiva interpretativista" (CASTANHEIRA, 2004, p.22). Citando vários pesquisadores representativos dessa mudança, essa autora mostra como a adoção da perspectiva interpretativista trouxe consequências para a compreensão da vida na sala de aula, que passa a ser vista como discursivamente construída por seus membros através de suas interações verbais e não verbais. Nessa perspectiva, a sala de aula é considerada como uma cultura, ou seja, seus membros irão construir padrões relativamente a formas de pensar, agir, avaliar e orientar suas ações e interpretações das ações dos outros e negociar formas de participar dos eventos ocorridos nesse contexto, assim como também construir e reconstruir o(s) significado(s) de ser letrado e as formas de participar das práticas letradas.
Assim, ao usar o termo Letramento, considera-se que não há um "único" letramento, mas letramentos, já que uma única definição não captaria a diversidade de práticas em diferentes grupos. Considera-se assim que diferentes grupos constroem concepções diferenciadas, além de ações, práticas e demandas de letramento também diferenciadas. No entanto, embora os membros de um mesmo grupo compartilhem determinados padrões, Bloome (1986 apud CASTANHEIRA; GREEN; DIXON, 2007) aponta que o letramento não é estático ou monolítico. Os membros do grupo, apesar de compartilharem enquadres sobre os usos da leitura e da escrita, a partir do momento em que se reúnem e interagem, estabelecem um contexto comunicativo compartilhado e podem redefinir formas de se engajar na leitura e na escrita de textos, reconstruindo a definição local de letramento e, consequentemente, de leitura. Daí a importância de se considerar a análise dos eventos interacionais, observando como a situação específica é definida pelos membros da sala de aula, como concebem a leitura num determinado evento, a partir de padrões já construídos, observando a história do grupo.
Logo, no processo de análise do letramento em construção, torna-se essencial o conceito de evento: segundo Bloome e Bailey (1992), eventos seriam interações face a face entre pessoas numa sequência discursiva com início, meio e fim reconhecidos. Ao participarem de eventos discursivos, os membros de um grupo social (re)constroem significados relativos ao que estão fazendo juntos; por exemplo, o que é considerado ler, escrever, ser letrado ou ser aluno de uma determinada série numa escola pública.
Além disso, Bloome e Bailey (1992) destacam a importância de se reconhecer a historicidade dos eventos que podem se relacionar historicamente num mesmo dia ou em diferentes dias de aula. Nesse sentido, a interpretação dos significados dos eventos pelos participantes também está relacionada a essa historicidade, ou seja, a relação histórica entre os eventos pode conformar ou limitar os significados, a linguagem, os materiais disponíveis aos participantes. Então, um enunciado precisa ser visto como resposta a um anterior ou como uma refração a um enunciado futuro, o que situa esse significado na historicidade do evento.
Nesse sentido, durante esta pesquisa, busquei observar essa relação histórica entre eventos, primeiramente a partir da realização da observação participante durante três meses, buscando examinar de que forma o grupo construía sua história com a leitura. Procurei observar também como eventos de diferentes aulas se relacionavam, identificando os padrões construídos ao longo do tempo e como, em eventos específicos, os participantes utilizavam esses padrões ou reconstruíam novas formas de se engajar na leitura de textos e novos significados para essas práticas, e como alunos e professores interpretavam os textos ou as ações uns dos outros, relacionando-os a outros eventos ocorridos naquele grupo.
Ao tomar o conceito de evento para a análise da leitura no grupo, torna-se possível destacar a natureza social da leitura, mostrar como os eventos vão sendo construídos e reconstruídos ao longo das interações em sala de aula e, consequentemente, como os significados para a leitura vão também sendo (re)construídos. Por exemplo, ao analisar os eventos de leitura na turma pesquisada, busquei observar com quem os participantes interagiam em cada atividade construída pelo grupo, de que forma utilizavam a Libras, seja para interagir e/ ou para ler o texto em português em diferentes situações e como esse uso era (re)negociado pelos participantes a cada evento.
2.1. Participação no grupo e acesso às práticas de letramento
Relativamente à construção da definição de letramento por membros de uma sala de aula, Bloome (1987, 1989) discute também como o acesso às práticas de letramento e à aprendizagem é construído pelos membros do grupo, destacando que ter acesso a eventos de leitura em sala de aula requer mais que estar presente, "envolve obter oportunidades de interagir com o texto ou a linguagem nas formas apropriadas para o desenvolvimento da leitura escolar" (BLOOME, 1987, p.101).3 Bloome (1989) aponta dois grupos de fatores que influenciam a comunidade da sala de aula: a competência comunicativa e a natureza do trabalho escolar.
Observando-se a natureza social da sala de aula, estudos têm mostrado que os alunos aprendem a participar apropriadamente nos eventos da sala de aula, incluído aí o uso da linguagem. Esses estudos sugerem que a sala de aula pode ser vista como um espaço cultural e comunicativo específico, sendo que os alunos aprendem a participar nesse ambiente comunicativo, desenvolvendo a competência comunicativa para as interações nesse espaço em diferentes eventos. Eles precisam aprender nesse espaço como falar, quando, com quem, de que forma demonstrar ser membro do grupo.
Essa aprendizagem envolve ainda vários tipos de eventos comunicativos em que se desenvolvem diferentes formas de participação e de uso da linguagem. Segundo Erickson e Shultz (2002), a competência comunicativa, além de abranger a capacidade de produzir elocuções apropriadas à situação, também envolve a capacidade de monitorar as mudanças nos contextos para, assim, modificar também seu comportamento verbal ou não verbal. Bloome (1989) destaca que, assim como a competência comunicativa é importante na organização do grupo, os grupos, na medida em que se organizam, também proveem uma base para se desenvolver a competência comunicativa para participar do grupo (BLOOME, 1989, p.57-8).
Nesse processo de aprender a participar de forma apropriada na sala de aula, também precisam ser consideradas as diferenças culturais entre a escola e outros grupos sociais dos quais o aluno faz parte. Bloome (1989) afirma que as formas de organizar e realizar práticas de letramento, em casa e em outros grupos, pode influenciar a forma através da qual os estudantes se orientam no comportamento interacional com os textos e as pessoas na escola ou na sala de aula. Essa participação passa pela avaliação do professor no que diz respeito às habilidades acadêmicas, o que, por sua vez, pode gerar ou minar o acesso às oportunidades de aprendizagem.
Em relação às diferenças da leitura na escola e da leitura em outros espaços, Bloome (1989), tomando o conceito de "trabalho escolar" de Doyle (1983), discute a influência da natureza do trabalho escolar nas práticas de letramento em sala de aula, que ocorrem sob um contrato entre alunos e professores a respeito de seus papéis em sala de aula e dos objetivos estabelecidos por cada um. Comparando a situação da sala de aula com outros contextos não escolares, conclui:
Além disso, os alunos estão susceptíveis a orientar os trabalhos escolares em termos de um contrato implícito de um nível de desempenho em vez de se orientar da forma como o fazem em tarefas fora da sala de aula, visto que as tarefas não escolares tendem a ser organizadas com o objetivo de ler para aprender, ler para fazer, ou ler para se informar (Heath, 1982, 1983; Hutson, 1987), e não ler para obter nota. (BLOOME, 1989, p.57)
Esse contrato implícito entre professor e aluno irá influenciar a forma como os alunos interpretam e realizam as atividades propostas pelo professor, diferenciando então as práticas de letramento do contexto escolar das de outros contextos. Assim, segundo Bloome e Bailey (1992), é importante considerar, na construção dos significados dos eventos em sala de aula, alguns aspectos específicos das interações nesse espaço, tal como a "realidade" diferenciada da sala de aula, caracterizada pelo que Bloome, Puro e Theodorou (1989, apud BLOOME; BAILEY, 1992) chamam de "procedural display".
Como disse, os eventos estão envoltos no contexto das interações dos participantes da sala de aula para construírem as aulas das quais participam. Para isso, estudantes e professor mostram uns aos outros uma série de comportamentos acadêmicos e interacionais que, para um grupo específico, são considerados como realização de uma dada tarefa escolar ou como participação na sala de aula. Independentemente de se aprenderem ou não os conteúdos e as estratégias de leitura, professores e alunos adotam esses procedimentos durante a aula para sinalizar sua participação aos demais membros do grupo. A construção de significados de um evento está também relacionada a esses procedimentos, ou seja, ao "procedural display" (BLOOME, 1987; BLOOME; BAILEY, 1992). Em relação ao grupo estudado nesta pesquisa, observei, por exemplo, que, em muitas situações, a sinalização do texto se configura como uma forma de marcar a participação na aula de leitura sem, contudo, garantir que os alunos estejam realmente compreendendo o conteúdo do texto, o que se torna mais visível em momentos em que a sinalização em Libras, feita na ordem sintática do português, torna-se sem sentido.
Nessa perspectiva social e dinâmica do letramento, é necessário que se observem as ações dos participantes do grupo, as responsabilidades que assumem ou atribuem aos outros, na aceitação ou rejeição de respostas, no engajamento com textos diversos (CASTANHEIRA; GREEN; DIXON, 2007, p.9). Segundo Castanheira et al. (2001, p.357), nessa perspectiva, o pesquisador busca examinar como o letramento "aparece" na fala, nas ações e na escrita e como, através de suas ações, os membros tornam visíveis uns para os outros o que é considerado como discurso adequado e como práticas de letramento num dado grupo. Nesse processo, busca-se compreender como cada elemento contribui na definição (ou nas definições) e nos significados de letramento para o grupo.
A partir das contribuições teóricas discutidas acima, orientei a análise por questões como: quem está fazendo o que, com quem, para que, quando, onde, com que consequências. Ao examinar essas questões, coloquei o foco nas ações desenvolvidas pelos participantes, buscando identificar os eventos interacionais construídos por eles à medida que interagiam uns com os outros em sala de aula. Tal análise busca evidenciar como, o que e para que se lê e quais os significados da leitura para alunos e professores, membros do grupo social observado.
Nesse sentido, adoto uma perspectiva etnográfica para empreender a pesquisa, já que essa concepção social de leitura requer uma abordagem que possibilite observar e analisar o que as pessoas fazem em contextos particulares, à medida que a história do grupo se desenvolve. Além disso, a pesquisa etnográfica tem sido utilizada em muitos trabalhos que discutem a dimensão social do Letramento e da leitura, ainda que por meio de diferentes abordagens. Assim, na próxima seção, apresento considerações a respeito da lógica de pesquisa adotada neste estudo.
3. LÓGICA DE PESQUISA ADOTADA
O grupo pesquisado é uma turma de alunos surdos do 9º ano do Ensino Fundamental, de uma escola da rede pública de Belo Horizonte, onde, pelo número de surdos e por se reconhecerem suas especificidades linguísticas e educacionais, foram organizadas classes somente de surdos, nas quais a língua das interações face a face é a Libras. A turma é composta por sete alunos, com idades entre 14 e 27 anos, fluentes em Libras, com exceção de uma aluna que apresenta dificuldades de comunicação, devido à aquisição bastante tardia dessa língua. A professora de português é formada em Pedagogia e tem fluência em Libras.
A observação em sala de aula foi realizada durante três meses. Foram essenciais nesse processo a construção das notas de campo e as filmagens, que possibilitaram o registro das interações, bem como as transcrições e análises posteriores. Inicialmente o objetivo da observação foi conhecer as práticas cotidianas do grupo de forma mais ampla. Pretendia então conhecer as práticas de letramento, buscando-se os fenômenos culturalmente marcados pelo grupo, suas formas de nomear essas práticas, sua organização. Implícita a essa abordagem está a ideia, presente numa pesquisa de cunho etnográfico,5 de que "determinadas questões são geradas e identificadas através do tempo e dos eventos, em resposta à coleta de dados e à análise conduzida" (GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005, p. 18).
Foram observadas 36 aulas de português, ao longo de três meses, que foram analisadas para se construir um panorama das aulas, sendo que: 29 aulas contemplaram atividades de leitura de textos; 2 aulas contemplaram produção de textos escritos; e 9 aulas apresentaram atividades de estudo de gramática. Há uma predominância clara das atividades voltadas ao ensino de leitura, o que nos levou, a partir de um processo iterativo-responsivo com os dados, a focar nosso estudo etnográfico nas práticas de leitura, já que era algo marcado culturalmente para esse grupo. Esse processo iterativo-responsivo (CASTANHEIRA et al., 2001, p.359) constituiu-se de uma constante interação com os dados de pesquisa, passando reiteradamente pelas etapas de representação dos dados, análise dos dados e construção de novas questões de pesquisa.
Com as transcrições e microanálises das interações das primeiras aulas filmadas, pude observar que, no grupo, apesar de o foco inicial da aula de leitura ser o vocabulário, os participantes não param sua leitura na relação sinal-palavra e buscam construir de outras formas a compreensão do texto. Foi evidenciado, com a análise panorâmica de todas as aulas e com a transcrição e análise de algumas aulas escolhidas, que as aulas de leitura eram organizadas em diferentes atividades. Essa análise inicial levou então a uma questão mais específica - Como os participantes constroem os significados para as práticas de leitura e lidam, em diferentes momentos do processo de leitura, com as diferenças linguísticas entre Libras e português? - questão essa que guiou a análise dos eventos em sala de aula. Alguns eventos serão apresentados nas seções seguintes, sendo primeiramente introduzidos por um panorama das aulas de português.
Antes de passar ao panorama das aulas, apresentam-se resumidamente as convenções de transcrição utilizadas para transcrição dos eventos. Basicamente recorremos a convenções utilizadas por Ferreira-Brito (1995) e Quadros e Karnopp (2004), fazendo algumas adaptações, conforme a descrição a seguir: (1) as palavras em português escritas em maiúsculas buscam representar o conceito expresso pelo sinal; (2) quando duas ou mais palavras são necessárias para expressar esse conceito, essas foram ligadas por hífen (ex.: NÃO-TER); (3) as palavras realizadas em datilologia foram registradas em letras maiúsculas separadas por hífen; (4) os verbos foram representados por verbos no infinitivo, mesmo quando apresentavam flexão; (5) os verbos com concordância foram representados no infinitivo juntamente com numerais que indicam o sujeito ou objeto. Os numerais indicam as três pessoas do discurso (ex.: 1RESPONDER2). (6) as expressões não manuais foram indicadas logo após a palavra ou expressão em que aparecem. O trecho está indicado entre (< >), seguido dos seguintes símbolos: interrogação - ?; exclamação - !; negação - ñ; topicalização- t (ex.: <POR-QUE>?); (7) os classificadores foram representados por meio de palavras ligadas por hífen entre (< >), precedidos da sigla CL. (ex.: CL<UM-IR-EM-DIREÇÃO-A-OUTRO>); (8) indicou-se também alguns comentários entre colchetes - [ ] e trechos incompreensíveis entre parênteses - ( ).
4. PRÁTICAS DE LEITURA NA TURMA DE SURDOS
Segundo Bloome e Green (1982), a leitura, como processo cognitivo, não é diretamente observável. Entretanto, assumindo-se a leitura como processo social, podemos observar o que, para os membros de um grupo, é considerado como leitura numa dada atividade, por meio das interações sociais desse grupo, das ações de seus membros. Nessa perspectiva de leitura como processo social, buscando compreender a definição local da leitura para os membros do grupo, observei as ações realizadas pelos membros da sala de aula, examinando-se como interagem com os textos e como os interpretam. Nessa perspectiva, busquei compreender como, nesse espaço escolar, os participantes da sala de aula organizam suas atividades de leitura e identifiquei, então, alguns padrões de atividades realizadas nessa turma de surdos as quais descreverei a seguir:
1. Registrando o texto no quadro: a professora registra o texto no quadro para que os alunos copiem ou para torná-lo visível ao grupo em outros momentos, como na sinalização do texto e na correção de exercícios.
2. Distribuindo o xerox: a professora oferece aos alunos xerox de textos a serem lidos.
3. Copiando o texto: os alunos copiam o texto nos cadernos ou fichários.
4. Lendo e sinalizando textos: os alunos, nas carteiras, sinalizam os textos após a cópia do texto, individualmente ou em interação com algum colega. A professora observa, sem interferir, ou se engaja em outras atividades.
5. Explicando a classificação do texto: a professora explica aos alunos a classificação dos textos, relativamente aos tipos ou aos gêneros textuais.
6. (Re)Conhecendo palavras: a professora aponta algumas palavras do texto e pergunta aos alunos o sinal ou ela mesma mostra o sinal, ou os alunos tomam a iniciativa de fazê-lo, perguntando antecipadamente à professora.
7. Examinando a compreensão do texto: a professora direciona aos alunos perguntas em Libras sobre o texto.
8. Explicando o texto: a professora aponta trechos do texto, explica seu significado e, em alguns casos, a estrutura gramatical das sentenças.
9. Sinalizando o texto: a professora apresenta aos alunos uma retextualização do texto em Libras ou solicita que eles o façam para toda a turma no espaço à frente, próximo ao quadro.
10. Registrando exercício no quadro: a professora registra o exercício no quadro para que os alunos copiem ou para torná-lo visível no momento das correções.
11. Copiando exercício: os alunos copiam o exercício nos cadernos ou fichários.
12. Registrando no quadro/ copiando nos cadernos o "para casa": a professora registra no quadro o "para casa" e os alunos copiam.
13. Sinalizando e explicando o exercício: a professora sinaliza todas as questões dos exercícios e/ ou oferece explicações sobre algumas questões ou palavras.
14. Tirando dúvidas: os alunos perguntam, e a professora esclarece as dúvidas sobre o texto ou os exercícios.
15. Mostrando/ avaliando os exercícios individualmente: os alunos vão até a mesa da professora para mostrar a ela as atividades realizadas; ou, por iniciativa da professora, ela vai até as carteiras e verifica as atividades.
16. Corrigindo os exercícios: a professora pergunta aos alunos a resposta ou oferece a eles respostas que, às vezes, são registradas no quadro ou marcadas no próprio texto registrado no quadro.
Essas atividades não necessariamente ocorriam numa ordem fixa e prédeterminada, variando ao longo das aulas observadas. A análise panorâmica dessas atividades permitiu identificar que essas são organizadas com diferentes objetivos, sendo que a fronteira entre elas é marcada pelos participantes por meio de mudanças na forma de apontar o texto (a professora, por exemplo, aponta palavras específicas no reconhecimento de vocabulário ou o início das frases ou trechos mais longos em outros momentos), pela mudança dos espaços onde se dão as interações (nas carteiras ou à frente próximo ao quadro.), pelos participantes envolvidos, como veremos mais claramente na análise dos eventos transcritos adiante. Todas essas atividades colocam em jogo o uso das duas línguas na sala de aula - o português escrito e a Libras, que se relacionam e se influenciam mutuamente, numa relação altamente complexa que, como já se disse, precisa ser mais bem compreendida.
A título de ilustração e para contrastar com os eventos que serão apresentados adiante, fica evidente não só a influência do português na Libras, visível em formas de português sinalizado, como também a influência da Libras no português escrito pela professora. Em alguns exercícios de interpretação de textos, a professora, ao registrar as perguntas no quadro, modificou a ordem das palavras em português com o objetivo de facilitar a leitura pelos alunos, comentando explicitamente comigo durante uma aula "Às vezes eu mudo a ordem do português. Tá lá Ela está em qual série? Aí eu coloco Ela está em série qual? pra ver se ajuda" (FIGURA 1).
A despeito da diversidade das atividades realizadas pelos participantes e da riqueza da relação entre as línguas, selecionamos para este artigo atividades que possibilitam a análise mais direta do uso da Libras para a leitura de textos em português, a saber, as atividades: Lendo e sinalizando textos, Explicando o texto e Sinalizando o texto, além de um evento pontual ocorrido depois da sinalização de um texto, em que a professora discute a forma como a Libras foi usada para sinalizar o texto, que chamei de Redefinindo o uso da Libras para ler o texto. Todos esses três eventos, que serão analisados a seguir, ocorreram numa mesma aula, cuja sinopse será apresentada abaixo a fim de contextualizá-los. Esta sinopse contém os itens numerados conforme a sequência das atividades apresentadas acima.
A professora pediu aos alunos que copiassem o texto do quadro e, logo em seguida, (1) registrou o texto no quadro, (3) e os alunos copiaram. Assim que terminaram, (4) alguns alunos começaram a sinalizar, lendo o texto no quadro. (5) Passado algum tempo, a professora explica à turma o que seria um diálogo. (6) Em seguida, aponta algumas palavras no texto e faz o reconhecimento vocabular. (9) Depois, ela sinaliza o texto para os alunos e convida R e T
para sinalizarem o texto à frente. (9) Num primeiro momento, R e T olham para o texto no quadro, sinalizam e voltam a olhar seguindo a ordem das palavras do português. Então, a professora pede que eles façam novamente em Libras, sem olhar para o quadro. (9) Os alunos sinalizam o texto, a professora os parabeniza. (7) Em seguida, ela começa a fazer, em Libras, algumas perguntas sobre o texto.
4.1. Lendo e Sinalizando Textos
A atividade de leitura-sinalização "inicial" do texto, feita pelos alunos logo após a cópia do texto do quadro (Lendo e sinalizando textos), ocorria frequentemente nas aulas de leitura, e a análise permite examinar algumas questões relativas às especificidades dos surdos na leitura, aos processos de participação nas aulas de leitura e à aprendizagem da leitura.
Segundo a professora, nos anos anteriores, sinalizar o texto após a cópia do quadro não era um hábito da turma, sendo estimulado por ela. Para o grupo, ler o texto passa pela sinalização, já que a professora aprova esse comportamento, e a maioria dos alunos sinaliza enquanto lê. Como afirmam Castanheira et al. (2001), as formas de se engajar na leitura de textos, por exemplo, marcam o pertencimento ao grupo. Nesse caso, essa parece ser uma ação que identifica os alunos como membros dessa comunidade de leitura. Além disso, essa ação de sinalizar textos diz de expectativas em relação aos alunos, já que a professora afirma que, antes, eles ficavam sem "fazer nada", esperando os outros terminarem de copiar.
Apresenta-se abaixo um evento de leitura em que uma aluna (identificada como G) lê e sinaliza individualmente o texto. Nesse dia, outros alunos também sinalizavam o texto, e a aluna foi a primeira a começar a sinalizar, sozinha em sua carteira sem interagir diretamente com outros alunos. Apresento esse evento, no quadro 1, organizando em três colunas: na primeira, a numeração das linhas; na segunda, o texto lido; e na terceira, a transcrição da sinalização.
Primeiramente destaco o aspecto social dessa atividade de leitura. Para esse grupo, sinalizar o texto enquanto se lê individualmente é um comportamento que demonstra o engajamento na leitura. Portanto, mesmo sem se dirigir diretamente a ninguém, G olha para o texto no quadro e manifesta sua interpretação por meio dos sinais que realiza, tornando visível aos demais membros do grupo (e a mim) a forma como está interpretando o texto.
Ao observar a forma como G utiliza a Libras para sinalizar o texto, aponto algumas questões. Como se disse na introdução, muitos pesquisadores têm denunciado o fato de a escola de surdos, muitas vezes, favorecer a leitura bimodal do texto, como se o sentido fosse construído palavra por palavra. Essa leitura mais lexicalizada parece ser a forma escolhida por G nesse momento da leitura, apesar de se observar, em certos trechos, o uso de outras estratégias. Vejamos algumas características dessa leitura que podem nos indicar como os surdos constroem significados para as práticas de leitura e lidam com as duas línguas.
A leitura parte do reconhecimento vocabular, feita através da busca por um sinal referente a uma dada palavra, como se houvesse uma correspondência biunívoca entre Libras e português, sendo que a sinalização é feita na ordem gramatical do português na maior parte do tempo. Há vários exemplos ao longo desse evento de leitura que mostram essa questão e podem comprometer a compreensão do texto pela aluna; cito apenas alguns. Na linha (4) do quadro, na sinalização de "estou ótimo", a aluna sinaliza o verbo ESTAR em Libras, cujo sentido é estar, manter-se num determinado lugar, para "traduzir" o verbo de cópula do português. Quando há elementos do português que "supostamente" não teriam um item lexical correspondente em Libras, tais como artigos e preposições, a aluna não os sinaliza, mesmo quando alguns itens codificam informação semântica, como se pode ver na linha (6) com a preposição "para" indicando finalidade no trecho "para aproveitarmos e comermos o delicioso feijão tropeiro". Isso poderia ser traduzido em Libras pelo ritmo de sinalização e expressão facial.
Apesar dessa leitura mais lexicalizada, pode-se perceber no evento elementos que indicam que a aluna vai além dessa correspondência sinalpalavra: na sinalização da expressão "que horas", a aluna passa para a Libras, sem uso do pronome interrogativo correspondente a "que", indicando a interrogativa pela expressão facial. E ainda ocorrem construções em que se usa a forma mais comum em Libras e também a forma do português sinalizado, como se pode ver na sinalização da expressão "15:30 horas" (linha 6), em que a aluna faz "TRÊS HORAS (movimento de rotação incorporado indicando horas) HORAS": em Libras, quando se indica o horário, não precisamos usar o item lexical "HORAS", mas simplesmente mudar a morfologia do numeral, realizando um movimento de rotação; a aluna realiza esse movimento e ainda, logo em seguida, realiza o sinal referente a horas.
Além disso, pode-se observar na sinalização de G a construção semântica em relação a determinados itens. A palavra jogo é sinalizada/ significada de duas formas: na primeira ocorrência dessa palavra, quando no diálogo ainda não havia indicações sobre futebol, utiliza um sinal que remete à brincadeira (ao jogo como brincadeira); na segunda, um sinal que remete ao jogo de futebol (ao jogo como esporte). Já na leitura do trecho Vamos ao Mineirão assistir Cruzeiro e Atlético?, G insere um sinal entre os itens referentes Cruzeiro e Atlético que indica competição, o que pode indicar que, na leitura, a aluna vai além da busca de estabelecimento da simples relação sinal-palavra, construindo e reconstruindo hipóteses sobre os significados em sua leitura.
Pela análise do evento apresentado, evidencia-se uma tendência, nesse primeiro momento da aula de leitura, em seguir a estrutura do português, apesar de se observar, em alguns trechos, uma forma de leitura-sinalização mais próxima da Libras. Ou em outros momentos, vemos os participantes usando duas formas como ocorreu na indicação de horas, em que ela usa a forma mais comum em Libras e, em seguida, sinaliza o item lexical horas, o que nos mostra essa "mescla" das línguas pela aluna.
4.2. Explicando e sinalizando o texto
Outra atividade realizada no grupo é a explicação do texto (Explicando o texto). A professora realiza essa explicação no trabalho com todos os textos em sala de aula, exceto com dois. Nessa explicação, às vezes, a professora aponta trechos do texto ou palavras e vai explicando seu sentido ou remete a elementos estruturais das sentenças. Essa atividade às vezes se confunde com a sinalização do texto propriamente dita, que tende a ser mais contínua do que a explicação. A sinalização do texto é realizada também pelos alunos que vão à frente do quadro para sinalizar visível a toda a turma.
No evento apresentado no quadro 2, pode-se dizer que a professora explica e sinaliza o texto, mesclando essas duas atividades. O quadro contém: na primeira coluna, a numeração das linhas; na segunda, as ações da professora; na terceira, a sinalização da professora; e na quarta, a participação dos alunos.
O evento apresentado ocorreu logo após a atividade de reconhecimento de vocabulário,7 em que a professora apontava algumas palavras e perguntava aos alunos o sinal em Libras, ou apresentava um sinal, ou ainda, quando supostamente não houvesse esse "equivalente", a professora explicava a palavra utilizando outras estratégias que não a busca por um sinal. Depois de terminado o reconhecimento de vocabulário, nesse dia de aula, a professora se desloca, caminhando em direção ao início do texto no quadro e realiza o sinal VAMOS, começando a explicar o texto. A professora não sinaliza aos alunos que agora vai explicar o texto; o que indica aos alunos (e a mim) que se inicia uma nova etapa da aula é o deslocamento da professora em direção ao início do texto no quadro e sua forma de chamar os alunos a acompanhá-la (linha 1 do quadro 2). Além disso, a forma de apontar o texto se modifica: não se apontam somente palavras específicas (como no reconhecimento do vocabulário), mas também o início das frases no texto; além disso, a professora, agora, ao invés de perguntar aos alunos o sinal, oferece em Libras uma explicação sobre o trecho ou uma retextualização em Libras. Observa-se aí uma nova forma de se engajar na leitura.
Como apontaram Castanheira et al. (2001) relativamente às fronteiras entre os eventos de letramento na sala de aula, nessa transição entre uma atividade e outra, observam-se várias pistas de contextualização utilizadas pela professora para indicar aos alunos o início de uma nova atividade: o deslocamento para o outro lado do quadro; a forma de apontar o texto e explicar; a fala da professora chamando a turma para acompanhá-la, entre outros. Isso confirma o que discuti anteriormente sobre as etapas da aula de leitura construídas por este grupo.
Observando-se o quadro 2, pode-se questionar o que indicam alguns elementos da explicação/ sinalização feitas pela professora relativamente à leitura para o grupo e ao uso da Libras. Primeiramente, é possível dizer da legitimação da Libras como língua para participar das atividades de leitura - assim como na atividade de reconhecimento de vocabulário realizada antes dessa, a Libras continua sendo a língua para explicar o que está escrito em português. Porém, agora não há somente o apontamento de palavras e a realização de um sinal supostamente equivalente; além de algumas palavras que são retomadas (por exemplo: linha 3 - bar; linhas 9 e 10 - jogo), o foco da explicação são trechos maiores (linhas 2, 4, 7, 12, 13, 14), em que ela aponta o início desses trechos, como se ela dissesse "estou sinalizando essa parte", o que indica ao grupo que as duas línguas relacionam-se, uma explicando e interpretando a outra.
A professora demonstra conhecimento da Libras e traduz o conteúdo dos textos usando recursos que possivelmente tornam sua explicação mais acessível aos alunos. A título de exemplificação, cita-se a tradução que ela faz da expressão "Tudo bem com você?" (linha 5), uma expressão básica, mas que os alunos não sinalizaram adequadamente como se viu na seção 4.1. Para citar um exemplo mais complexo, observa-se a estratégia usada para "interpretar" as convenções da escrita (uso de travessão e mudança de linha) na organização de um diálogo. Ela usa o corpo para construir a referência dos personagens para que os alunos possam visualizar o diálogo e a troca de turnos, movimentando o tronco para lados opostos.8 Essa estratégia é utilizada pela professora na explicação de praticamente todas as trocas de turno do diálogo (linhas 5, 8, 11, 12, 13, 15).
Apesar de demonstrar conhecimento da Libras, não se pode dizer que a professora não recorreu ao português sinalizado durante sua explicação, já que ela mantém a ordem das palavras da sentença em português em vários trechos de sua sinalização, mesmo quando a ordem das palavras não coincidem nas duas línguas. Isso aponta para a complexidade dessa situação de contato linguístico em sala de aula. Pode-se aventar que um dos motivos que leva a professora a esse tipo de sinalização seja a falta de proficiência na segunda língua (L2), como ocorre com a aluna em relação ao português no evento apresentado anteriormente. E ainda, essa pode não ter consciência sobre processos tradutórios que a faça refletir sobre as diferenças entre essas duas línguas. Outras situações ocorridas nessa sala de aula podem confirmar tal questão. Além disso, as oportunidades de formação às quais a professora teve acesso, apesar de bem melhores do que a média,9 ainda assim são escassas - a professora, por exemplo, não é formada em Letras e não teve acesso à formação sobre ensino de L2.
Porém, mesmo que a professora traduzisse adequadamente o texto do português para a Libras, como se estabelece a relação entre as duas línguas? Dito de outro modo, apesar de os alunos terem acesso ao conteúdo do texto em português, a relação entre o que está escrito e o que é sinalizado não é explicitada ao grupo, considerando essa relação de duas formas: (i) uma relação visual, que indique exatamente quais palavras ou grupos de palavras estão sendo foco da explicação/ sinalização (por exemplo, apesar de a professora apontar o início das frases, ela não delimitava sobre qual parte incidia o foco de sua explicação/ sinalização); (ii) uma relação linguística, que mostra como as estruturas do português e convenções da escrita podem ser traduzidas para a Libras, e as diferenças e semelhanças entre as duas línguas, como tem sido proposto no ensino de língua escrita para surdos. Todas essas questões apontam para as consequências em termos de aprendizagem da leitura e do português pelos alunos surdos e precisam ser consideradas.
4.3. Redefinindo o uso da Libras para ler o texto
Assim que termina de explicar/sinalizar o texto, a professora pede aos alunos R e T que também sinalizem o texto. Para chamar os alunos, ela diz em Libras: "TEATRO VOCÊS-DOIS À-FRENTE". Nesse momento, a professora estabelece outra forma de "ler" o texto, ela não diz "sinalizem o texto" ou "leiam o texto", ela pede que os alunos façam "teatro", ou seja, encenem o texto. Os alunos se levantam e vão ao espaço à frente do quadro, visíveis para toda a turma. A professora pede aos alunos que comecem, mas logo interrompe e reforça que façam em Libras o que entenderam do texto. Os alunos reiniciam a sinalização. Observa-se que a professora busca sinalizar para os alunos as expectativas dela em relação à tarefa e ao uso da Libras: sinalizar e encenar o texto, mas eles ficam presos à estrutura das sentenças do texto, olhando para o quadro, com constantes hesitações. Interessante notar que frente à tarefa escolar de "encenar o texto", os alunos lidam com seus conhecimentos de eventos anteriores, inclusive da sinalização e explicação que a professora havia acabado de fazer, em que ela utilizou o texto escrito no quadro como referência durante todo o tempo.
Então, assim que os alunos terminam a primeira sinalização/ encenação do texto, a professora explica novamente como devem fazer o "teatro". Diferentemente da sinalização anterior dos alunos em suas carteiras, do estudo do vocabulário e da explicação da professora, agora o texto escrito não deve ser mais referência durante a sinalização, devendo os alunos focar apenas no conteúdo e na encenação em Libras. O quadro 3 traz a transcrição da interação em que os participantes do grupo redefinem como a Libras deve ser usada em sala de aula: na primeira coluna, apresento a numeração das linhas; na segunda, a participação da professora; e na terceira, a dos alunos.
Primeiramente, observa-se a professora definindo como os participantes devem fazer a apresentação (linha 3). Para isso, ela usa a expressão "TEATRO", indicando aos alunos que devem encenar o texto. Anteriormente, da primeira vez que os alunos encenaram o texto, a professora também havia usado esse termo em Libras; mas agora ela reforça que eles, além de encenarem o diálogo, não devem interromper a sinalização para olhar para o quadro (linha 3). Isso é aceito e ratificado pela aluna G que sugere que os alunos realmente "encenem" o texto, encontrando-se, cumprimentandose, o que, para essa aluna, "faltou" na primeira apresentação (linha 6).
A professora ressalta também que não se devem misturar as duas línguas "LIBRAS SÓ PORQUE VOCÊS FAZER LIBRAS JUNTO PORTUGUÊS LIBRAS SÓ OK <NORMAL>!" Ao dizer isso, a professora assume que há duas formas de utilizar a Libras: "junto" com o português ou somente a Libras. Foi a única vez durante o período de observação no grupo, em que a professora se refere à forma de se usar a Libras, ao uso da mescla entre Libras e português. Porém, ela não explicita para os alunos o que seriam "LIBRAS JUNTO PORTUGUÊS" e "LIBRAS SÓ".
Como se disse anteriormente, o que é considerado como leitura num dado grupo vai se modificando ao longo da história desse grupo, sendo que, nesse evento, participar das atividades de leitura exigia dos alunos outra forma de usar a Libras. Esses diferentes usos da Libras exigem dos participantes uma competência comunicativa específica para participação na sala de aula, em diferentes eventos. Baseando-se em Bloome (1989), nota-se que, nesta sala de aula, são estabelecidas diferentes formas de usar a linguagem ao longo dos eventos. Se antes deveriam estabelecer a simples relação sinal-palavra, lendo (olhando) para o texto, agora os alunos precisam mudar esse uso e buscar sinalizar o "mais natural", esquecendose do português. Porém, as experiências anteriores dos alunos nesta aula e outras experiências escolares os levam a inferir que um texto deve ser lido e sinalizado conforme o português, que esse é o comportamento considerado apropriado pela escola e que será bem avaliado pela professora. No entanto, o grupo estabelece para eles uma nova forma de usar a linguagem para se referir a um texto em português: usar "somente a Libras", apesar de não ser explicitado exatamente qual seria a diferença entre usar "somente a Libras" e usar a Libras "junto com o português".
Os alunos novamente sinalizam o texto, mostrando terem compreendido que deveriam fazê-lo o mais natural possível. No entanto, a análise de sua sinalização10 evidencia ainda um conflito linguístico entre formas mais mescladas com o português e formas mais típicas da Libras. Apenas a título de ilustração, menciono aqui a sinalização de um dos alunos da frase inicial do texto "Oi T. Tudo bem com você?": "OI TUDO B-E-M VOCÊ JUNTO VOCÊ JOIA". Observa-se que o aluno acaba articulando um sinal para cada palavra na primeira parte de sua sinalização, e depois traduz seu significado "VOCÊ JOIA".
5. APONTAMENTOS FINAIS
Após observar a construção das práticas de leitura por esse grupo, pode-se concluir que ler para eles significa transitar constantemente entre as duas línguas e, ainda que parta do reconhecimento sinal-palavra nas atividades iniciais, avança na construção, em Libras, dos sentidos do texto escrito em português. No entanto, o "conflito" nas escolhas linguísticas dos participantes mostra-se mais claramente em alguns eventos na sala de aula em que alunos e professora, além de usarem a mescla entre a Libras e o português, usam, ao mesmo tempo, formas mais comuns da Libras, situando-se nesse "entre línguas", seja (i) pela falta de domínio de sua L2 - no caso dos alunos, o português, no caso da professora, a Libras; (ii) seja porque estão cumprindo uma tarefa escolar e usam como referência o português; entre outros.
Apesar de não ser o foco deste trabalho a avaliação das habilidades de leitura, não se pode deixar de apontar essa questão. Observou-se ao longo da pesquisa e, retomo aqui particularmente a transcrição apresentada na seção 4.1, que os alunos surdos, apresentam dificuldades de leitura de expressões bastante básicas do português, tal como a expressão "Tudo bem com você?" O fato de uma expressão básica ser traduzida literalmente pelos alunos, juntamente com outras evidências de dificuldades de leitura de textos simples, revelam também a baixa proficiência dos alunos no português escrito e ainda denunciam os baixos níveis da qualidade do ensino, considerando-se que esses alunos estão, no mínimo, há oito anos na escola. Repensar o ensino da leitura e, particularmente, o uso da Libras para mediar esse processo, pode ser um dos caminhos para contribuir com a reversão desse quadro.
Como se disse ao apresentar a temática deste estudo, apesar de a mescla linguística ser um fenômeno natural no contato entre falantes de línguas diferentes, tem gerado muita polêmica seu uso na educação bilíngue e, no que diz respeito a questões pedagógicas, Silva (2005), que cita Hamel (1989), afirma a necessidade de se obedecer a estratégias pedagógicas sistemáticas. Nesse sentido, o estudo aqui apresentado visa a contribuir com essa discussão sobre esse aspecto do ensino do português e, mais especificamente, da leitura para surdos, mostrando como os diferentes usos da Libras por professores e alunos precisam ser pensados de forma a dar oportunidades de aprendizagem do português para os surdos, e não somente acesso ao conteúdo dos textos escritos.
Para aprofundar mais nessa questão, retomo um ponto da análise da explicação da professora, apresentada na seção 4.2. Alguns autores vêm apontando a importância, para que alunos surdos tenham acesso à aprendizagem do português, a definição do uso alternado dos dois sistemas e a prática da análise comparativa entre as línguas.11
Relativamente à prática da análise comparativa (BOTELHO, 2002; QUADROS, 1997), propõe-se que seja um recurso utilizado em sala de aula para oportunizar aos surdos o desenvolvimento do conhecimento linguístico do português.12 As análises empreendidas nos eventos aqui apresentados e em outros analisados mais detalhadamente em Silva (2010) confirmaram a importância de tais questões, evidenciando que, ao lidarem com as diferenças das duas línguas, os participantes muitas vezes não relacionam o que é dito em Libras com os elementos do português escrito, o que lhes tira oportunidades de compreenderem o funcionamento dessa língua e construírem habilidades de leitura.
Em relação à definição do uso alternado dos dois sistemas, apontado por Silva (2005), esse tem sido discutido no contexto americano, considerandose técnicas de alternância de línguas que possam viabilizar a aprendizagem da leitura pelos surdos. Andrews e Rusher (2010) argumentam a favor da importância de se construírem e se utilizarem técnicas no ensino da leitura que viabilizem uma "ponte" para ligar os significados da língua escrita com os significados da LS, observando-se diferentes momentos da aula de leitura em que se pode recorrer a traduções mais livres do texto escrito e traduções literais que deem acesso visualmente à estrutura linguística da língua a ser aprendida. Esses autores iniciam sua argumentação, partindo de estudos que mostram como os adultos surdos bilíngues transitam entre as duas línguas, alternando e mesclando essas línguas, e como as crianças surdas bilíngues, mesmo que bilíngues emergentes, já estão inseridas nesse processo, ainda que não tenham proficiência nas duas línguas.
No caso do contexto brasileiro, precisamos conhecer melhor de que forma adultos surdos bilíngues e crianças bilíngues transitam entre as línguas em seu cotidiano, o que aponta para a necessidade de estudos sociolinguísticos que possam futuramente ser as bases para se compreender mais claramente a dinâmica das interações em sala de aula, o que pode viabilizar o aprimoramento de técnicas de ensino de leitura, que estabeleçam essa "ponte visual" entre o que está escrito em português e o que é sinalizado em Libras, potencializando as possibilidades de aprendizagem do português para os aprendizes surdos.
Data de submissão: 28/02/2014.
Data de aprovação: 13/08/2014.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Out 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2014
Histórico
-
Recebido
28 Fev 2014 -
Aceito
13 Ago 2014