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Dois monumentos literários: O livro de Vargas Llosa sobre Borges1 1 Uma versão reduzida deste texto foi publicada na Revista Parêntese, Porto Alegre, julho de 2021.

Two literary monuments Vargas Llosa’s book on Borges

Dos monumentos literarios: el libro de Vargas Llosa sobre Borges

RESUMO

Este texto analisa o novo livro de Mario Vargas Llosa, Medio siglo con Borges (2020), à luz do debate atual sobre derrubada/permanência de monumentos. Vargas Llosa e Jorge Luis Borges são interpretados como monumentos literários para ensejar uma reflexão sobre cânone literário e atualização da crítica. Walter Benjamin, Beatriz Sarlo e Lélia Gonzalez são alguns dos teóricos mobilizados no raciocínio.

PALAVRAS-CHAVE:
Mario Vargas Llosa; Jorge Luis Borges; história literária; literatura hispano-americana

ABSTRACT

This article analyses the recent book by Mario Vargas Llosa, Medio siglo con Borges (2020), in the light of contemporary debates on the removal or preservation of controversial monuments. Vargas Llosa and Borges are read as literary monuments in a meditation on literary canons and the currency of criticism. Among others, the ideas of Walter Benjamin, Beatriz Sarlo and Lélia Gonzalez are incorporated in the analysis.

KEYWORDS:
Mario Vargas Llosa; Jorge Luis Borges; literary history; Hispano-American literature

RESUMEN

Este texto analiza el nuevo libro de Mario Vargas Llosa, Medio siglo con Borges (2020), a la luz del debate actual sobre derribo/permanencia de monumentos. Se interpreta a Vargas Llosa y a Jorge Luis Borges como monumentos literarios para provocar una reflexión sobre canon literario y actualización de la crítica. Walter Benjamin, Beatriz Sarlo y Lélia Gonzalez son algunos de los teóricos que componen el raciocinio.

PALABRAS CLAVE:
Mario Vargas Llosa; Jorge Luis Borges; historia literaria; literatura hispanoamericana

Monumentos

Alguns monumentos estão caindo, até onde alcança minha compreensão de não especialista, por motivos justificáveis. Disputas pela memória são parte da história, cada presente tem o direito de rever suas homenagens e, mais importante, rever se lhe interessa um tipo de monumentalização que heroiciza, achata, esconde os conflitos. Obviamente, há forças em tensão em cada presente; diferentes setores da sociedade civil organizada podem ter visões antagônicas sobre o que é monumentalizável, e o poder e prestígio desigual entre esses setores se manifesta na esfera pública.

Grupos historicamente poderosos e prestigiados podem naturalizar a permanência de certas homenagens, minimizando a violência incrustrada nelas, sob a alegação de manter vivo o passado. Versões menos arrogantes, embora também conformistas, podem defender a manutenção reconhecendo a violência, mas justificando-a como procedimento de época, como se cada época tivesse apenas um procedimento. Walter Benjamin, em 1940, nas teses Sobre o conceito de história, já alertava para a variante histórica que triunfou não ser a única possível (2005BENJAMIN, Walter. Teses ‘Sobre o conceito de história’. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - Uma leitura das teses sobre o conceito de história. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. , p. 142-146).

Grupos historicamente alijados dos espaços de poder e prestígio podem recorrer a métodos pretensamente radicais para se fazerem ouvir, ou porque se cansaram dos métodos instituídos, ou porque não os reconhecem como seus. Sujeitos mais cordiais podem tentar disputar o método por dentro das instituições e pacientemente trabalhar por alguma transformação. E como a história tem muito mais de dois lados, essas tensões podem se manifestar nos cruzamentos mais diversos, principalmente porque nossa relação com monumentos está também no plano do sensível, dos afetos, de nossa experiência com a cidade.

Entre os especialistas, pesquisas recentes sobre patrimônio têm registrado uma ampliação desse conceito que esteve por muito tempo ligado à exaltação de determinada cultura, em geral europeia, branca e masculina, que, a partir da segunda metade do século XX, tem de dividir espaço com demandas de grupos marginalizados que reivindicam uma justa representação antes negada. A criação da Unesco nos anos 1940, respondendo a acordos internacionais do pós-guerra, portanto menos empenhada em uma patrimonialização de elogio nacional, foi um marco importante nesse alargamento da noção de patrimônio; o posterior reconhecimento de lugares da dor (como centros de tráfico de escravizados, campos de concentração) como patrimônios mundiais e a instituição do conceito de patrimônio imaterial são faces dessa guinada importante no campo. As funções sociais do patrimônio foram ampliadas, o que antes podia cumprir um papel apenas de homenagem passou a ter também como finalidade a rememoração coletiva, o reconhecimento de direitos, a reparação de injustiças. Nas palavras de Carvalho e Meneguello:

Desde o final do século XVIII, o patrimônio tem servido como um esteio para a definição de identidades compartilhadas. É inegável que durante séculos esse patrimônio era uma materialidade de exaltação de uma imaginada cultura europeia, branca, masculina e exclusiva. As ações de crítica, resistência e busca pela pluralização do patrimônio foram intensas e marcaram, em especial, a segunda metade do século XX. As vozes dissonantes ao patrimônio vieram das Américas, da África, da Ásia, da Oceania e mesmo de dentro da própria Europa. A partir da ação de grupos sociais, do diálogo com outros movimentos como a Nova Museologia, fomos ampliando aquilo que poderia ser compreendido como patrimônio. Do cultural, expandimos para o natural. Do material, para o imaterial. Das percepções eurocêntricas da própria epistemologia do patrimônio, deslocamos sentidos para outras percepções culturais acerca da memória e do patrimônio. Consideramos todas essas revisões no campo patrimonial como imensas conquistas de lutas sociais. De certa forma, ao analisarmos essas movimentações ao longo do tempo e do espaço, entendemos que a luta pelo direito a diversidade também esteve presente no que escolhemos como nossos patrimônios. (CARVALHO; MENEGUELLO, 2020CARVALHO, Aline; MENEGUELLO, Cristina (orgs.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas: Editora da Unicamp, 2020., p. 24).

Monumentos literários

Há algum parentesco entre esse debate sobre patrimônio e o que, na história da literatura, se concentrou na arguição do cânone. O debate não é novo, recua a pelo menos os anos 1980, quando os Cultural Studies se espalharam pelas universidades, embora um livro como O cânone ocidental (1995BLOOM, Harold. O cânone ocidental: Os livros e a escola do tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.), de Harold Bloom, que vai na contramão da relativização do cânone e provavelmente reaja à sua desestabilização, tenha espaço e circulação garantidos. Como acontece no campo da história, os estudos literários são terreno de disputa, e a preservação, derrubada ou atualização do cânone são tópicos correntes e muitas vezes controversos.

Não vou me alongar nessa questão, longamente debatida no campo literário, refiro apenas a lucidez de Beatriz Sarlo que tratou do cânone em termos razoáveis:

Una atropellada ambición piensa a la crítica como tribuna del canon, y al crítico como juez. Ningún libro entra en el canon por una sola lectura. Hace falta más: instituciones, plazos que se cumplan, aceptación de otros críticos, públicos que se dejen convencer. La “teoría del canon” carga a la crítica de intrascendencia, aunque se ilusione en denunciar su poder o se jacte de afirmarlo. El canon es perecedero, aunque tenga la fantasía del mármol de la historia literaria. El crítico que escribe para fundar un canon se resigna a ser, en pocos años, un sujeto anacrónico. El canon es un efecto, no un producto del voluntarismo. (SARLO, 2012SARLO, Beatriz. Ficciones argentinas: 33 ensayos. Buenos Aires: Mardulce, 2012., p. 12-13).

Com isso chegamos à provocação expressa no título deste artigo. Chamar Mario Vargas Llosa (Peru, 1936) e Jorge Luis Borges (Argentina, 1899 - 1986) de monumentos literários, por um lado coloca-os no lugar confortável das homenagens, por outro localiza o problema neste tempo em que monumentos vêm abaixo. O assunto ganha outra dimensão quando um monumento escreve um livro sobre o outro: Vargas Llosa acaba de publicar Medio siglo con BorgesVARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020.

O livro reúne textos de Vargas Llosa sobre o escritor argentino publicados em jornais, a maioria de Lima, Londres, Madri e Paris, entre 1963 e 2014, o que fecharia o meio século com Borges que dá título ao conjunto. Aparentemente, o livro estava pronto em 20142 2 É preciso registrar que a edição é um tanto descuidada. A introdução, assinada por Vargas Llosa, está datada em 2004, mas é pouco provável que o texto tenha sido escrito nesse ano, já que o livro reúne ensaios publicados em 2008, 2011 e 2014. Além disso, há um texto incorporado no livro de 2020 que já havia sido publicado em livro anterior de Llosa, El viaje a la ficción: El mundo de Juan Carlos Onetti (Alfaguara, 2008). Esse texto, uma comparação entre Borges e Onetti, aparece como sendo de 2018. Enfim, a datação dos textos incluídos em Medio siglo con Borgesé, no mínimo, confusa. , data do último texto e do poema introdutório, e é difícil saber por que ele veio a público só em 2020. Conhecendo o rigor da Fundação Internacional Jorge Luis Borges, capitaneada por María Kodama (elogiada por Vargas Llosa em um dos textos, vale registrar), em autorizar a publicação de qualquer material que envolva o nome de Borges, essa demora na edição do livro de Vargas Llosa pode ter passado por aí. Será que até o Prêmio Nobel de Literatura, que também ostenta uma menção menos honrosa - foi citado nos Panamá Papers (injustamente, segundo ele) -, teve problemas para usar o santo nome de Borges? Monumentos, monumentos...

Saindo do terreno da especulação, o poema que abre o livro (sim, Vargas Llosa, esse romancista convicto, escreveu um poema sobre Borges; um poema narrativo e de síntese, mas ainda assim um poema) pede um comentário mais demorado.

De la equivocación ultraísta

de su juventud

pasó a poeta criollista,

porteño, cursi, patriotero

y sentimental.

Documentando infamias ajenas

para una revista de señoras,

se volvió un clásico

(genial e inmortal).

[…]

Su cuarto de juguetes

fue siempre un

bric-à-brac:

tigres, espejos, alfanjes,

laberintos,

compadritos, cuchilleros,

gauchos, sueños, dobles,

caballeros y

asexuados fantasmas.

Demasiado inteligente

para escribir novelas

se multiplicó en cuentos

insólitos,

perfectos, cerebrales

y fríos como círculos.

[…]

Vivió leyendo y leyó viviendo

- no es la misma cosa -

porque todo en la vida

verdadera

lo asustaba,

principalmente

el sexo y

el peronismo.

Era un aristócrata

algo anarquista

y sin dinero,

un conservador,

un agnóstico

obsesionado con la religión,

un intelectual erudito,

sofista,

juguetón.

Hechas las sumas

y las restas:

el escritor más sutil y elegante

de su tiempo.

Y,

probablemente,

esa rareza:

una buena persona. (VARGAS LLOSA, 2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 9-11)

O poema parece registrar, em chave irônica, uma tensão presente no livro todo. Ao mesmo tempo em que Llosa reverencia Borges pelo estilo elegante, pela inteligência extraordinária, pelos contos perfeitos, pontua a ausência de certa corporeidade na obra do argentino, manifestada especialmente em sua aversão à política e ao sexo, o que também afastaria Borges do romance. Essa tensão torna o livro interessante em mais de um aspecto, principalmente porque retira Borges de qualquer pedestal. O ponto de vista de Vargas Llosa é crítico, suas análises são precisas e sofisticadas, em certos tópicos antecipam leituras de especialistas consagrados, como comentaremos a seguir. O problema é que o ponto de vista de Vargas Llosa é autocentrado e pouco autocrítico, e o andamento do texto às vezes sugere que o defeito de Borges é não ser um romancista “viril” e politizado como ele. Monumentos, monumentos...

A contagem do meio século de Vargas Llosa com Borges começa em 1963, data de Preguntas a Borges, entrevista publicada em jornais de Paris e Lima. Nessa época Vargas Llosa, com 27 anos, então autor da coletânea de contos Os chefes (1959)3 3 No Brasil, traduzido por Remy Gorga Filho para a editora Nova Fronteira em 1976. e do romance A cidade e os cachorros (1963)4 4 Publicado no Brasil com o título Batismo de fogo, tradução de Milton Persson para a Nova Fronteira em 1977. Depois editado pela Companhia das Letras, em 1997, com o título A cidade e os cachorros, tradução de Sérgio Molina. , já aparecia como escritor de talento, mas muitos degraus abaixo do sexagenário argentino recebido com pompa em Paris. Essa disparidade fica evidente no acanhamento das perguntas - o que está fazendo na França? O que achou do encontro de escritores? Qual seu escritor francês favorito? Que livros levaria para uma ilha deserta? - e na perspicácia das respostas de Borges.

Um exemplo. Quando Borges cita Flaubert como o grande escritor francês, Vargas Llosa emenda uma pergunta sobre qual dos dois Flaubert, o realista de Madame Bovary e A educação sentimental ou o das grandes construções históricas Salambô e As tentações de Santo Antão. Sempre desconfiado das categorias e classificações, Borges dispara: o terceiro Flaubert, do inconcluso Bouvard e Pécuchet. Em 1975, Vargas Llosa publica A orgia perpétua5 5 Tradução de Remy Gorga Filho para a editora Francisco Alves em 1979. , estudo dedicado à obra de Flaubert, muitíssimo mais sofisticado que o esquema antitético apresentado a Borges na entrevista.

O jovem Vargas Llosa, nessa entrevista de 1963, intuiu mas não avançou na identificação de Paris como centro legitimador da obra de Borges internacionalmente. Ele desenvolve o tema em artigo de 1999, também incluído em Medio siglo con Borges. Em “Borges en París”, Vargas Llosa, a essa altura consagrado nome do boom latino-americano, é certeiro: nenhum país desenvolveu melhor que a França a arte de detectar o gênio artístico forâneo e, entronizando-o e irradiando-o, apropriar-se dele (2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 67).

Esse diagnóstico sobre a centralidade agressiva de Paris no campo literário está em sintonia com excelentes estudos sobre o tema, A república mundial das letras, de Pascale Casanova, por exemplo, publicado em francês no mesmo ano do artigo de Vargas Llosa, 1999. Nesse livro, Casanova trata as tensões do meio literário como uma bolsa de valores que escancara o desequilíbrio entre centro e periferia (2002CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002., p. 27). Nesse modelo, Paris ocupa o lugar de capital literária capaz de atrair autores das margens para o centro da cena literária. Borges é recorrentemente citado por Casanova como exemplo dessa dinâmica, flagrada também por Vargas Llosa no artigo citado.

Nesse texto, Vargas Llosa relembra o encontro de 1963 e o alvoroço causado por Borges na Paris dos anos 1960: conferências lotadas, com ilustres presenças na plateia (Roland Barthes, para ficar no exemplo mais eloquente) homenagens em suplementos literários, traduções e, claro, a referência a Borges no prefácio de As palavras e as coisas (1966), de Michel Foucault. O mote para “Borges en París” é o centenário de nascimento do argentino (1899 - 1999), largamente comemorado na capital francesa e descrito por Llosa como quase caricatural: “la trompetería y los fastos del centenario” (2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 70). Aparecem também nesse texto avaliações que Llosa repete em outros artigos da coletânea, o estilo inteligente e límpido de Borges, a concisão matemática, a adjetivação audaz, sua aversão ao gênero romance, seu venenoso senso de humor (chamou García Lorca de andaluz profissional, rebatizou o romance de Eduardo Mallea para Todo lector perecerá - o título verdadeiro é Todo verdor perecerá -, disse que a obra de Ernesto Sábato pode ser posta na mão de qualquer um sem nenhum perigo...).

O ensaio de maior fôlego do livro é “Las ficciones de Borges”, de 1987. Registro de uma conferência em Londres, nesse texto Vargas Llosa comenta com mais detalhe aquelas que para ele são as linhas de força da narrativa borgeana. Esse comentário vem, no entanto, atravessado pela reflexão sobre a própria narrativa, o quanto Llosa traçou para si um projeto literário em muitos sentidos oposto ao de Borges. Ele abre o texto com uma referência a Sartre e a tese do engajamento do escritor, sua referência de juventude, e o quanto o fascínio por Borges, iniciado na mesma época, colidia com esse modelo. Conclui afirmando que o Vargas Llosa de 1987 se afastou de Sartre e não deixou de admirar Borges, embora tenha também em relação a ele divergências artísticas e políticas.

No âmbito da admiração, Vargas Llosa aponta a ruptura que Borges representou com certo complexo de inferioridade do escritor latino-americano, a ideia de que todos têm direito à cultura ocidental. E isso sem deixar de ser profundamente argentino, conhecendo as limitações e potencialidades de sua condição periférica. Aqui, novamente Vargas Llosa está em sintonia com o debate teórico do período: Modernidade periféricaSARLO, Beatriz. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. Tradução de Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2010., de Beatriz Sarlo, é de 1988, Jorge Luis Borges, um escritor na periferia, também de Sarlo, de 1993.

Sarlo, uma das mais respeitadas intérpretes borgeanas, trata nesses dois livros da relação entre literatura e sociedade em um país periférico que se moderniza fortemente, a Argentina. Em Modernidade periférica, ela analisa as respostas literárias que escritores e escritoras de diferentes classes sociais e posições políticas (Borges incluído obviamente) deram à transformação de Buenos Aires em metrópole nos anos 1920 e 1930 (2010SARLO, Beatriz. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. Tradução de Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2010., p. 81-94). Em Jorge Luis Borges, um escritor na periferia, ela segue com problema semelhante, mas dedicando-se exclusivamente à literatura de Borges. O argumento de Sarlo é que o cosmopolitismo de Borges é altamente argentino, que Borges registrou como ninguém o conflito de se escrever literatura em uma nação periférica. Para Sarlo, Borges imaginou uma relação não dependente da literatura estrangeira, dialogou de igual para igual com a literatura ocidental, fez da margem uma estética (2007SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Seix Barral, 2007. , p. 14-15). E é mais ou menos essa a conclusão a que chega Vargas Llosa no texto de 1987. Em suas palavras: “Pocos escritores europeos han asumido de manera tan plena y tan cabal la herencia de Occidente como este poeta y cuentista de la periferia. […] Su cosmopolitismo, esa avidez por adueñarse de un ámbito cultural tan vasto, de inventarse un pasado propio con lo ajeno, es una manera profunda de ser argentino, es decir, latinoamericano” (2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 49-50).

Ainda em “Las ficciones de Borges”, Llosa aponta outra dívida dos escritores latino-americanos para com o argentino: o que ele chama de uma revolução na tradição estilística da língua espanhola. Segundo Vargas Llosa, na prosa de Borges há quase tantas ideias quanto palavras, ou seja, se expressa em uma precisão e concisão absolutas, algo frequente nas tradições de língua inglesa e francesa, mas pouco presente na língua espanhola, para Vargas Llosa, caracterizada pela abundância, a expressividade emocional e certa imprecisão conceitual. Novamente em suas palavras: “Dentro de esta tradición, la prosa creada por Borges es una anomalía, pues desobedece íntimamente la predisposición natural de la lengua española hacia el exceso, optando por la más estricta parquedad” (2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 53).

Deixando de lado o tanto de generalização que pode haver nessa síntese de Vargas Llosa, é interessante observar o quanto esse elogio ao estilo de Borges logo se transforma em crítica, já que a precisão e perfeição da prosa borgeana seriam também responsáveis por seu desdém pelo romance. Para Vargas Llosa, há uma imperfeição congênita ao gênero romanesco, uma dependência do “barro humano”, intolerável para Borges. Em singular argumentação, Vargas Llosa usa um mesmo aspecto da prosa de Borges para saudá-lo e apontar uma limitação, pois parece sugerir que não escrever romance é um defeito de Borges.

Talvez esta afirmação seja um pouco exagerada, pois para Vargas Llosa o descaso de Borges pelo romance é consequência da prosa que valoriza e não resistência ao gênero em si, mas esse exagero ilumina, acho, um traço importante da concepção do escritor peruano sobre o romance. Para ele, o romance é dependente do “barro humano”, está condenado a se confundir com a totalidade da experiência humana, ideias e instintos, indivíduo e sociedade, o vivido e o sonhado, e não pode ser confinado ao puramente especulativo e artístico. Ou seja, Vargas Llosa está vinculado (como ensaísta e como romancista) à tradição realista do romance, não diria lukacsiana, pois ele se afasta cada vez mais de qualquer perspectiva de esquerda, mas ainda assim realista, empenhada em elaborar literariamente aspectos da realidade social.

Talvez seja essa filiação à tradição realista que leve Vargas Llosa a encerrar seu comentário sobre a ficção de Borges de forma bastante crítica:

Ninguna obra literaria, por rica y acabada que sea, carece de sombras. En el caso de Borges, su obra adolece, por momentos, de etnocentrismo cultural. El negro, el indio, el primitivo en general aparecen a menudo en sus cuentos como seres ontológicamente inferiores, sumidos en una barbarie que no se diría histórica o socialmente circunstanciada, sino connatural a una raza o condición. Ellos representan una infra-humanidad, cerrada a lo que para Borges es lo humano por excelencia: el intelecto y la cultura literaria. Nada de esto está explícitamente afirmado ni es, sin duda, consciente; se trasluce, despunta al sesgo de una frase o es el supuesto de determinados comportamientos. […] para Borges la civilización sólo podía ser occidental, urbana y casi casi blanca. El Oriente se salvaba, pero como apéndice, filtrado por las versiones europeas de lo chino, lo persa, lo japonés o lo árabe. Otras culturas, que forman también parte de la realidad latinoamericana - como la india y la africana -, acaso por su débil presencia en la sociedad argentina en la que vivió la mayor parte de su vida, figuran en su obra más como un contraste que como otras variantes de lo humano. Es ésta una limitación que no empobrece los demás admirables valores de la obra de Borges, pero que conviene no soslayar dentro de una apreciación de conjunto de lo que ella significa. Una limitación que, acaso, sea otro indicio de su humanidad, ya que, como se ha repetido al cansancio, la perfección absoluta no parece de este mundo, ni siquiera en obras artísticas de creadores que, como Borges, estuvieron más cerca de lograrla. (2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 64-65).

Em 1987 Vargas Llosa reprovava o conteúdo racista da obra de Borges e assumia uma postura dialética não raro ausente na fortuna crítica do argentino. Com isso, podemos retomar o debate sobre o movimento atual de derrubada das estátuas e sua historicidade brutal: a violência policial e de agentes da “ordem” contra pessoas negras, que com o assassinato de George Floyd ganhou cobertura internacional, mas está longe de ser ato isolado (em Porto Alegre, a tortura, o espancamento, o assassinato de João Alberto Freitas no estacionamento do Carrefour reafirmam nosso fracasso civilizacional). Passei de um assunto a outro de forma extremamente brusca e talvez irresponsável para evidenciar que o racismo, ou melhor, a tolerância que cada presente tem com o racismo incrustrado na sociedade e na cultura, é pedra de toque para o debate sobre os monumentos, sua destruição, manutenção ou atualização. Por um lado, é preciso saudar a dialética de Vargas Llosa; sua avaliação crítica complexifica nossa relação com um escritor-monumento como Borges. Por outro, precisamos atualizar essa crítica, nosso presente pode e quer relativizar o racismo na obra de Borges em nome dos inúmeros valores que ela possa ter? As revoluções estilísticas e o inconformismo intelectual de Borges são suficientemente revolucionários e inconformistas hoje?

De novo, como no campo da história, esse terreno está em disputa no meio literário. Haverá quem defenda Borges inclusive da crítica de Vargas Llosa. Haverá quem concorde ipsis litteris com Vargas Llosa, quem ache sua leitura amena e condescendente, e uma série de outras reações que não sou capaz de aventar. Isso não quer dizer que essas reações sejam igualmente legítimas, porque elas podem se fundar em preconceito e ignorância. É importante ter consciência que em sociedades racistas e desiguais como a brasileira e grande parte das latino-americanas (mas não só nelas), em que intelectuais negros e indígenas foram historicamente excluídos do debate público, há consensos tidos como generalizáveis que são, na verdade, naturalizações da intelectualidade branca. Idealmente, a intelectualidade branca deveria fazer valer a racionalidade que tanto propaga para ampliar o repertório de argumentos e ressalvas escutando as vozes antes lateralizadas e que agora com justiça protagonizam a cena. Em 1988, Lélia Gonzalez já afirmava:

Graças aos trabalhos de autores africanos e amefricanos - Cheikh Anta Diop, Théophile Obenga, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, W. E. B. Du Bois, Chancellor Williams, George G. M. James, Yosef A. A. Ben-Jochannan, Ivan Van Sertima, Frantz Fanon, Walter Rodney, Abdias do Nascimento e tantos outros -, sabemos o quanto a violência do racismo e de suas práticas nos despojou do nosso legado histórico, da nossa dignidade, da nossa história e da nossa contribuição para o avanço da humanidade nos níveis filosófico, científico, artístico e religioso. (GONZALEZ, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 136).

Há outro texto de Medio siglo con Borges que pede um comentário mais demorado. Em “Borges, político”, de 1999, Vargas Llosa segue a avaliação crítica agora comentando a discutível atuação política de Borges. Como se sabe, em termos políticos, Borges foi um conservador, muitas vezes reacionário. São inúmeras suas falas antidemocráticas, em especial envolvendo o contexto argentino, mas também para além dele. Vargas Llosa não diminui esse aspecto da trajetória de Borges, até porque eles compartilham parte desse conservadorismo (que para eles são ideias liberais). Mas Vargas Llosa faz questão de se distinguir de Borges quando o assunto é o apoio a ditadores, principalmente Videla e Pinochet. Ele se pergunta: “¿Cómo se explica esta ceguera política y ética en quien, respecto al peronismo, al nazismo, al marxismo, al nacionalismo, se había mostrado tan lúcido?” (2020VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020, p. 83).

Novamente deixando de lado o quanto há de cegueira política e ética de Vargas Llosa por colocar em linha peronismo, nazismo, marxismo e nacionalismo, como se o nazismo fosse comparável aos outros três, como se os quatro termos fossem comparáveis entre si, enfim, deixando de lado esse ponto grave, a afirmação reforça o ponto de vista crítico de Vargas Llosa em relação a Borges. Como em outros momentos do livro, ele não recua diante de aspectos condenáveis da trajetória do argentino, embora esses aspectos não diminuam seu interesse e admiração pela literatura de Borges. Vargas Llosa identifica racismo em textos de Borges e posturas antidemocráticas em sua atuação como homem público e também considera revolucionário seu estilo literário e definitiva sua influência entre os escritores de língua espanhola. Quanto dessa mediação não é dependente de alguém como Vargas Llosa, homem branco Prêmio Nobel de Literatura? Isso que aprendemos a valorizar como razoabilidade pode ser generalizável como atuação ideal da crítica?

Atualizar a crítica

Uma última reflexão: escrevi este texto, despendi tempo e energia tentando entender o lugar de um livro de Vargas Llosa sobre Borges à luz do movimento atual de derrubada de monumentos. Escolhi escrever sobre esse livro e esses autores e não sobre outros mais urgentes e que recebem menos atenção da crítica, porque acho que esses movimentos são mais complementares do que excludentes. Atualizar a crítica é lançar novos problemas ao que já está assentado e abrir espaço para o que estava fora. Se estou reafirmando Borges e Vargas Llosa como monumentos, se estou defendendo a necessidade de seguir nos dedicando ao cânone - e parte dessa postura responde a meu lugar de professora universitária branca - essa posição não indica necessariamente homenagem e desejo acrítico de permanência. Os monumentos estão caindo, porque o presente está revendo suas homenagens, mas homenagear não é a única função dos monumentos. Nesse sentido, há uma sabedoria na derrubada de monumentos em que predominam o conformismo e a reverência.

Mediação semelhante pode ser feita no debate sobre o cânone literário. O que precisa ser questionada é a reverência a um conjunto de livros e autores destituída de crítica e de atualização de perguntas. Assim, o livro de Vargas Llosa cumpre uma função importante na arguição do cânone na medida em que não assume tom meramente reverencial; e mais importante ainda se consideramos o alcance mercadológico de um livro desse tipo, já que muitos leitores se informarão por esse livro dos aspectos questionáveis da trajetória de Borges.

Embora Vargas Llosa tenha feito o que poderíamos chamar de monumentalização crítica de Borges, ele não fez todo o trabalho. É tarefa de outros críticos tensionar a posição de Vargas Llosa e dessa tensão pode-se chegar à conclusão de que sua crítica é insuficiente, equivocada, autorreferente. A frase lapidar de Walter Benjamin - não há um documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (2005BENJAMIN, Walter. Teses ‘Sobre o conceito de história’. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - Uma leitura das teses sobre o conceito de história. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. , p. 70), deveria ser uma premissa para historiadores e historiadores literários empenhados em entender seus objetos de forma complexa. O problema é que inclusive os conceitos de cultura e barbárie estão em constante disputa e tensão. Um campo intelectual ampliado, com pesquisadores antes secundarizados do debate, pode nos ensinar a ler barbárie onde vemos apenas cultura.

REFERÊNCIAS

  • BENJAMIN, Walter. Teses ‘Sobre o conceito de história’. Tradução de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio - Uma leitura das teses sobre o conceito de história. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • BLOOM, Harold. O cânone ocidental: Os livros e a escola do tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
  • CARVALHO, Aline; MENEGUELLO, Cristina (orgs.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.
  • CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
  • GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano Organização Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
  • SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas Buenos Aires: Seix Barral, 2007.
  • SARLO, Beatriz. Ficciones argentinas: 33 ensayos. Buenos Aires: Mardulce, 2012.
  • SARLO, Beatriz. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. Tradução de Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
  • VARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges Barcelona: Alfaguara, 2020
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    Uma versão reduzida deste texto foi publicada na Revista Parêntese, Porto Alegre, julho de 2021.
  • 2
    É preciso registrar que a edição é um tanto descuidada. A introdução, assinada por Vargas Llosa, está datada em 2004, mas é pouco provável que o texto tenha sido escrito nesse ano, já que o livro reúne ensaios publicados em 2008, 2011 e 2014. Além disso, há um texto incorporado no livro de 2020 que já havia sido publicado em livro anterior de Llosa, El viaje a la ficción: El mundo de Juan Carlos Onetti (Alfaguara, 2008). Esse texto, uma comparação entre Borges e Onetti, aparece como sendo de 2018. Enfim, a datação dos textos incluídos em Medio siglo con BorgesVARGAS LLOSA, Mario. Medio siglo con Borges. Barcelona: Alfaguara, 2020é, no mínimo, confusa.
  • 3
    No Brasil, traduzido por Remy Gorga Filho para a editora Nova Fronteira em 1976.
  • 4
    Publicado no Brasil com o título Batismo de fogo, tradução de Milton Persson para a Nova Fronteira em 1977. Depois editado pela Companhia das Letras, em 1997, com o título A cidade e os cachorros, tradução de Sérgio Molina.
  • 5
    Tradução de Remy Gorga Filho para a editora Francisco Alves em 1979.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2021
  • Aceito
    02 Nov 2021
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