Acessibilidade / Reportar erro

Caindo na rede, caindo na real: Em busca do inédito viável no mundo em (pós)pandemia

Falling in the (inter)net, getting real: In search of the unknown viable in a (post)pandemic world

RESUMO

Neste texto, propomos uma reflexão teórico-prática acerca dos desafios impostos pelo ensino remoto online num mundo em pandemia, a partir do que identificamos como rupturas tecnológica, espaciotemporal e epistemológica que surgem quando transpomos o universo físico da sala de aula para o ambiente virtual. Nosso intuito, partindo desta reflexão, é pensar caminhos para a construção de um inédito viável no campo da educação linguística que aponte para uma outra e alternativa escola.

PALAVRAS-CHAVE:
educação linguística; pandemia; ruptura; inédito viável; escola

ABSTRACT

In this paper, we propose a theoretical-practical reflection on the challenges imposed by online remote education in a pandemic world, from what we identify as technological, spatiotemporal and epistemological disruptions that arise when we transpose the physical universe of the classroom to the virtual environment. Based on this reflection, our goal is to think of ways of building an unknown viable in the field of language education that points to an alternative school.

KEYWORDS:
language education; pandemic; disruption; unknown viable; school

Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos

Ailton Krenak

1 Introdução: O caso Daiana

Daiana é uma mulher de 37 anos, casada, mãe de dois filhos adolescentes, que mora numa pequena cidade de pescadores no interior do extremo sul do Brasil. Daiana identifica-se como roqueira grunge, pessoa politizada, admiradora da Frida Kahlo e apreciadora de flores e de mandalas. Usa suas redes sociais, em especial o Facebook, para alimentar seus interesses, preferencialmente os musicais, curtindo bandas e participando de grupos de fãs de rock. Foi no Facebook que Daiana conheceu Talia, uma roqueira israelense que mora em Israel, de quem passou a ser fã. No Facebook, Talia divulga o seu trabalho como cantora e posta, entre fotos, vídeos e comentários - ora em hebraico, ora em inglês -, peculiaridades de sua rotina profissional e pessoal.

Segundo Daiana, Talia é uma moça adorável, que já passou por muitas dificuldades na vida, que incluem uma cirurgia de redução de estômago para combater a obesidade, divórcio, criação individual de uma filha e, mais recentemente, problemas financeiros em razão da pandemia da Covid-19, já que os bares onde fazia shows em Israel fecharam, alega Daiana. Apesar de toda admiração pela amiga israelense, Daiana lamenta apenas o seu posicionamento político. Talia apoia o atual governo de Israel, conta-nos Daiana com certa decepção. Há cerca de dois anos, Daiana mantém uma comunicação frequente com a roqueira israelense, de quem hoje se considera fã e também amiga. As duas conversam por comentários feitos nas suas postagens e pelo messenger do Facebook. O detalhe curioso é que Daiana não fala hebraico, tampouco inglês. Além disso, ela sofre de severa deficiência auditiva, o que dificulta muito a sua comunicação oral. Daiana estudou somente até o quarto ano do Ensino Fundamental. Ela é empregada doméstica.

Utilizando a rede de wifi de seu local de trabalho e dos estabelecimentos comerciais por onde circula, Daiana se comunica com a amiga utilizando o Google Tradutor, através do qual copia e cola todas as mensagens que troca com a israelense. A comunicação entre as duas é tão eficiente e a relação se tornou tão próxima que Talia enviou recentemente, pelo correio, um vestido que usava em uma das fotos que postou no Facebook, para a qual Daiana teceu, de maneira efusiva, comentários elogiosos. Neste momento, o vestido está a caminho do Brasil e Daiana o aguarda ansiosamente, exibindo o comprovante de remessa compartilhado por Talia e, tão logo o receba, exclama que irá “esfregá-lo na cara do marido” que, incrédulo do generoso gesto alheio, caçoa diariamente da suposta ingenuidade da esposa. O vestido tornou-se o estandarte de Daiana, o símbolo de sua capacidade comunicativa, de sua fé nas pessoas e, acima de tudo, de sua valia.

Abrimos este texto com o relato anedótico1 1 Utilizamos o termo relato anedótico para fazer referência a uma situação do nosso cotidiano em que nossos olhares como linguistas aplicadas detectam informalmente uma situação que julgamos merecedora de reflexão, ainda que não seja fruto de um estudo de campo exploratório com objetivos de pesquisa claramente definidos de antemão. de Daiana porque entendemos que ela é a personificação do conceito de inédito viável (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 184p.) que nos sensibiliza e orienta para problematizar o ensino de línguas no contexto atual da pandemia da Covid-19 e para além dele. Diante da crise que a pandemia colocou ao campo educacional, em todos os seus níveis de ensino, Daiana nos inspira a encarar o momento como uma salutar oportunidade para revermos o que conta, na atualidade, como ensino e como aprendizagem, assim como o que conta como escola. Em outras palavras, é fato que, se os conflitos decorrentes de mudanças são inerentes ao que é social, é verdadeiro afirmar que, nas atividades docentes, as incertezas desencadeadas por questionamentos metodológicos têm permeado o fazer escolar de forma particular no que tange às adaptações necessárias durante a pandemia da Covid-19, que demandam de instituições, professores, estudantes e famílias a descoberta e a experimentação de estratégias para que o ano letivo não seja interrompido, o que tem desencadeado, junto à questão de saúde, discussões acerca de políticas de ensino, da eficiência do que está posto em currículos e de certezas até mesmo de profissionais que costumavam arrogar autoridade, ao evocar seus longos anos de profissão como argumento.

Nesse sentido, a agentividade de Daiana emerge como uma voz que sinaliza à desacomodação alavancada pela necessidade de “renarrar a vida social” (MOITA-LOPES, 2006MOITA-LOPES, Luis Paulo (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. 279p., p. 90), e instiga à adoção de uma perspectiva que se esforce a “propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite reconhecer a interação de suas partes” (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 184p., p. 111). Por isso, este texto se constitui de discussões teórico-práticas decorrentes do diálogo entusiasmado de duas professoras que assumem a posição esperançosa diante dos desafios que se instalam, por percebê-los como oportunidade de legitimar perspectivas de ensino que há muito deveriam ser corriqueiras nas instituições, como antecipa o jogo de palavras presente no título: a ideia de cair na rede, cair na real busca abranger sentidos múltiplos, que vão desde a assunção de que o corriqueiramente popularizado como o “novo real” (CASTELLS, 2020CASTELLS, Manuel. O digital é o novo normal. Fronteiras do Pensamento, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/o-digital-e-o-novo-normal . Acesso em: 09/12/2020.
https://www.fronteiras.com/artigos/o-dig...
) passou a demandar recursos da internet para a manutenção do necessário distanciamento social na execução de atividades cotidianas, entre elas ensino remoto. Sobre este, sem desconsiderar as aviltantes desigualdades sociais que a pandemia trouxe à tona, o cair na rede ainda alude ao logro representado por propostas que pretendem se valer de tecnologias, mas que, na práxis, não extrapolam a reprodução de modelos antiquados e pouco eficientes para os ambientes virtuais de aprendizagem, que aturdem - tal qual um peixe fisgado - não apenas os estudantes, em sua motivação para a execução comprometida de tarefas, mas também os próprios professores, que comumente desconhecem estratégias descoladas das práticas presenciais. Tem-se, nesse cair na real, uma “situação-limite” (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 184p.) que impele à busca do “inédito viável” (NITA FREIRE, 2009FREIRE, Nita. Inédito-viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 231-234. Verbete. 448p.) - ou à construção de paraquedas coloridos, em referência à epígrafe de Ailton Krenak -, reflexão sobre a qual este texto se debruça.

Assumimos, pois, que a superação desta crise, como bem nos lembra Harari (2020HARARI, Yuval Noah. Notas sobre a pandemia. E breves lições para o mundo pós-coronavírus. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 97p. ), só será possível através da generosidade, sabedoria, cooperação e ciência. Dito isso, seguimos, então, dialogando com Daiana, Paulo Freire e com quem mais possa interessar para discutir a crise atual em busca de caminhos viáveis para enfrentarmos as questões que o ensino remoto nos impôs e, com isso, quiçá, abrir caminho para que o novo (o inédito que se faz viável) entre no mundo como forma de reinventar o próprio mundo. Valemo-nos, também, do que ensina Vygotsky (1999VYGOTSKY, Lev. Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999. 140p., p. 329), que a arte “é um meio de equilibrar o homem com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida”, para que nossos alunos, na qualidade de agentes relevantes nesse processo de busca por novos encaminhamentos, estejam aptos e motivamos a participar de forma produtiva desse diálogo, pela mimese que uma proposta de tarefa com obras de arte pode oportunizar. Reconhecemos, assim, que o desafio que se coloca, ao cair na rede, e ao qual buscamos responder neste trabalho, ao cair na real, é como pensar coletivamente, novas formas de construir sentido na sala de aula e sobre a sala de aula frente ao contexto educacional que se impõe com a pandemia da Covid-19. Encarar o desconforto da queda, por sua vez, coloca-se como exercício hiperdialético (FABRÍCIO, 2020FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística aplicada e visão de linguagem: por uma INdisciplinaridade radical. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte, v. 17, n.4, p. 599-617, 2017.) sem o qual não se faz possível, nos termos de Fabrício, “desacostumar” e “despraticar o familiar” com vistas à reconstrução do conhecimento.

2 Caindo na Rede: primeira queda

A pandemia da Covid-19, ao instituir o ensino remoto em caráter emergencial, majoritariamente mediado pelas tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC), tem sido especialmente crítica ao campo educacional porque provocou, abruptamente, um movimento de ruptura das bases tecnológicas, espaciotemporais e epistemológicas sobre as quais a instituição escola foi erigida e tem, em grande medida, mantido-se pelo menos desde o Iluminismo. Ainda que ensino remoto não seja sinônimo de educação a distância, entendemos que, no atual contexto de pandemia, são exceções os casos em que essa modalidade de ensino não tenha se organizado sob mediação de recursos digitais. Logo, assumimos que a crise educacional se deflagra na medida em que, repentinamente, ao cairmos na rede - no digital -, modificam-se as tecnologias, os tempos, os espaços e as linguagens a partir dos quais fazemos escola, ou seja, a partir dos quais nos entendemos como professores e como alunos que, juntos, de maneira situada, produzem um certo tipo de saber.

Considere-se, por esse viés, que nas práticas das salas de aula de Línguas as tentativas por solucionar esse imbróglio passaram pela experimentação positiva de aportes teóricos cuja justa eficiência muitas práticas sabidamente ainda insistiam em negar, como o uso de ferramentas digitais para educação linguística, já que resistências primárias, como aceitar que estudantes trouxessem e usassem seus próprios dispositivos em aula, eram, inclusive, legalmente respaldadas em estados como o RS, por exemplo. Vê-se, com isso, mais um grande número de significados que estão implicados na proposição do ensino remoto nas escolas gaúchas, transversalmente atravessadas pela estrutura deficiente de acesso à internet, por professores - agora não só mal pagos e subvalorizados - muitas vezes desatualizados sobre estratégias técnicas e metodológicas de uso do digital e estudantes a quem historicamente esteve imposto o papel passivo e coadjuvante de obediência e não proposição.

Dito isso, na sequência, discorreremos sobre as referidas rupturas - tecnológicas, espaciotemporais e epistemológicas -, a fim de lançar luz sobre a problemática do ensino remoto online. Nosso intuito, primeiramente, é refletir sobre como as TDIC engendram novos modos de ser e estar no mundo, com vistas a evitarmos uma perspectiva analítica que se faça deficitária, visto que corremos o risco de cair no equívoco de problematizar o digital a partir de parâmetros da cultura tipográfica e grafocêntrica constitutiva da tradição escolar que nos é tão conhecida e cara (SIBILIA, 2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.). No que se segue, compartilhamos resultados de uma experiência pedagógica com obras de arte que, de certo modo, abarcam algumas das questões tecnológicas, espaciotemporais e epistemológicas problematizadas na primeira parte deste artigo e apontam para a construção do inédito viável em nossos contextos particulares de ensino. Por fim, propomos pensar sobre como o inédito viável encaminha-nos a outros ensinos e outras aprendizagens - enfim, a uma outra e alternativa escola, mais sensível e responsiva às demandas de um mundo que se constitui no complexo imbricamento do físico e do digital.

2.1 Ruptura das bases tecnológicas

Para dar conta dos efeitos da atual crise educacional, é preciso, antes de mais nada, discutir a própria escola como um tipo de tecnologia, isto é, um dispositivo complexo, um aparato tecno-humano criado para produzir, ao fim e ao cabo, não somente conhecimentos, mas também subjetividades: formas de ser e de estar no mundo social (SIBILIA, 2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.). À luz da semiótica material de Latour (2005LATOUR, Bruno. Reassemblimg the Social. An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press, 2005. 301p.), enquanto tecnologia, a escola constituiria uma rede híbrida e complexa que conecta elementos humanos e não humanos, de modo que, a depender da articulação desses elementos, certos efeitos, compreendidos, por exemplo, como subjetividade e aprendizagem (ou ausência dela), seriam produzidos. Assim, para que a escola, tal qual a conhecemos, seja socialmente legitimada como instituição e siga a produzir aprendizagens e subjetividades reconhecíveis sob a lógica que a sustenta, determinados agenciamentos entre tecnologias materiais particulares, recursos semióticos específicos, localizações espaciotemporais e pessoas precisam ser produzidos.

Por essa razão, nos esforços cotidianos de muitos professores em forjar alternativas para o ensino na modalidade remota online, temos testemunhado, por exemplo, práticas em que a lousa, projetada visualmente no espaço abstrato da aula online, faz-se presente como elemento mediador das interações entre professor (que escreve o conteúdo nesse suporte) e alunos (que copiam em seus cadernos o que leem na imagem virtual da lousa do professor). Frequentemente, somam-se a isso práticas que se centram na digitalização e compartilhamento de páginas do livro didático contendo exercícios que devem ser enviados à escola (digital ou fisicamente), uma vez feitos pelos alunos, para serem corrigidos/avaliados pelo professor, e até docentes que arrogam seus vastos anos de atuação como argumento para dar autoridade à prática - tão arraigada quanto de necessidade questionável neste novo contexto - de fazer chamada em encontros síncronos.

Em práticas essas, a lousa, o livro didático e as tecnologias digitais agenciam um processo de trocas materiais e simbólicas entre professores e alunos que repercute em termos de um regime de poder calcado no familiar modelo da transmissão de conteúdos sustentado pela palavra escrita e frequentemente impressa. Busca-se, assim, simular no virtual o que ocorreria no espaço físico de sala de aula, a exemplo do antigo normal. Temos, portanto, o uso de tecnologias digitais sendo mobilizado a fim de manter, tanto quanto seja possível, a escola como um dispositivo a serviço da produção de um tipo de conhecimento grafocêntrico, tipográfico e linear, de um (professor) para muitos (alunos).

Conforme Sibilia (2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.), enquanto dispositivo, “a escola exige dos sujeitos a manutenção de certos traços e execução de determinadas operações para nela permanecer” (p. 24). Isso explica, em parte, usos das TDIC que promovem práticas pedagógicas redundantes em relação a velhas formas de ensinar e aprender. Isto é, práticas que, apesar de apoiarem-se em recursos digitais, instauram um fazer em que o já conhecido é travestido em novas roupagens, sem que a mentalidade do digital, traduzida pelos valores, sensibilidades e disposições que ela engendra, orientem o trabalho pedagógico (BUZATO, 2010BUZATO, Marcelo El Khouri. Cultura digital e apropriação ascendente: apontamentos para uma educação 2.0. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 3, p. 283-304, dez. 2010. ).

Como tecnologia, podemos pensar a escola sob a lógica do Panóptico que institui um regime de vigilância a serviço da disciplina e da produtividade através da automatização e desindividualização do poder (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3ª.Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. 291p.). Esse regime fica patente quando observamos a arquitetura de uma sala de aula tradicional, ou seja, a dimensão material de um aparato tecno- -humano que tem como alvo principal o corpo humano. A isso acrescentam- -se certas rotinas e cronologias que, em conjunto, promovem determinadas disposições e performances do corpo, assim como uma forma particular de ocupação do tempo-espaço, que se dá de maneira ordeira, disciplinada, eficiente e padronizada (SIBILIA, 2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.).

Para Sibilia (2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.), como aparato, ao longo dos tempos, a escola tem produzido um tipo de subjetividade que denomina de escolar ou pedagógica, a qual se tornou problemática na medida em que passou entrar em choque com a subjetividade midiática característica do digital, isto é, um tipo de subjetividade forjada em espaços que misturam mídias, conhecimento e entretenimento. Segundo Sibilia, a escola teria se tornado uma máquina antiquada, pois que incompatível com os corpos e as subjetividades dos jovens do século XXI. Nas suas palavras:

Esta constatação ocorre justamente quando se está soldando um encaixe quase perfeito entre, de um lado, esses mesmos corpos e subjetividades e, de outro, um novo tipo de maquinaria, bem diferente da parafernália escolar e talvez oposta a ela. Referimo-nos, é claro, aos aparelhos móveis de comunicação e informação, tais como os telefones celulares e os computadores portáteis com acesso à internet, que alargaram num abismo a fissura aberta há mais de meio século pela televisão e sua concomitante cultura audiovisual (2012, p. 14).

É justamente nesse contexto resistente a inovações que o ensino remoto tem impelido muitos professores à experimentação da necessária interseção entre o escolar e o midiático, o que tem dado luz a práticas diversas, desde as mais tímidas e reprodutivas até as mais ousadas e esforçadas, a se valerem de recursos hipermidiáticos e multimodais, que buscam em si e em outros agentes estratégias e instrumentos para promover reflexão e, por consequência, alavancar processos de aprendizagem mais responsivos, a exemplo das práticas de releitura de expressões artísticas que mostraremos mais adiante. O paradoxo, entretanto, está justamente nas narrativas de estudantes acerca da ineficiência desses esforços, independente do grau de ruptura que proponham, já que tal avaliação aponta para a cisão imbricada nos estudantes acerca do formato e de quais tecnologias são adequadas ao que deve ser escolar, pois é nesses lugares já conhecidos, estigmatizados como o locus de aprender e que simulam a sensação enfileirada da sala de aula, que se sentem seguros. Tais narrativas mostram que as mudanças, que aparentemente são necessárias na formação e nas práticas docentes, também precisam se dar em bases muito mais profundas, para que se rompa o que Freire (1994FREIRE, Paulo. Professora Sim, Tia Não - cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água, 1994. 127p.) nomeia como burocratização da mente. Rever essa arquitetura - física, procedimental e psicológica - trata-se, portanto, de um processo longo e desafiador (não por isso menos urgente), para que a escola, como propõe Dewey (1959DEWEY, John. Democracia e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. 416p. ), deixe de dissociar a educação e a vida.

2.2 Ruptura das bases espaciotemporais

O ensino remoto online, juntamente com todas as tantas outras práticas que passaram a se articular na esfera digital, trouxe à tona e potencializou a complexidade da experiência espaciotemporal de um mundo mediado pelas TDIC, no qual tempo e espaço dissociam-se, a partir da possibilidade do espaço de interação do sujeito não mais coincidir com o espaço em que seu corpo se faz fisicamente presente. Tal complexidade ultrapassa a vivência concomitante em diferentes, múltiplos e sobrepostos sítios virtuais, o que de saída nos coloca a angustiante demanda pela presença constante. Trata-se, para além disso, de uma experiência espaciotemporal que se desdobra em fenômenos como a instantaneidade, que cria uma situação em que tempo e espaço não mais têm sentido, e a alteração no sentido de presença (MILLER, 2011MILLER, Vincent. Understanding Digital Culture. London: SAGE Publications, 2011. 254p.), isto é, na experiência de estar física e emocionalmente em um determinado ambiente.

O acesso às redes, desse modo, desarticula o espaço escolar tradicional e dilui o tempo, como pontua Sibilia (2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p., p. 186). Na escola, a experiência educacional é vivida a partir do confinamento dos sujeitos às paredes da sala de aula, que operam como limites físicos a determinar o sítio em que cabe se dar o que conta como aprendizagem, e da ordenação cronológica dos turnos escolares, que garante uma rotina sequenciada, fazendo que cada aula/atividade aconteça de uma vez, num processo constituído por um início, um meio e um fim fixados de antemão. Sob essa perspectiva, a escola, portanto, opera sob um tipo de funcionamento espaciotemporal marcado por um único tempo e um único espaço. Não por acaso os celulares, até então, tendiam a ser rechaçados do espaço escolar tradicional, haja vista o fato de que justamente rompem com a monoespaciotemporalidade que lhe é constitutiva.

No ensino remoto, sob mediação das TDIC, desarticulam-se o tempo e o espaço escolar em escala e intensidade jamais experimentadas. O espaço físico da casa e o tempo da vida doméstica, ao serem virtualmente invadidos pela escola que se apresenta em aulas virtuais (síncronas e/ou assíncronas) produz como efeito um espaciotempo híbrido no qual se misturam ritmos, sítios, práticas, códigos, artefatos, valores e papeis sociais relativos à vida na casa (como esfera privada) e na escola (como esfera pública). O fato é que a escola, mesmo diante da suposta normalidade de nossa vida cotidiana anterior à pandemia da Covid-19, de algum modo, sempre funcionou em nossa sociedade como uma espécie de heterotopia (FOUCAULT, 1996) - um lugar-outro que estabelece um tipo de contra-ação em relação aos demais espaços com os quais se interliga. Se antes da pandemia a relação da escola com o mundo virtual, quando se dava, tendia a pender entre práticas de pedagogização do virtual e práticas de desconexão (a exemplo da proibição dos celulares em muitas escolas), no momento atual do ensino remoto online a escola passou a existir como espaço essencialmente virtual no qual se fazem valer efeitos produzidos concomitantemente no espaciotempo doméstico. Nesse processo, rompe-se a distinção entre dentro e fora.

Logo, as práticas de letramento promovidas no espaço escolar abstrato do ensino remoto online passam a ser problemáticas, pois que, ao se projetarem como eventos de letramento, não têm uma localização espaciotemporal específica; em vez disso, ancoram-se na laminação das dimensões materiais e simbólicas de múltiplos tempos e espaços que se interpõem, os quais incluem, frequentemente, não apenas a casa e a escola, mas também redes sociais, sites de games, compras e notícias, entre outros. Tal dinâmica espaciotemporal engendra ritmos, significados e histórias singulares que se constroem por conexões, sobreposições e multiplicações subvertendo, assim, a natureza espaciotemporal do espaço escolar tradicional. Nessa direção, Levy (2011LEVY, Pierre. O que é o virtual? 2ª. Ed. São Paulo: Ed. 34 , 2011. 160p.) nos lembra que:

A multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando--nos à heterogênese (p. 22).

Sob uma ótica educacional, essa heterogênese se revela na singularidade da experiência individual de ensino-aprendizagem que vai sendo tecida a partir da cartografia que emerge de agenciamentos particulares. Rompe-se, com isso, a monoespaciotemporalidade do contexto escolar tradicional, incluindo seus efeitos em termos de processos de aprendizagem que tendem a ser controlados, estratificados, homogêneos e padronizados.

2.3 Ruptura das bases epistemológicas

O que é central às práticas de construção de sentido propiciadas pelas TDIC não é o fato de que fornecem recursos técnicos sofisticados para a produção de conteúdos digitais, mas o fato de que mobilizam a mentalidade característica (LANKSHEAR, KNOBEL, 2007KNOBEL, Michele; LANKSHEAR, Colin. Sampling ‘the new’ in new literacies. In: KNOBEL, M; LANKSHEAR, C. A new literacies sampler. New York: Peter Lang , 2007, p. 1-24.) do que tem sido genericamente aludido por cultura digital ou cibercultura (LEVY, 2011LEVY, Pierre. O que é o virtual? 2ª. Ed. São Paulo: Ed. 34 , 2011. 160p.). Como “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores” (LEVY, 2010LEVY, Pierre. Cibercultura.3ª. Ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. 270p., p. 11) que se desenvolvem juntamente com o crescimento e refinamento do ciberespaço, a cibercultura tem em sua base algorítmica a sua característica mais definidora (MILLER, 2011MILLER, Vincent. Understanding Digital Culture. London: SAGE Publications, 2011. 254p.), sendo a linguagem dos algoritmos responsável por permitir práticas de copiar e colar que, muito embora em sua gênese sejam anteriores ao advento das TDIC, culminam em ricos processos de bricolagem semiótica, que se distanciam, como novidade pedagógica, das ações reprodutivas e monovocais de monges, na época medieval, a exemplo do copiar e colar empreendido pela protagonista de nosso relato anedótico, Daiana, entre a plataforma do Facebook e a do Google Tradutor, como competência que lhe permite efetuar uma operação prática específica (útil, ainda que em certo ponto limitada): comunicar-se eficientemente com sua amiga israelense.

O potencial técnico e semiótico inaugurado pela linguagem digital tem provocado mudanças no paradigma de produção cultural e participação social (JENKINS, 2006; BRUNS, 2008BRUNS, Axel. Blogs, Wikipedia, Second life, and Beyond: from production to produsage. New York: Peter Lang, 2008. 405p.) que vieram a definir o que ficou conhecido por Web 2.0 (KNOBEL, LANKSHEAR, 2007KNOBEL, Michele; LANKSHEAR, Colin. Sampling ‘the new’ in new literacies. In: KNOBEL, M; LANKSHEAR, C. A new literacies sampler. New York: Peter Lang , 2007, p. 1-24.) e mais recentemente Web 3.0. À luz dessas mudanças, Bruns (2008BRUNS, Axel. Blogs, Wikipedia, Second life, and Beyond: from production to produsage. New York: Peter Lang, 2008. 405p.) identificou que jovens passaram a ser mais do que meros usuários de ambientes digitais para se tornarem “produsuários”, ou seja, produtores de conteúdos a partir de conteúdos outros que lhes são dados a consumir.

Como efeito, sob esse pano de fundo, observa-se uma ruptura em processos de ensino-aprendizagem historicamente construídos e transmitidos, de forma que é possível identificar dois paradigmas de aprendizagem (LEMKE, 2010LEMKE, Jay. Letramento Metamidiático: Transformando Significados e Mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 49, n. 2, 2010, p. 455-479. ) que, neste momento de pandemia mais do que em qualquer outro até então, entram em conflito: “o paradigma da aprendizagem curricular”, característico das instituições de ensino, no qual alguém decide, verticalmente, o que, de que modo e em que sequência os outros devem aprender, e o “paradigma da aprendizagem interativa”, característico do espaço digital, a partir do qual é possível determinar o que aprender e em que ritmo, com base em necessidades e objetivos que surgem de participações conjuntas em atividades de interesse do sujeito (LEMKE, 2010LEMKE, Jay. Letramento Metamidiático: Transformando Significados e Mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 49, n. 2, 2010, p. 455-479. ).

Em que pese a tensão entre esses dois paradigmas e especialmente a necessidade de revermos os pressupostos que orientam o paradigma curricular relativo a um mundo pré-digital frente ao paradigma interativo, coloca-se o imperativo de reconhecermos que os múltiplos estímulos simultâneos e constantes distrações do ambiente virtual provocam vivências dominadas pela percepção e conexão (SIBILIA, 2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.). Tais vivências, segundo Sibilia (2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.), opõem-se à aprendizagem clássica que exigia a atenção, a consciência, a memória e a palavra (essencialmente escrita) para gerar uma experiência significativa e, acrescentamos, legitimada como escolar.

Para Sibilia (2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.), o universo digital promoveu uma mudança do que a autora identifica como estatuto civilizador e universalista da leitura e da escrita em direção a uma focalização na sua instrumentalidade utilitária. Isso fica evidente, segundo ela, quando tomamos o plágio como indicativo de que a redação de trabalhos acadêmicos parece ter perdido o sentido para a maioria dos nossos estudantes. Nesse tipo de prática, Sibilia identifica um conflito de paradigmas de aprendizagem entre o aluno acusado de plágio e o professor acusador. Isso porque o aluno que constrói o texto com base no copiar e colar, segundo a autora, longe de nada estar fazendo, usa a leitura e a escrita não como procedimento para interpretação, raciocínio e dedução, mas como “ferramentas técnicas a serviço da navegação e conexão”, mobilizadas como competências que permitem a realização de operações práticas (2012, p. 70). Tal perspectiva não somente ressignifica a função da escrita e o seu valor intrínseco sob a mentalidade do digital, mas também chama a uma revisão do papel do professor como agente de letramento e do papel da escola como principal agência de letramento em nossa sociedade, sobretudo quando assumimos que o universo midiático e semiótico inaugurado pelas TDIC redimensiona a importância dos modos topológicos de significação (LEMKE, 2010LEMKE, Jay. Letramento Metamidiático: Transformando Significados e Mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 49, n. 2, 2010, p. 455-479. ), conforme nos revelam os trabalhos escolares apresentados na sequência.

Há que se dizer que existe um viés político importante nesse redimensionamento, uma vez que nossas realidades vividas não podem ser representadas fielmente diante das limitações dos modos tipológicos de significação oriundos da cultura letrada. Portanto, como professoras do campo da linguagem, entendemos que o digital nos coloca a importante demanda de compreendermos e de ensinarmos aos nossos alunos como recursos semióticos de tradições distintas são misturados e recombinados para produzir sentidos que são mais do que a simples soma de tais recursos (LEMKE, 2010LEMKE, Jay. Letramento Metamidiático: Transformando Significados e Mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 49, n. 2, 2010, p. 455-479. ) - eis, então, que se dá a nossa segunda queda.

3 Caindo na Real: segunda queda

O inédito viável é na realidade uma coisa inédita, ainda não conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um percebido destacado pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade. Assim, quando os seres humanos conscientes querem, refletem e agem para derrubar as situações-limite que os e as deixaram a si e a, quase todos e todas limitados a ser menos, o inédito viável não é mais ele mesmo, mas a concretização dele no que ele tinha antes de inviável. Portanto, na realidade são essas barreiras, essas situações-limite que mesmo não impedindo, depois de percebidos-destacados, a alguns e algumas de sonhar o sonho, vêm proibindo à maioria a realização da humanização e a concretização do ser mais (FREIRE, 1992FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p., p. 206-207).

Reforçamos a ideia de que o esforço-solo da personagem-sujeito do relato anedótico se faz presente neste texto com o intuito de, mais que se constituir como metáfora e dar concretude a questões teóricas, impactar professores e mobilizá-los ao entendimento de que os recursos profissionais dos quais estão munidos - tanto por seus estudos de formação quanto por experiência docente - comprometem-nos a criar estratégias menos reprodutivas e mais formativas para instigar seus estudantes à aprendizagem, visto a posição de transgressão que ambos escolhem quando definem a escola como instrumento de mudanças sociais. Nossa intenção não está propriamente em criticar práticas lineares e monomodais, tampouco em mensurar esforços de professores, mas em oferecer-lhes perspectivas, pela evocação de práticas que dialogam com a formação cidadã de sujeitos um pouco mais aptos a intervir de maneira consciente e (pro)positiva nos lugares em que estão e nos que podem vir a circular, em papeis diversos. As redes sociais, por exemplo, passaram a aparecer como lugar oportuno e necessário para que isso acontecesse não apenas porque é “lá” que está boa parte dos jovens, mas principalmente porque o período de isolamento social que ora vivemos tornou o ciberespaço um dos poucos lugares em que se pode circular com segurança sanitária. Essa questão social que atravessa o mundo atribui particular importância às práticas transformativas, visto que sublinha a relevância de instigar estudantes à intelecção menos casual (e mais engajada) do conteúdo que circula online, para que estejam habilitados a usar em seu favor aquelas informações.

Nesse sentido, mobilizadas pela demanda de reconhecer-se e de intervir no mundo da pandemia, muitas têm sido as ações que buscam instigar sujeitos-leitores à percepção crítica do novo entorno: o pintor e fotógrafo espanhol José Manuel Ballester2 2 Espacios ocultos, José Manuel Ballester. Disponível em: https://www.jose manu elballester.com. Acesso em: 03/10/2020. , por exemplo, fez circular em redes sociais seu projeto “Espacios Ocultos”3 3 Disponível em: https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2020/03/23arista-recria-obras-famosas-para-alertar-sobre-importancia-da-quarentena.htm. Acesso em: 23/03/2020. , em que promoveu esvaziamento de famosas obras de arte - como o quadro As Meninas4 4 As Meninas, Diego Velázquez. C. 1656, óleo sobre tela, 321 × 281 cm, Prado, Madri, Espanha. , do espanhol Diego Velázquez (FIGURA 1), e a Última Ceia5 5 A última ceia, Leonardo da Vinci. C. 1495-98, técnica experimental de afresco, 460 × 880 cm, refeitório do Mosteiro de Santa Maria delle Grazie, Milão, Itália. , de Leonardo da Vinci (FIGURA 3) - para problematizar o impacto do isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19, já que nas novas leituras que propôs não há as garotas na sala Velázquez (FIGURA 2) tampouco Jesus e os apóstolos aparecem sentados à mesa de da Vinci (FIGURA 4). Esse tipo de conteúdo expõe metafórica e simultaneamente um mundo mudado e espacialmente reorganizado em que, por um lado as pessoas estão resguardadas e receosas, pelo vírus, e por outro necessitam reinaugurar maneiras de atuar socialmente - trata-se, nos termos de Nita Freire (2009FREIRE, Nita. Inédito-viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 231-234. Verbete. 448p., p. 231), de uma situação-limite.

Figura 1
As Meninas, Diego Velázquez

Figura 2
Palácio real, José Manuel Ballester

Figura 3
A última ceia, Leonardo da Vinci

Figura 4
Última ceia, José Manuel Ballester

Ciente de que “é a leitura do mundo exatamente que vai possibilitando a decifração cada vez mais crítica da ou das situações-limites, mais além das quais se acha o inédito viável” (FREIRE, 1992FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p., p. 106) e mobilizados pela certeza de que “estudar não é um ato de consumir ideias, mas de criá-las e recriá-las” (FREIRE, 1992FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p., p. 14), estudantes e sua professora dedicaram- -se a uma proposta de trabalho6 6 Importa-nos neste texto - como anuncia e enfatiza seu título - refletir acerca do ensino remoto emergencial como oportunidade para emergirem os inéditos viáveis de Freire - tanto para professores, quanto para alunos e para escola. Em função dessa intenção específica, não consideramos relevante para o escopo deste artigo descrever formalmente a metodologia da tarefa cujos resultados estão exemplificados nesta seção. Como autoras, pareceu-nos suficiente mencionar que a atividade Construções e reconstruções foi criada e proposta dentro da disciplina Língua Portuguesa e Literatura Brasileira IV a estudantes do Ensino Médio Integrado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Câmpus Rio Grande, durante o ensino remoto, em outubro/2020, com a intenção de motivar estudantes a observarem com maiores atenção e crítica conteúdos de redes sociais bem como refletirem acerca de formas de recriar o mundo em tempos de isolamento social. que apareceu como propiciamento para a percepção de que um mundo esvaziado também pode significar uma oportunidade para criticar a realidade e propor formas diferentes de encará-lo - daí o nome da tarefa, construções e reconstruções, que remete à ideia de que o que está estabelecido pode ser mantido ou questionado, revisitado e receber críticas pelo modo como vem se apresentando, afinal, “se a possibilidade de reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo, associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhe são impostos pelo próprio mundo” (FREIRE, 1989FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra . 1989. 112p., p. 16-17). Tais sentidos estão evidentes na bricolagem semiótica da Figura 6, em que uma estudante-autora, engajada à proposta de recriar um texto conhecido, problematiza o racismo e questiona o estereótipo branco como o único aceito em um determinado período da História da Arte como passível de beleza suficientemente harmoniosa para merecer ser retratado, ao colorir a Vênus7 7 Nascita di Venere, Sandro Botticelli. C. 1492-95, têmpera sobre tela, 1,72 × 2,78 m, Galleria degli Uffizi, Florença, Itália. , de Botticelli (FIGURA 5). Por esse viés, “O renascimento de Vênus” - título escolhido para a obra revisitada - busca mostrar, nos termos da autora e através de uma Vênus negra, “que há mais formas de se representar a pureza almejada no quadro”.

Figura 5
O nascimento de Vênus, Sandro Botticelli

Figura 6
“O renascimento de Vênus”tarefa de estudante

Outra crítica emergiu na tarefa representada pela Figura 8 que, nos termos dos estudantes-autores, refere-se “à sobrecarga de informação à qual o indivíduo é submetido no século XXI e ao cansaço gerado por ela, em função do bombardeamento de dados oferecidos pela mídia tradicional - rádio e televisão - e pela internet, hoje, quase onipresente nas relações humanas”. Assim, “A cansada mãe de Whistler” promove que o Arranjo em Cinza e Preto nº 18 8 Arranjo em cinza e preto nº 1 (A mãe de Whistler), James Abbott McNeill Whistler. C. 1871, óleo sobre tela, 144.3 × 162.4 cm, Musée d’Orsay, Paris, França. , popularmente conhecido como “Mãe de Whistler” (FIGURA 7), do pintor James McNeill Whistler, seja recontextualizado temporalmente e, com isso, passe a dialogar com vivências contemporâneas e a questioná- -las, pela inserção de elementos e de recursos como intertextualidade, que caracterizam a reconstrução e substituem o tom contemplativo da obra original pela crítica à angústia - expressa pela inserção de O grito9 9 O grito, Edvard Munch. C. 1893, óleo sobre tela, têmpera e pastel sobre cartão, 91 × 73,5 cm, Galeria Nacional, Noruega. na parede - que o excesso de informações disponibilizadas pelas mídias - metonimicamente representadas pela televisão sintonizada em canal de notícias - tem trazido ao homem contemporâneo, que passou a estar inexoravelmente desatualizado na sociedade do desempenho (HAN, 2015HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 136p.).

Figura 7
Arranjo em Cinza e Preto nº 1, James McNeill Whistler

Figura 8
“A cansada mãe de Whistler”, tarefa de estudantes

Realidade semelhante foi expressa em “Além dos livros” (FIGURA 10), em que estudantes inseriram elementos do próprio cotidiano em A morte de Marat10 10 A morte de Marat, Jacques-Louis David. C. 1793, óleo sobre tela, 165 × 128 cm, Museus Reais de Belas-Artes, Bélgica-Bruxelas. , de Jacques-Louis David (FIGURA 9), para problematizar os excessos no ensino remoto recorrentemente relatados por alunos em avaliações deste novo processo de educação formal, decorrentes principalmente da inexperiência docente no manejo de metodologias de ensino dessa natureza. Assim, ao reconstruírem a obra, ao jogo original de sombras e luz foram incluídos ícones que aludem ao bom desempenho dos estudantes, pela lógica produtivista: os óculos (já que a visão está comprometida pelo tempo demasiado diante de telas), a frase motivacional fixada na parede com moldura dourada, que remete ao verniz de glamour que o excesso de positividade comumente adquire na sociedade do desempenho (HAN, 2015HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 136p., p. 24), e o acúmulo de afazeres referentes não apenas à escola mas também ao Exame Nacional do Ensino Médio - lembremo-nos que o Ministério da Educação realizou uma enquete consultando os candidatos acerca de data mais conveniente para adiamento das provas do exame, em função do atraso de conclusão do ano letivo, por causa da pandemia, e não acatou o período indicado pela maioria dos estudantes. “Além dos livros” (FIGURA 10), então e nos termos dos estudantes-autores, versa sobre a saúde mental no ensino remoto.

Figura 9
A morte de Marat, Jacques-Louis David

Figura 10
“Além dos livros”, tarefa de estudante

É relevante, ainda, mencionar que outras possibilidades de realizar a atividade foram facultadas aos alunos, em função de as habilidades de edição de imagens requeridas para a realização da primeira proposta não serem compartilhadas por todos os estudantes-autores; assim, o desafio do Museu J. Paul Getty11 11 30 pessoas que decidiram recriar obras de arte durante a quarentena. Disponível em: https://misteriosdomundo.org/mais-30-imagens-de-pessoas-recriando-obras-de-arte-durante-a-quarentena/amp. Acesso em: 03/10/2020. , de Los Angeles, que provocou, durante a pandemia, leitores a recriarem suas obras favoritas usando apenas aquilo que pudessem encontrar em suas casas, apareceu como opção para a realização da tarefa. Um exemplo de adesão a essa segunda proposição está na Figura 11, que recria uma conhecida imagem em que a artista Susan Marie Frontczak performa a cientista polonesa Marie Curie12 12 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/colunistas/luciana-galastri/noticia/ 2014/03/nao-e-marie-curie-que-esta-nessa-foto.html. Acesso em: 30/11/2020. , primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel13 13 Disponível em https://www.nobelprize.org. Acesso em: 30/11/2020. e primeira pessoa laureada duas vezes com a honraria, por seus estudos sobre radioatividade, para um retrato de Paul Schroder (FIGURA 12). A intenção das estudantes-autoras foi de criticar a estereotipização da atuação de profissionais na área científica, comumente masculina, bem como de expressar suas angústia e ansiedade acerca da educação e da formação de cientistas, feitas agora remotamente, via computador e internet, em função da pandemia. Nesse sentido, além de ansiar pela consistência de sua formação, as alunas também evidenciam, pela escolha do tema, as barreiras que reconhecem, como mulheres, para a sua inserção em áreas de saber estigmatizadas pelo machismo que ainda permeia relações na Academia.

Figura 11
“A cientista”, tarefa de estudantes

Figura 12
Marie Curie, Paul Schroder

Esses quatro exemplos de textos multissemióticos recriados pelos estudantes permitem-nos perceber, subjacente à proposta da atividade, que o “ajuda-me a olhar” - expresso por Galeano (2002GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002. 272p., p. 7) no pequeno conto a função da arte - aparece aqui como estratégia de mobilizar, através de uma educação linguística mediada pelas TDIC e que se ampara no trabalho experimental com a dimensão topológica da significação, a formação de sujeitos inquietados a agir de forma esperançosa em situações-limite e inesperadas, como a que ora vivemos - visto que “o mundo não é, o mundo está sendo” (FREIRE, 2004FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 148p. , p. 79). Outra vantagem formativa desse tipo de proposta é a possibilidade de que “rever o antes visto quase sempre implica ver ângulos não percebidos. A leitura posterior do mundo pode constituir-se de forma mais crítica, menos ingênua, mais rigorosa” (FREIRE, 2006FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d›Água. 2006. 120p., p. 24), já que os estudantes passam a entender que estão autorizados a intervir no que está posto, como fizeram-no nas obras de arte da tarefa em questão. Assim, acreditamos que ações docentes por essa perspectiva criam propiciamentos para que “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugure com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História” (FREIRE, 2004FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 148p. , p. 32), em que se insere a ideia do devir, da realidade a que não precisamos estar resignados, porque pode ser (re)criada. Há de se mencionar também que esse tipo de atividade abre caminho para uma educação indisciplinar (MOITA-LOPES, 2006MOITA-LOPES, Luis Paulo (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. 279p.), uma vez que requer, para sua resolução, que os estudantes lancem mão de reflexões promovidas em aulas de Sociologia, Filosofia, História, Geografia e Ciências, por exemplo, porque se constrói de maneira transgressiva e crítica sobre práticas sociais.

4 Considerações finais: “levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”14 14 Expressão dicionarizada, criada por Paulo Vanzolini e popularizada, em 1960, no samba Volta por cima, do mesmo autor, segundo o qual “dar a volta por cima” não se trata apenas de vencer as dificuldades, mas de vencê-las com grandeza e generosidade. Disponível em: http://museudacancao.blogspot.com/2012/11/volta-por-cima.html. Acesso em: 23 abr. 2021.

De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza ‘estou sonhando com o meu próximo emprego, com o próximo carro’, mas que é uma experiência transcendental na qual o casulo humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2020. 102p., p. 66).

A notícia de que uma empregada doméstica moradora de um município brasileiro de menos de 30 mil habitantes cria uma estratégia para interagir com uma cantora de rock de quem é fã costuma repercutir de formas diversas, todas elas tangendo ao corriqueiro, visto o clichê de que a internet encurta distâncias e promove encontros. Entretanto, ao acrescentarem-se as informações de que, além de não dispor de acesso à internet em sua residência, trata-se de alguém semi-analfabeta e com alto grau de surdez e, mais que isso, que a cantora mora em Israel e não fala português, o que era um lugar-comum passa a ceder lugar à incredulidade, afinal, como pode haver comunicação sem o compartilhamento de um código em comum e com a escassez de meio para compartilhar mensagens? Essa alegoria (FIGURA 13) ilustra diversas situações-limite a que muitos brasileiros excluídos de privilégios de ordem diversa estão expostos mas que, ao contrário de considerar determinantes históricos como condicionantes, tornam-nos “percebido destacados”, ou seja, sentem-se mobilizados a agir e a descobrir o “inédito viável” (NITA FREIRE, 2009FREIRE, Nita. Inédito-viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 231-234. Verbete. 448p., p. 205-206). Nesse sentido, o conceito de inédito viável como “palavra na qual estão intrínsecos o dever e o gosto de mudarmos a nós mesmos dialeticamente mudando o mundo e sendo por este mudado” (NITA FREIRE, 2009FREIRE, Nita. Inédito-viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 231-234. Verbete. 448p., p. 231) passa pela negação da personagem-sujeito desta alegoria ao que lhe estava socialmente pré-estabelecido para, a partir dessas rupturas, realizar algo que sequer lhe havia sido facultado.

Figura 13
Representação visual do relato anedótico, criada pelas autoras

Não se trata de aprender um novo idioma para bem-comunicar-se, tampouco de dominar tecnologias para dar conta de feitos extraordinários, mas de tatear formas de acessar a internet, localizar alguém em uma rede social, conhecer um tradutor eletrônico, formular e enviar uma mensagem escrita minimamente inteligível - visto as restrições de audição -, obter uma resposta e decodificá-la com os mesmos recursos muitas vezes ineficientes, porque literais, de maneira satisfatória; não bastasse isso, repetir o processo tantas vezes tenham sido necessárias para que fosse construída uma interlocução. Em outros termos, Daiana constrói o seu inédito viável tecendo uma rede que envolve tecnologias, recursos semióticos, línguas, letramentos, tempos, espaços e pessoas estrategicamente agenciados. É nesse amálgama que Daiana vai construindo uma subjetividade que se projeta socialmente mais nas conexões que ela estabelece do que nas filiações e pertencimentos anteriores a tais conexões. Para alguns, os agenciamentos empreendidos por Daiana podem parecer uma ação corriqueira; para um contingente ainda maior, algo improvável; para outros, entretanto, um feito emancipador especialmente pelas metáforas de capacidade que traz consigo.

É justamente para pessoas como Daiana, seus filhos e suas demandas que a escola existe, comprometida (ou não!) com a oportunidade de alavancar que “no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres e homens, virando seres da inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo, terminaram por ter no sonho também um motor da história. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança” (FREIRE, 1992FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p., p. 91). Por isso, optar, em momentos de crise como o que ora vivemos, por uma perspectiva desesperançosa, atribui ao cair na rede o sentido de armadilha que aprisiona quando se encara o digital sob a lógica dos pressupostos de uma cultura tipográfica e grafocêntrica, sob a qual a instituição escola foi historicamente construída, como já argumentado. Sob a perspectiva da esperança crítica freireana, calcada pela práxis, entretanto, pode ser uma oportunidade para que novas conexões e agenciamentos se estabeleçam no campo educacional, se soubermos compreender a cultura digital a ponto de tirar proveito pedagógico dela. Ao educador crítico, assim como ao linguista aplicado crítico, ambos conscientes e comprometidos com o seu papel social na construção de um mundo mais plural, justo e democrático, diante da crise não há outra opção que não seja a da esperança que se constitui na ação crítica de Paulo Freire, assim como no lugar do sonho de Ailton Krenak. A ação crítica, ao traduzir-se num esforço de superar a situação-limite figurativizada pela pandemia forjando gambiarras pedagógicas, aponta para o inédito que se faz viável - tal qual Daiana realiza intuitivamente.

Compreendemos qualquer tecnologia como um aparato tecno-humano (SIBILIA, 2012SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.), em vez de um artefato de que simplesmente dispomos e acessamos. Logo, quanto mais consistentes e variados forem os agenciamentos produzidos entre a tecnologia e os demais atores da rede em que está inserida, mais produtivos e significativos serão seus efeitos sociais, a exemplo do feito de Daiana e dos relatos pedagógicos que compartilhamos - e a arte, dessa feita, assume status de “uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela” (VYGOTSKY, 1999VYGOTSKY, Lev. Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999. 140p., p. 320). Isso quer dizer que os efeitos do uso de uma tecnologia particular vão depender dos agenciamentos promovidos a partir daquela tecnologia, não de qualidades intrínsecas a ela. É por essa razão que podemos ter tanto uma aula simbolicamente rica construída a partir de tecnologias rudimentares como a lousa e o giz, quanto uma aula simbolicamente pobre construída a partir de refinadas tecnologias digitais.

Entendemos que, neste momento, no campo educacional, o nosso desafio é o de buscar construir alternativas que rearticulem as linhas de fuga que se abrem com as referidas rupturas tecnológicas, espaciotemporais e epistemológicas, em novas topografias que sustentem uma escola alternativa ao modelo que até aqui conhecido. Acerca do papel do professor, cabe o questionamento de Freire (1992FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p., p. 43) sobre “que educador seria eu se não me sentisse movido por forte impulso que me faz buscar (...)? ”. A beleza inerente ao desafio posto pelo autor não dá opção aos docentes que não seja a da esperança, que move à realização comprometida de ações cotidianas que ensinem a astúcia de Daiana, o olhar de Galeano (2002GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002. 272p.), o fazer de Dewey (1959DEWEY, John. Democracia e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. 416p. ), as metáforas de Vygotsky (1999VYGOTSKY, Lev. Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999. 140p.), a cosmovisão de Krenak e o ser de Freire (1992FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p.), ou seja, a elocução crível de que o inédito viável se constitui como um tipo de resistência. Resistir, então, implica a assunção de que o papel atual da escola é o de assegurar recursos materiais e simbólicos para que os alunos se apropriem e lancem mão, de maneira reflexiva e responsiva, da riqueza semiótica do meio digital, o que passa inexoravelmente por uma formação docente para o trabalho crítico com as novas tecnologias e o letramento digital como demanda local para um mundo (pós)pandemia que enfrenta desafios globais de diferentes ordens e instâncias.

Referências

  • BUZATO, Marcelo El Khouri. Cultura digital e apropriação ascendente: apontamentos para uma educação 2.0. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 3, p. 283-304, dez. 2010.
  • BRUNS, Axel. Blogs, Wikipedia, Second life, and Beyond: from production to produsage. New York: Peter Lang, 2008. 405p.
  • CASTELLS, Manuel. O digital é o novo normal. Fronteiras do Pensamento, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/o-digital-e-o-novo-normal Acesso em: 09/12/2020.
    » https://www.fronteiras.com/artigos/o-digital-e-o-novo-normal
  • DEWEY, John. Democracia e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. 416p.
  • FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística aplicada e visão de linguagem: por uma INdisciplinaridade radical. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte, v. 17, n.4, p. 599-617, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3ª.Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. 291p.
  • FREIRE, Nita. Inédito-viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 231-234. Verbete. 448p.
  • FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d›Água. 2006. 120p.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 184p.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 148p.
  • FREIRE, Paulo. Professora Sim, Tia Não - cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’Água, 1994. 127p.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1992. 245p.
  • FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra . 1989. 112p.
  • GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002. 272p.
  • HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 136p.
  • HARARI, Yuval Noah. Notas sobre a pandemia. E breves lições para o mundo pós-coronavírus. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 97p.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2020. 102p.
  • KNOBEL, Michele; LANKSHEAR, Colin. Sampling ‘the new’ in new literacies. In: KNOBEL, M; LANKSHEAR, C. A new literacies sampler. New York: Peter Lang , 2007, p. 1-24.
  • LATOUR, Bruno. Reassemblimg the Social. An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press, 2005. 301p.
  • LEMKE, Jay. Letramento Metamidiático: Transformando Significados e Mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 49, n. 2, 2010, p. 455-479.
  • LEVY, Pierre. Cibercultura.3ª. Ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. 270p.
  • LEVY, Pierre. O que é o virtual? 2ª. Ed. São Paulo: Ed. 34 , 2011. 160p.
  • MILLER, Vincent. Understanding Digital Culture. London: SAGE Publications, 2011. 254p.
  • MOITA-LOPES, Luis Paulo (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. 279p.
  • SIBILIA, Paula. Redes e Paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, 2012. 222p.
  • VYGOTSKY, Lev. Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999. 140p.
  • 1
    Utilizamos o termo relato anedótico para fazer referência a uma situação do nosso cotidiano em que nossos olhares como linguistas aplicadas detectam informalmente uma situação que julgamos merecedora de reflexão, ainda que não seja fruto de um estudo de campo exploratório com objetivos de pesquisa claramente definidos de antemão.
  • 2
    Espacios ocultos, José Manuel Ballester. Disponível em: https://www.jose manu elballester.com. Acesso em: 03/10/2020.
  • 3
  • 4
    As Meninas, Diego Velázquez. C. 1656, óleo sobre tela, 321 × 281 cm, Prado, Madri, Espanha.
  • 5
    A última ceia, Leonardo da Vinci. C. 1495-98, técnica experimental de afresco, 460 × 880 cm, refeitório do Mosteiro de Santa Maria delle Grazie, Milão, Itália.
  • 6
    Importa-nos neste texto - como anuncia e enfatiza seu título - refletir acerca do ensino remoto emergencial como oportunidade para emergirem os inéditos viáveis de Freire - tanto para professores, quanto para alunos e para escola. Em função dessa intenção específica, não consideramos relevante para o escopo deste artigo descrever formalmente a metodologia da tarefa cujos resultados estão exemplificados nesta seção. Como autoras, pareceu-nos suficiente mencionar que a atividade Construções e reconstruções foi criada e proposta dentro da disciplina Língua Portuguesa e Literatura Brasileira IV a estudantes do Ensino Médio Integrado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Câmpus Rio Grande, durante o ensino remoto, em outubro/2020, com a intenção de motivar estudantes a observarem com maiores atenção e crítica conteúdos de redes sociais bem como refletirem acerca de formas de recriar o mundo em tempos de isolamento social.
  • 7
    Nascita di Venere, Sandro Botticelli. C. 1492-95, têmpera sobre tela, 1,72 × 2,78 m, Galleria degli Uffizi, Florença, Itália.
  • 8
    Arranjo em cinza e preto nº 1 (A mãe de Whistler), James Abbott McNeill Whistler. C. 1871, óleo sobre tela, 144.3 × 162.4 cm, Musée d’Orsay, Paris, França.
  • 9
    O grito, Edvard Munch. C. 1893, óleo sobre tela, têmpera e pastel sobre cartão, 91 × 73,5 cm, Galeria Nacional, Noruega.
  • 10
    A morte de Marat, Jacques-Louis David. C. 1793, óleo sobre tela, 165 × 128 cm, Museus Reais de Belas-Artes, Bélgica-Bruxelas.
  • 11
    30 pessoas que decidiram recriar obras de arte durante a quarentena. Disponível em: https://misteriosdomundo.org/mais-30-imagens-de-pessoas-recriando-obras-de-arte-durante-a-quarentena/amp. Acesso em: 03/10/2020.
  • 12
  • 13
    Disponível em https://www.nobelprize.org. Acesso em: 30/11/2020.
  • 14
    Expressão dicionarizada, criada por Paulo Vanzolini e popularizada, em 1960, no samba Volta por cima, do mesmo autor, segundo o qual “dar a volta por cima” não se trata apenas de vencer as dificuldades, mas de vencê-las com grandeza e generosidade. Disponível em: http://museudacancao.blogspot.com/2012/11/volta-por-cima.html. Acesso em: 23 abr. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2020
  • Aceito
    24 Maio 2021
Faculdade de Letras - Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Letras, Av. Antônio Carlos, 6627 4º. Andar/4036, 31270-901 Belo Horizonte/ MG/ Brasil, Tel.: (55 31) 3409-6044, Fax: (55 31) 3409-5120 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: rblasecretaria@gmail.com