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Abionan e Exu se encontram no meio do caminho: o desdobramento do romance em trilogia, em Antonio Olinto

Abionan and Exu meet in the middle of the way: the unfolding of the novel into a trilogy, in Antonio Olinto

RESUMO:

Este trabalho investiga os mecanismos que, a partir de uma exigência interna da linguagem narrativa olintiana, operam o desdobramento do romance em trilogia, resultando na série literária Alma da África. Buscou-se, seguindo a trilha indicada por Pereira (2017) e Sodré (2017), aproximação teórico-crítica entre a operação da dobra (DELEUZE, 1991) e elementos específicos da mitologia e da cultura iorubá, fortemente presentes na trilogia. Foi analisado o modo como se estrutura a relação entre os três romances, partindo da função desempenhada pelo segundo livro, O rei de Keto (OLINTO, 2007b). Com isso, considerando particularmente as conexões entre a protagonista Abionan e o Orixá Exu (PRANDI, 2020; VERGER, 2018), identificou-se uma economia narrativa pautada pelos princípios de ambivalência, repetição e expansão responsáveis, entre outras coisas, pela afirmação de certa experiência existencial relativa à visão de mundo iorubá. Tais princípios, que as figuras de Exu e de Abionan condensam especialmente, promovem a força expansiva da linguagem narrativa olintiana. Tal efeito é verificado, por exemplo, na sintaxe da frase, em que a opção pela vírgula, em vez do ponto final, demanda continuidade; mas também na ampla sintaxe da trilogia, na qual sobretudo o segundo livro se comporta como romance-vírgula, abrindo espaço para a expansão da forma romanesca.

PALAVRAS-CHAVE:
Antonio Olinto; Alma da África; trilogia; Exu; dobra

ABSTRACT

This piece has the literary series Soul of Africa, by Antonio Olinto, as its object of study and investigates the mechanisms that operate an internal requirement of the narrative language, responsible for promoting the unfolding of the Olinto novel into a trilogy. By following the path indicated by Pereira (2017) and Sodré (2017), a theorical-critical approximation between the operation of the fold (DELEUZE, 1991) and specific elements from the Yoruba mythology and culture, strongly present in the trilogy, was sought. The way the relationship between the three novels is structured, starting from the role that is played by the second book, The King of Keto (OLINTO, 2007b), was investigated. With this, particularly considering the connections between the female protagonist Abionan and the Orixá Exu (PRANDI, 2020; VERGER, 2018), a narrative economy was identified punctuated by the principles of ambivalence, repetition and expansion, that are responsible, among other things, for the affirmation of certain existential experiences in the Yoruba worldview. Such principles, which the figures of Exu and Abionan specially condense, promote the expansive force of Olinto’s narrative language. Such an effect is seen, for example, in the syntax of the sentence, where the option for the comma, instead of the period, implies continuity; but also in the broad syntax of the trilogy, in which, specially the second book behaves as a comma-novel, an opening space for the expansion of the novelistic form.

KEYWORDS:
Antonio Olinto; Soul of Africa; trilogy; Exu; fold

Abionan e Exu se encontram no meio do caminho

Aquela que nasceu no meio do caminho, Abionan: esse é um sentido possível para o nome da protagonista do romance O rei de KetoOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., segundo livro da série Alma da África (o livro do meio, portanto). Esse nome traz a marca da passagem, da condição transitória, sempre movediça, entre um contexto e outro. Conforme Ronilda Iyakemi Ribeiro (1996RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma Africana no Brasil: os Iorubás. São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.), alguns nomes na cultura iorubá são também determinados pela circunstância em que se deu o nascimento da criança. Esse parece ser o caso do nome Abionan. Sua mãe, Aduké, “…sentira as dores no meio da estrada” (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 13) e, antes de chegar ao destino, pariu uma menina, no trajeto entre dois dos quatro maiores mercados da região. Assim, “…chamava-se Abionan porque nascera na estrada, fora de casa, muitas vezes a mãe lhe contara, fora na estrada entre Keto e Opô Metá” (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 13). Antes do seu nascimento, o Babalaô Ifá havia aconselhado Aduké a não viajar naquela semana, que permanecesse em casa. Comerciante que era, porém, a mulher decide manter sua rotina de peregrinação pelas feiras e, como consequência dessa decisão, acaba parindo sua filha no meio do caminho, justamente no dia dedicado a Ifá e a Exu. Era costume dedicar a esses orixás o dia em que se vendia em Keto, o primeiro dia da semana iorubá. Abionan herdaria, então, a vocação de comerciante da mãe e, já adulta, se dedicaria ao mesmo trabalho de negociar preços de compra e venda de mercadorias típicas do local. Viverá, igualmente, no caminho, confirmando a sina do seu nascimento. Também por essa razão terá seu destino desde sempre ligado a Exu, aquele que deve “viver fora e não dentro de casa” (PRANDI, 2020PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 67). Exu é, segundo a mitologia iorubá, o orixá cuja mãe “... o pariu na volta do mercado” (RISÉRIO, 2012RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012., p. 128). É ele também o responsável por supervisionar as atividades do mercado do rei em cada cidade; o próprio Exu receberá o nome de “Èsù Alaketo”, ou seja, “O rei de Keto” (VERGER, 2018VERGER, Pierre. Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. 5. ed. Salvador: Corrupio, 2018., p. 82).

Existem, como se pode ver, fortes traços que evidenciam a ligação entre Abionan e o orixá mensageiro, a começar pelo desejo da protagonista de ver um filho seu se tornar o novo Alaketo, título do soberano da cidade de Keto (BENISTE, 2019BENISTE, José. Dicionário Yorubá Português. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.). O que permite pensar que o livro dedicado a essa personagem feminina, a protagonista, é de certa forma também dedicado aos sentidos que Exu condensa: signos de passagem, de movimento, articulação e negociação, de tudo o que comunica entre realidades aparentemente apartadas. Se o primeiro romance da trilogia, A casa da águaOLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007a. 392 p. Trilogia Alma da África, v. 1., tem como protagonista Mariana Silva (a avó) e o último romance, Trono de vidroOLINTO, Antonio. Trono de vidro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007c. 406 p. Trilogia Alma da África, v. 3., coloca em primeiro plano a história da outra Mariana Silva (a neta), o fato de o livro do meio ter como principal elemento uma mulher cujo nome remete ao signo da passagem, mulher que não possui vínculo de sangue com a família Silva, não parece aleatório. Na verdade, convém supor que tal fato guarda sentidos importantes para a compreensão da trilogia. E esses sentidos parecem estar ligados à representação do que está no caminho, na condição de transitividade e mediação, desse “entre” que, formalmente, inclusive, marca de modo determinante a organização e a sequência de Alma da África, considerada em seu conjunto.

Por uma economia da expansão

Quando se observa a posição do romance O rei de KetoOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2. dentro da trilogia Alma da África, sobretudo quando isso é feito a partir da função desempenhada por sua protagonista, Abionan, nota-se um modo específico de funcionamento: uma espécie de economia interna que se caracteriza pela operação de adiamento do ponto de corte ou da ruptura narrativa. A organização em capítulos pautada pelos recomeços do percurso feito por Abionan, o jogo em que essa seduz seu esposo na cena final do romance, adiando o momento em que se entregaria a ele para a fecundação de um novo filho, um novo Adeniran, tudo isso remete a uma dinâmica na qual o fim se torna apenas uma estação de passagem. O fim não possui, como de costume, a especificidade da interdição.

Essa é uma característica notável quando se identifica a posição de O rei de Keto como um intervalo de escuta entre as tramas que narram em primeiro plano as histórias da Mariana avó, protagonista do livro A casa da água, e da neta, também chamada Mariana, e que ocupará o protagonismo em Trono de vidro, livro de fechamento da série. O rei de Keto, portanto, configura justamente o intervalo no qual se prepara e se processa a dobra do protagonismo do nome e da narrativa familiar dos Silva. Um intervalo necessário para que as vozes das duas Marianas se diferenciem e se singularizem, contando, para isso, com a escuta necessária e acolhedora de Abionan.

Esse aspecto posicional merece ser considerado, entre outras coisas, por permitir a problematização dos procedimentos de composição que possam justificar a junção dos romances em uma mesma trilogia. De fato, a leitura que aqui se propõe abre precedente para que se interrogue a unidade entre os romances; se ela ocorreria apenas devido à presença de alguns personagens em mais de um livro, ou, ainda, pelo fato de os respectivos enredos possuírem alguma continuidade, embora mantendo sua autonomia em relação aos demais. A reflexão acerca de uma economia interna de linguagem olintiana desloca a perspectiva mais imediata de investigação sobre a unidade da trilogia, ao sinalizar para a fragilidade dos critérios meramente catalográficos em relação a personagens, ou que estejam focados apenas numa esperada continuidade, supostamente linear, entre os enredos. Essas, na verdade, são evidências que podem ser buscadas mesmo em uma leitura mais superficial dos romances. Porém, o fato de não haver menção à Abionan no primeiro livro, A casa da água, por exemplo, possibilita inquirir o argumento da catalogação e da linearidade, relativizando sua abrangência. Mesmo porque só retrospectivamente, já no segundo livro da trilogia, é que se tomará conhecimento das relações de longa data entre Abionan e a Mariana mais velha. Tais critérios, portanto, embora válidos, não parecem suficientes para dar conta da trilogia enquanto projeto de estruturação profunda, que contempla níveis menos epidérmicos da linguagem narrativa.

Não é objetivo aqui enveredar pelos caminhos da crítica genética, mas a princípio parece justo considerar a hipótese de que, talvez, mesmo para o autor, só depois de iniciado o processo de concepção e escrita é que a ideia de uma trilogia fora tomando forma como unidade viável. Um fator que leva a considerar essa hipótese é o grande intervalo de tempo entre o primeiro e o segundo romance: 11 anos separam a publicação de A casa da água, em 1969, e a de O rei de Keto, em 1980. Porém, paralelamente a essa discussão, interessa muito mais o que a presente investigação tem buscado melhor compreender: a recorrência de uma operação de linguagem que age desde estruturas menores e mais profundas nos romances e se amplia, alcançando toda a forma romanesca, numa expansão que envolve, por fim, a série de três livros. Uma força inerente à linguagem dos romances e que lhes atravessa como traço de unidade. Assim, independentemente de ter havido ou não desde o início a intenção de uma trilogia, fato é que a linguagem com que se forjou a narrativa, já no primeiro livro, incorpora esse traço que lhe garantiria posteriormente a possibilidade de se expandir.

Nesse contexto, Abionan parece ser elemento muito importante para compreensão da referida operação de linguagem que leva à ampliação da forma, principalmente por espelhar a função intervalar do livro que protagoniza. Tal constatação é comprobatória da hipótese de que a forma do romance repete seu fundamento nas estruturas menores que o compõem; no caso, a personagem se firma como metonímia do romance e reflete, em nível interno, a função que o livro exerce no âmbito da série. Ainda nesse sentido, é válido o exercício de transposição que leva a identificar, no desejo insistente da personagem de ter outro filho, a encenação do desejo igualmente insistente da linguagem olintiana de gerar continuidades e adiamentos a partir da própria forma. O tipo de relação vivida por Abionan com o nome escolhido para o filho é exemplo disso. Para ela, o nome se estabelece antes como forma e falta. Adeniran1 1 “Adeniran” é um nome que traz a marca da realeza. Segundo José Beniste, em seu Dicionário yorubá português (2009), “Adé” (BENISTE, 2019, p. 40) é uma palavra cujo significado seria “coroa de rei”. É, pois, palavra usada na composição de nomes próprios indicando origem real. é um significante esvaziado na origem pela força da morte, mas é também o nome que abriga e dá forma à vontade de gerar nova vida, ânsia que sustenta o caminhar e a peregrinação de Abionan. O nome do filho é a palavra aberta e sempre pronta a acolher a vida em potente movimento de devir, uma forte metáfora da própria linguagem que resiste ao fim definitivo, adiando-o. De certa maneira, o signo transborda seus vazios, tornando-se espaço aberto, caminho aberto (como faz lembrar a devoção a Exu), pelo qual uma coisa se liga a outra: passado e futuro, vida e morte, perda e desejo. Por meio desse signo, abolem-se certas oposições, acolhe-se a contradição, e a interdição materializada no ponto final perde espaço para que vigore a relação e a continuidade, cuja marca textual mais evidente será a vírgula.

A última cena do romance narra justamente a entrega de Abionan a seu marido, embaixo do mesmo baobá onde a mulher nascera e onde enterrara o primogênito morto. Nesse momento, é concebido o desejado filho, o novo Adeniran: o final do romance, portanto, sugere recomeço e continuidade. Ou seja, ratifica-se, também aí, o mesmo sentido identificado nas peregrinações de Abionan pelos quatro grandes mercados da região e na reafirmação da força de Exu e Ifá, dando certo ordenamento à estrutura, marcando o capítulo que inicia e o que fecha a trama do romance: a essas divindades são dedicados o primeiro e o último capítulo do livro. Esse jogo de repetição aponta para o fato de que o caminhar de Abionan terá continuidade mesmo depois de fechada a última página: desse modo, a narrativa se configura como movimento que se recusa a findar. Essa é uma leitura viável, por exemplo, quando é colocado nessa perspectiva o seguinte fragmento:

Ele a deitou no lugar em que nascera, tirou-lhe a roupa que jogou para um lado, abriu-lhe as pernas, o tempo todo Abionan lembrava os momentos em que apertara nos braços o primeiro Adeniran antes de lhe fazer o túmulo, naquele chão em que a mãe a pusera para fora, espalhando sangue pela terra, no chão em que enterrara o filho, Adeniran, o rei de Keto, e naquele chão começaria a existir, começaria a se formar o novo Adeniran, forte, rei de Keto, filho dela, rei, rei, rei de Keto. (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 345).

Essa cena projeta a narrativa, reafirmando o horizonte do desejo. É o fim que nega o sentido do ponto final, pois narra justamente a concepção de uma vida em retorno: uma história que demanda continuidade. Ampliando a observação, um olhar mais abrangente leva a considerar que, dentro da sintaxe da trilogia, O rei de Keto se comporta na verdade como um romance-vírgula. Ele não fratura o protagonismo do nome Mariana ao se colocar como pausa entre o primeiro e o último romance da série. Ao contrário, seu funcionamento parece traduzir, em um nível formal mais geral, o mesmo procedimento patente na linguagem de toda a série, responsável por minar a importância do ponto final e privilegiar a vírgula como mecanismo de coesão e continuidade. Esse traço é bastante evidente nos três romances, nos quais se têm preferencialmente parágrafos extremamente longos e sem interrupção de ponto entre seus diversos períodos. Seguindo por essa analogia, a posição de O rei de Keto é a do meio; essa é, de fato, a mesma posição da vírgula a ratificar a transitividade e a incompletude da frase. A vírgula age como mola, sucessiva dobra situada internamente à linguagem, à frase que a projeta a partir de si mesma, gerando tensão e energia suficientes para que a estrutura amplie seu alcance. De fato, deve-se sempre esperar algo de expansão após a presença de vírgula na sintaxe de um texto. A vírgula demanda; ela é marca de transitividade. A título de exemplo da insistente preferência pela vírgula, pode-se considerar, ainda, o trecho seguinte, que, longamente, narra o momento anterior à morte de Aduké, mãe de Abionan, quando ambas veem o mar:

Como saber de antemão?, Abionan também olhara para ele com olhos novos, fora como se nunca tivesse visto antes, o verde se encontrava com o céu e as ondas pareciam donas de uma vontade própria, nesse exato momento uma festa parecera começar atrás dela, atabaques batiam, surgiam cantos, Abionan voltara a cabeça para trás e vira um cortejo de maior beleza, homens e mulheres com roupas lindas, tivera impressão de um cortejo real, um rei e uma rainha deviam caminhar à frente de todos, os atabaques tocavam alto, não poderia ser um desfile de egunguns, ou seria?, poderia ser um casamento, o homem e a mulher cercados pelos atabaquistas seriam o noivo e a noiva, os cânticos se aproximaram e o cortejo veio na direção da mãe e da filha, na direção do mar, Aduké também tentara virar o rosto para ver, mas já homens e mulheres dançando chegavam mais perto, postaram-se bem ao lado, mãe e filha viram quando um grupo deles entrou no mar, os pés e as extremidades da roupa ficaram molhados, um rapaz alto dançava mais do que os outros, entrou nas águas até a cintura, uma onda mais forte elevou-o no ar, os atabaques não paravam de tocar, havia roupas de todas as cores, predominavam os verdes e azuis, uma jovem quase menina amarrara um pano verde na cabeça e usava uma saia comprida nas cores vermelha e branca, e uma blusa cor-de-rosa com azul, os dançarinos misturados com as ondas e o som que subia na tarde deram a Abionan uma estranha alegria, e contudo sentira que não podia estar alegre com a mãe ali doente, mas notou que a mãe também parecia feliz, depois da primeira exclamação provocada pelo mar, seu rosto ganhara tom de calmo contentamento, as danças e os cânticos pareceram aumentar de intensidade e foi nesse crescendo de sons que Abionan sentiu que a dança lhe subia pelo corpo como se viesse do chão, da areia, teve a impressão de que uma força maior do que ela a obrigava a dançar, desde criança que não dançava, a mãe havia insistido com ela para que se habituasse a dançar para os orixás mas a vida a fora tornando mais preocupada com outras coisas, com mercados, com o prestígio de Keto, com as amizades que viera fazendo pelo caminho, com viagens à Casa da Água, com o filho que seria rei, levantou-se puxada por alguém, a mãe devia ter percebido que a filha tinha de se afastar porque ficou sentada mais firme na areia no momento em que Abionan saiu dançando, os braços para cima, os pés fazendo sulcos na praia, era uma dança meio lenta, as mãos paravam um momento no ar, depois desciam rápidas, a filha de aproximava dançando até tocar a mãe com as mãos, em seguida se afastava, sentiu-se outra vez menina, o mercado de Ibadan acompanhava sua dança, de vez em quando custava tirar os pés da areia e via que as pessoas ao redor não eram do mercado de Ibadan, mas da praia, roupas coloridas, os tambores tocavam para o mar, Abionan fazia movimentos de ondas, os braços ondeavam devagar, depois ondeavam mais depressa, o mar a atravessava de mão a mão e ela se transformou numa continuação do mar diante da mãe que olhava para ela com os olhos muito abertos, os componentes do grupo haviam deixado aos poucos de dançar e só Abionan se movimentava na extensão da praia, a mãe, os tocadores de atabaques e todo o cortejo permaneciam imóveis, até que, suor correndo pelo rosto, a filha caiu perto da mãe e cansada sentou-se na areia, durante algum tempo ficaram ouvindo os tambores e os cânticos que deixavam a praia, tornando-se cada vez menos audíveis, até que de novo apenas Abionan e Aduké restaram na areia e uma gaivota, em voo curvo e baixo, quase tocara as duas. (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 325-327).

Por sua vez, num espelhamento alegórico desse jogo sintático que se efetiva dentro da frase, Abionan, ao protagonizar o segundo livro da trilogia, opera como um intervalo no protagonismo do nome Mariana; uma estratégia composicional cujo efeito, no entanto, é justamente evitar a interdição e o silenciamento definitivos desse nome. Por meio dessa pausa é que se torna possível o movimento de projeção que leva a linguagem a continuar, a narrativa a ligar-se a si mesma e expandir. Deve-se considerar, nesse sentido, a determinante influência de Abionan ao conduzir a jovem Mariana pelos mercados assim que essa retorna dos estudos na França. Abionan contribui decisivamente para a escolha da Mariana neta em lutar pelo restabelecimento do regime democrático em Zorei e para sua reaproximação com uma “África profunda”, com o povo que iria elegê-la a nova presidente daquele país.

A igreja de Idgny fazia Abionan pensar na jovem Mariana que passara dez semanas iorubás acompanhando a amiga em sua ronda pelos quatro mercados […] Fora uma temporada de muita conversa, Mariana e Abionan falavam quase que o dia inteiro, e de noite continuavam comentando coisas […] Mariana contava da França, dos estudos que fazia, das muitas dúvidas que tinha, interessava-se por tudo o que Abionan dizia, gostava de discutir as esperanças da outra em relação ao reino de Keto […]. (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 154-155).

Nessa relação de grande intimidade, Mariana se sente ainda mais confortável para assumir as dúvidas e as inseguranças que tem e partilhá-las com a amiga. Entre seus questionamentos, a jovem se pergunta, inclusive, sobre o quanto conhece da África. Conclui que seu conhecimento é ainda pouco e decide iniciar um processo de redescoberta do seu lugar. Abionan é quem a conduz, ouvindo, falando, ensinando seu ofício de vendedora, conforme revela a fala da própria Mariana neta:

- Vivo na minha casa que é casa de minha avó. Estudo em Paris. De vez em quando vou a Zorei onde meu pai foi presidente, conheço todo mundo lá, Aduni é uma cidade pequena. Mas na Europa eu me perguntava: o que é que sei da África? Um pouco mais do que o europeu especialista em África que pensa que sabe tudo. Às vezes sabe muito, só que não entende nada. Então resolvi ser vendedora de mercado, passar uns tempos seguindo o ciclo normal dos mercados ao redor de Keto. Abionan é minha velha amiga, combinei com ela que achou a ideia ótima. (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 156).

Zorei é uma nação ficcional, que teve como primeiro presidente democraticamente eleito Sebastian Silva, pai da jovem Mariana e filho da velha Mariana. Sebastian foi assassinado durante um golpe político-militar que impôs um regime ditatorial em Zorei. No dia de sua morte, sua mãe é quem vai buscar o corpo já sem vida e o leva de carro do Palácio de Governo até a Casa da Água, onde residia e onde se dariam os ritos fúnebres. Junto à velha Mariana e ao corpo, no banco da frente do veículo, está a ainda menina Mariana neta, que insistia em olhar para trás:

- A menina e Jean sentaram na frente.

Viera um lençol com o corpo, Mariana enrolou com ele os ombros e a cabeça do filho, o carro ia devagar, nas casas de Aduni havia gente na porta, a estrada parecia agora mais longa, a mulher passava a mão nos cabelos do homem, o rosto dele estava frio, a boca se abriu com o movimento do automóvel, a mulher fechou-a com as mãos, o corpo do filho pesava pouco, emagrecera, de vez em quando a menina olhava para trás, Jean forçava-a a virar-se para a frente, na fronteira o carro não se demorou desta vez, de novo surgiu de longe o baobá… (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 384).

O gesto da então menina, repreendida pelo motorista e amigo Jean, de se virar e buscar o rosto do pai morto, deitado sobre os braços da avó, é simbólico e de certa forma se liga ao desejo da jovem mulher que, anos mais tarde, quer retornar a suas raízes. O gesto da menina, no entanto, continua a se realizar e a expressar, no futuro, a necessidade da então jovem mulher de voltar os olhos para trás, na tentativa de ressignificar aquela situação traumática, marcada pela interdição da palavra.

Diante da face da morte, nem sempre é possível dizer, sobretudo quando se trata de uma criança. Às vezes essas situações extremas se apresentam como o limite radical da linguagem, quando se depara com a impossibilidade da palavra. Essa experiência dolorosa é partilhada entre a avó e a neta, e é natural supor que entre ambas se imponha, então, uma fratura, também a fratura do discurso. Diante da perda do amor comum, o que parece restar como única alternativa é a expressão do que há de mais humanamente primitivo, a humanidade anterior mesmo ao discurso elaborado: um berro que traduz o horror de um modo como qualquer palavra não conseguiria, pois vindo de um lugar da subjetividade, situado anteriormente e além de toda palavra. O berro é “não palavra”, nada mais que berro. É o que revela a cena que fecha o romance A casa da água, primeiro da série, o que é protagonizado pela Mariana avó e que antecede o livro O rei de Keto:

Mariana (avó) segurou a menina, apertou-a com força, pegou num punhado de areia, jogou-a sobre a bandeira que cobria o morto, de repente soltou um berro, não foi choro, que nunca chorara, mas berro, ó berro que atravessou o areal, que chegou até à Casa da Água, que fez tremerem as pessoas, ó berro que segurou aquele momento num único som, ó berro vindo do Piau, da Bahia, do mar sem vento, das mortes em alto-mar, do sangue da menina que virara mulher, do poço arrancado da terra, ó berro que vinha do umbigo, da barriga, dos intestinos, e subia por todo o corpo antes de sair pela boca, ó berro que era berro de velha e de criança ó berro que era berro, só berro, ó berro. (OLINTO, 2007bOLINTO, Antonio. O rei de Keto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2., p. 386).

O que há de notável nessa cena é o quanto a avó e a neta estão envolvidas na experiência extrema da perda. O abraço e o berro em que elas se encontram não deixa de ser sinal do quanto ambas são afetadas pela mesma interdição, evidência do limite com o qual a palavra esbarra para traduzir a experiência profunda do horror que vivem. Nesse ponto, então, fica mais clara a função de Abionan, responsável por restabelecer a possibilidade da linguagem interditada e viabilizar, consequentemente, a continuidade da narrativa.

A relação da comerciante de Keto com as duas Marianas faz dela um ouvido amigo, totalmente disponível a escutar e a acolher a palavra alheia. Sua função, mesmo no romance que narra sua saga pessoal, é de um singular protagonismo, caracterizado sobretudo por esse estado de escuta, bem como por seu constante caminhar. Ambas as características contribuem para inserir Abionan num movimento que insistentemente tende a colocá-la como elemento desejante, base para que palavras alheias sejam ouvidas, outros destinos sejam conhecidos e para que encontros ocorram. Exemplo disso é que o sentido de sua vida está no destino do filho e do povo de Keto.

Porém, especificamente no que diz respeito à sua relação com as Marianas, é preciso compreender que sua presença entre elas se dá como pausa que, de modo semelhante à vírgula na frase, demanda a continuidade do discurso: sinal de devir da linguagem. Abionan incorpora o justo intervalo necessário à ressignificação de tudo o que o berro final de A casa da água significa: interdição do afeto mais íntimo e familiar, e também de um projeto de organização política pautado por princípios democráticos. Nesse sentido, o próprio romance O rei de Keto pode ser compreendido como o movimento do narrar que, na trilogia, possibilita o restabelecimento da condição de dizer, bem como de uma organização política e social ainda não completamente estabelecida. De certo modo, vale para todo o livro o que se lê em Abionan: nascida no dia de Ifá e Exu, seu corpo acolhe e gesta o sonho da continuidade. Ela é escuta e movimento de caminhada. Por meio de sua presença, a trama da família Silva pode continuar. Sua função é fazer com que, paulatinamente, o berro da velha Mariana que encerra o primeiro livro da trilogia vá se tornando reflexão e discurso possível, sobretudo na boca da neta. Essa jovem mulher irá assumir, a partir de então, o primeiro plano na trama. Por meio de sua decisão de aceitar ser candidata à presidência de Zorei, o signo Mariana terá dobrado seu protagonismo dentro da trilogia, fato concretizado no terceiro romance da série, Trono de vidro. Entre os três romances, este último será o que mais diretamente aborda a questão democrática no continente africano, discussão dessa vez conduzida por meio de uma mulher como protagonista.

É fato que um trauma como o vivido pela mãe e pela filha de Sebastian, o presidente assassinado, requer tempo e muito trabalho até que seja ressignificado. No caso, essa ressignificação se processa com a percepção gradativa da Mariana neta de que deveria acolher a herança deixada pelo pai: assumir a vida na política, tornar-se liderança para o povo de Zorei, tornar-se presidente e continuar aquilo que o pai havia começado. E, como foi visto, Mariana neta chega a essa conclusão acerca do caminho a seguir após seu retorno dos estudos na Europa, com a ajuda de Abionan, que a guia na sua volta a terras africanas e se dispõe a escutá-la profundamente, reverberando suas próprias questões.

Abionan, portanto, ajuda a jovem Mariana a compreender o chamado íntimo do seu sangue, o que torna possível que o poder político na região continue orbitando a família Silva. Como dito, o terceiro romance, Trono de vidro, que vem na sequência de O rei de Keto, narra justamente o processo político de mobilização e chegada de Mariana à presidência e o atentado por ela sofrido já na última parte do livro. É preciso enxergar, nesse caso, um exemplo importante de operação de dobramento, uma vez que o nome duplicado marca o começo e o fim da série. A repetição do nome Mariana, se vista no movimento da trilogia, compõe a imagem do signo que se encontra consigo mesmo. E, por conta do protagonismo que esse signo desempenha, esse encontro traduz o movimento de toda a série narrativa, que se expande ao ponto de dobrar até que suas extremidades se toquem. Porém, ao dobrar-se, essa estrutura recusa o fechamento e insinua ainda outra dobra em sequência, ensaiando nova abertura, vislumbrando um movimento cujo fim não pode ser visto no horizonte da trilogia. Tal imagem, de fato, tem o poder de capturar toda a série literária ao dramatizar a dinâmica de uma linguagem narrativa que se recusa a findar-se, que adia a contenção pela morte ou pelo ponto final definitivo. Não por acaso a imagem de uma forma expansiva dobrando sobre si remete, como já dito, a certo traço barroco, a uma função operatória (DELEUZE, 1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.) específica. A linguagem barroca, segundo Deleuze, não para de fazer dobras.

Com relação a isso, a aproximação com o barroco é possível ainda se se considera o alerta de Irlemar Chiampi (2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.) sobre o uso muitas vezes descomedido do termo “barroco”. Segundo a pesquisadora, isso tem favorecido a dispersão dos sentidos do termo e dificultado sua conceituação. Por esse motivo, a mesma Chiampi se recusa a tomar o barroco como uma espécie de museu de ideias mortas (CHIAMPI, 2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.), para considerá-lo como uma hipótese válida de trabalho, que inclusive pode favorecer a modernização da crítica. Para que isso ocorra, porém, deve-se evitar a imediata aplicação das noções convencionais relativas ao barroco, por exemplo, a que estabelece oposição mecânica entre esse e o estilo clássico. Não deixa de ser curioso o fato de que, para sustentar sua argumentação, Chiampi recorre à afirmação de Gérard Genette (1969), segundo a qual o barroco é uma espécie de “encruzilhada” (GENETTE apudCHIAMPI, 2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 128) que tem como princípios a abertura e o sincretismo. Encruzilhada é outra imagem que, na cultura iorubá, particularmente no contexto de algumas religiões afro-brasileiras, está ligada à presença de Exu, o orixá de maior influência sobre Abionan. Essa coincidência não merece ser desprezada, uma vez que não param por aí os elementos que validam tomar as reflexões de Chiampi e aproximá-las da presente análise.

Chiampi se debruça sobre a obra do escritor cubano José Lezama Lima e considera a proliferação dos signos como um conceito operatório (CHIAMPI, 2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 128) caro à linguagem do seu romance Paradiso (1966). A pesquisadora esclarece que o recurso da proliferação, típico do barroco, pode ser caracterizado basicamente pelo aumento incessante da matéria verbal. A apresentação de Chiampi (2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.) retoma o histórico de tal procedimento retórico, reconhecendo-o como variante da amplificação artística do enunciado, prática herdada do maneirismo latino medieval, codificada já em registros dos séculos XII e XIII. A proliferação, ainda segundo Chiampi (2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.), é classificada conforme tipos: a do tipo verbal, a do tipo narracional, a do tipo semântico e a proliferação do tipo sintático. Esta última usa da inserção de outro relato que se estende, provocando um desvio e a dispersão da fábula central. Desse modo, é a proliferação do tipo sintático que parece ocorrer quando todo o romance O rei de Keto promove um longo desvio dentro da trama familiar dos Silva, dispersando, assim, provisoriamente, a condição de protagonista das Marianas.

No caso da postulação de Chiampi, o objetivo artístico ao se valer de procedimentos como esse seria: “adornar a prosa, são modos de superar a retórica aristotélica, identificada pelo raciocínio e prova como fundamento discursivo…” (CHIAMPI, 2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 129). Destaca-se o fato de que tais recursos tradicionalmente sirvam à quebra do modo de organização discursiva caracterizada pelo controle mediante o raciocínio e a comprovação.

Considerando as reflexões de Chiampi (2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.), não parece ser algo casual a recorrência do recurso da proliferação em O rei de Keto e em toda a trilogia. Existe ali a clara aposta em outro tipo de relação de causa e efeito, não condicionada a racionalismos, mas da qual fazem parte inclusive os interesses e as intervenções dos orixás. Por meio dessa lógica, estabelece-se consequentemente outra economia de linguagem cuja manifestação é percebida também formalmente na estrutura de cada romance e entre eles. A presença desse procedimento de proliferação sintática deve ser considerada, portanto, no âmbito da trilogia. Explicita-se, com isso, a implicação de natureza mais abrangente dessa ação orgânica processada no corpo da linguagem romanesca. Entre outras coisas, a proliferação garante uma aproximação com a visão de mundo africana, que é, em muitos aspectos, distante do modo ocidental estritamente racionalizado de conceber as relações entre linguagem e mundo. O próprio Olinto afirmará: “Nem sempre tenho admitido, ao longo de minha caminhada africana, a preeminência do lógico sobre o mágico. Porque nisto me parece jazer a fonte de grande parte dos erros ocidentais para com a África” (OLINTO, 1964OLINTO, Antonio. Brasileiros na África. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1964., p. 15-16).

Isso não se traduz, como muitas vezes se afirmou equivocadamente, em hierarquização entre um modo de vida e outro. Mas tal fato marca inegavelmente uma diferença fundamental no papel que a linguagem desempenha em cada cultura, africana e europeia, e acaba por revelar um projeto de elaboração literária atento a aspectos de verossimilhança. Talvez se possa dizer, para usar expressão do próprio Olinto, um projeto em que esteja presente “o gosto do mundo”, um mundo africano. É fato que, entre os três livros que compõem a trilogia, O rei de Keto é aquele que mais se esmera em apresentar, até didaticamente, muitas práticas culturais e costumes característicos da região africana conhecida como Golfo do Benin, compondo um dinâmico e rico painel daquele espaço.

Nesse contexto, é preciso reconhecer que Deleuze (1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.) e Chiampi (2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.) procedem de modo aproximado ao selecionar, no âmbito das práticas barrocas, um traço específico, identificado, nas palavras de Deleuze (1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.), como uma função operatória. Se a pesquisadora foca sua observação no recurso da proliferação, vinculando-o a objetivos mais detidamente retóricos, o filósofo francês, por sua vez, seleciona “a dobra” como principal traço característico do barroco. Desse modo, Deleuze parece ter em horizonte objetivos mais abrangentes, uma vez que a dobra seria a operação radical, responsável pela estruturação de toda a matéria barroca. Particularmente, a dobra possibilitaria a compreensão de que a mesma matéria pode se expandir organicamente ao ponto de resultar em divisões e subdivisões, gerando as diferentes partes de um mesmo todo. Tal concepção só seria possível, porém, pois a matéria se expande flexionando-se, sem se romper. Sucessivos dobramentos da matéria levariam à elaboração das diferentes texturas que compõem um mesmo organismo.

As ideias de uma função operatória (DELEUZE, 1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.) ou de um conceito operatório (CHIAMPI, 2010CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.) dizem respeito, ambas, ao movimento de expandir a linguagem, reforçando sua transitividade inerente, sua vocação à abertura com as consequentes transformações advindas disso. São operações que atuam no interior das estruturas da linguagem e repercutem sobre a compreensão do mundo tocado por essa linguagem, levando a concebê-lo (assim como a conceber a própria linguagem) de modo renovado. Chiampi compreende o barroco como hipótese de trabalho cuja potência está na sua condição de restabelecer algo de fundante entre a forma artística e certas visões de mundo; seu ponto de partida é retórico, e avança para a poética. Já Deleuze (1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.), por meio da operação da dobra barroca, concebe a linguagem em sua plasticidade, que leva à complexificação do mundo.

Trata-se, aqui, portanto, de como uma operação formal é capaz de promover deslocamentos de ordem cultural e política; de como um projeto literário que se dedica à elaboração de uma linguagem própria articula contatos com outros campos discursivos como a filosofia, a história, entre outros.

Porém, se na perspectiva de Antonio Olinto o mais importante para um romancista é saber narrar, como seria possível narrar uma experiência potente de humanidade, captada no trânsito efetivo dos signos da vida e da morte, das negociações culturais e identitárias? Só uma linguagem dotada de mecanismos capazes de produzir intrinsecamente sua própria energia vital talvez suportasse esse jogo nunca finalizado entre nascer e morrer. Portanto, como indicado por Pererira (2017PEREIRA, Edimilson de Almeida. Entre orfe(x)u e exunouveau. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2017.) e Sodré (2017SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.), trata-se sobretudo da escrita enquanto busca artística pelo fundamento da continuidade, traduzido no pensamento de Deleuze (1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.) como o movimento insistente de dobramento da forma, e que também está presente na figura de Exu, orixá de caráter múltiplo e paradoxal, ligado à fertilidade e às mudanças na dinâmica do mundo. Exu são muitos. Talvez seja válido se referir a ele por meio da seguinte paráfrase de outro texto sagrado: Exu, seu nome é legião. Essa sua característica é destacada no texto da antropóloga Stefania Capone:

A figura do Èsù-Elégbéra dos iorubás, chamado de Legba pelos fon do Benim, exerce papel múltiplo, rico em contradições e, com frequência, abertamente paradoxal. Ele é o grande comunicador, o intermediário entre os deuses e os homens, o restaurador da ordem do mundo, mas, ao mesmo tempo, como senhor do acaso e dos destinos dos homens, desfaz as abordagens conformistas do universo, ao introduzir a desordem e a possibilidade da mudança. (CAPONE, 2018CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2018., p. 64).

E ainda:

Cada uma de suas qualidades possui um nome ritual que indica sua função. Assim, embora Exu Agba, Exu Yangi, Exu Agbo e Elegbara remetam à criação do primeiro ser na terra e estejam ligados ao processo de multiplicação e expansão, a lista desses nomes rituais muda de um terreiro para outro, o que sempre torna muito difícil a generalização das informações acerca dos rituais do candomblé. (CAPONE, 2018CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2018., p. 76).

O próprio Exu, portanto, é símbolo do movimento vital que se manifesta no corpo da linguagem; isso é logo depreendido a partir do jogo de nomes que lhe fazem referência: o nome desdobrado em multiplicidade. Não afeita a comodismos, sua representação tende a derivar, confundindo toda tentativa de retê-la e negar-lhe a possibilidade do movimento. A despeito de tudo, Exu insiste na viagem pela qual realiza os trânsitos simbólicos e os reordenamentos dos destinos. Reforça-se, assim, seu fundamento de criação, multiplicação e expansão, mesmo que para isso seja preciso promover calamidades. Esse fundamento vital, que a linguagem olintiana carrega condensada especialmente pelas figuras de Exu e de Abionan, é a mesma força expansiva manifestada nos diferentes dobramentos que operam em vários níveis estruturais e geram efeitos de sentido na trilogia. Tal força se exibe, por exemplo, como demonstrado, na sintaxe da frase, na qual a vírgula demanda continuidade, mas também na ampla sintaxe da trilogia, em que sobretudo o segundo livro se comporta como romance-vírgula e abre espaço para a expansão da própria forma romanesca. Essa energia leva, assim, à expansão, ao transbordamento da linguagem que avança sobre alguns limites formais já conhecidos. Portanto, apesar de inusitada, é possível identificar uma aproximação entre a função operatória, que leva à complexificação plástica da linguagem barroca, em Deleuze (1991DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.), e o fundamento presente nas representações do orixá Exu. Essa aproximação se dá na medida em que ambos abordam a recusa da ruptura entre opostos, pressuposta em toda base de lógica binária e racionalista ocidental, para, ao se valer do excessivo, abrir-se a uma economia de linguagem menos restritiva, uma economia que artisticamente dá testemunho da vida como fenômeno que se renova e resiste apesar de todo revés, de toda margem.

De certa forma, é esse o mesmo princípio já presente desde o primeiro parágrafo do livro inicial, A casa da água. Na cena que dá início à saga de Alma da África, narra-se justamente uma enchente, o transbordamento do rio Piau, quando a velha Mariana era ainda menina, no interior de Minas Gerais. A água potente do rio não aceita os limites das margens e transborda, molhando e misturando tudo, estabelecendo outra imprevista dinâmica para as coisas, trazendo a morte e preparando o terreno para que a vida brote mais uma vez.

Não sei como surpreendê-la no começo de minha história - de sua história - , mas vejo-a, naquela manhã de enchente, sendo arrancada da cama e do sono, ouvindo palavras de cujo sentido completo nem se dava conta, sabendo que havia perigo e que desejavam protegê-la - é assim que imagino Mariana começando sua aventura, carregada por alguém, a luz ainda não viera de todo, um pouco de noite se prendia como água nas coisas, e só a ideia de que o rio transbordara lhe dava medo, mas ao mesmo tempo a sensação de que o peito no qual punha a cabeça constituía um abrigo seguro fazia-a considerar a inundação como um espetáculo que poderia apreciar com prazer […] Ponho esse despertar com enchente como início das lembranças de Mariana […] Porque é de uma viagem que se trata e dela irei falar, a partir da manhã em que Mariana foi tirada da cama e levada para a rua, que ficava em plano mais alto do que a casa […] tudo parecia fora do lugar. (OLINTO, 2007aOLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007a. 392 p. Trilogia Alma da África, v. 1., p. 12-13).

Essas palavras, com as quais se inicia a saga da família Silva, trazem em destaque a força e a violência do elemento líquido com função determinante ao longo de todas as narrativas da trilogia africana de Antonio Olinto. Desde o começo do romance, a água será sinal de transformação, evidência de funcionamento do princípio do caos, responsável por gerar reordenação dinâmica de destinos, afetando sensivelmente a trajetória das mulheres. Por isso, também nesse elemento se encontra uma variação do princípio identificado em Exu que, como esclarece Stefania Capone (2018CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.), diz respeito a movimento e transformação, vida e morte, expansão e multiplicação.

A enchente do rio Piau, seu transbordamento e a consequente inundação dos arredores destroem as paredes da casa onde vivera e trabalhara por anos Catarina, avó da então menina Mariana. Catarina, que antes se chamava Ainá, havia sido raptada, escravizada e trazida compulsoriamente ao Brasil, onde passou a residir no interior de Minas Gerais, servindo em uma casa de uma família que não era a sua. Rompidos os limites desse lar ilegítimo, o desejo de retorno à Nigéria, antes tímido e silenciado, passa a ser expresso em intensidade proporcional à força das águas caóticas da enchente. Esse desejo já incontido, transbordante, muda-se em decisão por parte de Catarina. E assim tem início a grande viagem de que, segundo o narrador, tratará a trama de A casa da água, continuando em O rei de Keto e Trono de vidro.

Esse início de viagem é significativo, pois tem como marco a instabilidade característica ao elemento líquido, a calamidade. “A água se prende às coisas” (OLINTO, 2007aOLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007a. 392 p. Trilogia Alma da África, v. 1., p. 11) e, pode-se interpretar pelo próprio evento da enchente, transfere a elas algo de sua natureza fluida e mutável. No caso, não se pode esquecer que a imagem é a de um rio que se rebela contra as margens e contra os muros, provocando o deslocamento dos objetos, da geografia, das memórias, dos corpos: “…tudo parecia fora de lugar” (OLINTO, 2007aOLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007a. 392 p. Trilogia Alma da África, v. 1., p. 13). O ambiente caótico, no entanto, aparecerá como oportunidade de recomeço para os membros da família Silva, particularmente para a menina Mariana, que assumirá, a partir daí, o protagonismo da trama.

Há algo de notável, ainda, no desafio assumido pelo narrador, que logo nas primeiras frases vacila quanto ao procedimento que deve adotar para contar essa saga de retorno à região do Golfo do Benin. De modo explícito no texto, há o reconhecimento por parte desse narrador de que se misturam e se confundem a sua e outras diferentes vozes e memórias na narrativa. O que leva a considerar que o fluxo violento das águas, além de transbordar por sobre as margens do rio Piau, também indica uma chave de leitura possível, baseada no transbordamento de certas fronteiras características à linguagem e à forma romanesca que desembocará, excessivamente, em uma trilogia.

Quando se considera o contexto em que se dá a presente discussão, o elemento líquido merece ser abordado em sua capacidade plástica de revolver os limites, sobrepondo-se às margens convencionadas e misturando o que a princípio havia sido apartado: sejam continentes, tempos, memórias, línguas. A água da enchente contamina sem excluir, integra tudo o que encontra na mesma realidade de renovação. O fluxo incontido traz a esperança de que mesmo a ruptura já ocorrida pode ser remediada pela ação desse princípio restaurador.

O recomeço passa a ser possibilidade subjetiva até para uma mulher como Catarina, que sofreu a violência de ser tirada à força de seu lugar e levada para longe. Ou mesmo uma possibilidade coletiva, politicamente determinada, para uma mulher que foi vítima de um grave atentado e, mesmo alvejada por dois tiros, olha e se vê identificada com outros muitos corpos, outras muitas gentes. É o caso da cena que no extremo oposto ao da enchente que inicia o romance A casa da água irá finalizar toda a trilogia. Mariana neta, também conhecida como Ilufemi2 2 “Ilufemi” é o nome abreviado de “Ilufemiloyê”, cujo significado é “eles me querem para chefe” ou simplesmente “aquela que nós queremos” (OLINTO, 2007c, p. 68). , é quem protagoniza a seguinte cena, a última do último romance da série:

…e Ilufemi sentiu, além, a multidão enchendo a praça, a multidão transbordando para todas as ruas, ocupando estradas, caminhos e aldeias, e viu que a multidão começava dentro dela e inundava o quarto, a multidão enchia o espaço vazio que surgira dela depois dos tiros, e teve a certeza de que ela, Mariana Ilufemi Silva, teria de existir e ser, agora e sempre, em estado de multidão, em tempo de multidão (OLINTO, 2007cOLINTO, Antonio. Trono de vidro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007c. 406 p. Trilogia Alma da África, v. 3., p. 404).

A expansão, no caso, é captada como princípio situado no âmbito de uma trajetória particular, mas ampliada até o ponto em que haja o encontro e a mistura do individual ao coletivo, desembocando, por fim, na imagem da multidão. A enchente transmutada em multidão ainda mantém seu poder de suplantar as margens, os limites, as diferenças? De tirar tudo do lugar?

Não se pode ignorar o sentido revolucionário sugerido pelas imagens tão semelhantes que iniciam e fecham a trilogia. Há, nessa repetição do transbordamento, a reafirmação dos sentidos de recomeço e de renovação, presentes nos ciclos que os romances atualizam a todo momento. Mas há também aí o apelo presente nas representações de Exu, o comunicador, abridor de caminhos, responsável por estabelecer contatos entre opostos e contraditórios, o provocador de calamidades. Assim, embora o princípio de expansão seja verificado mais evidentemente no plano formal da obra em questão, ele justamente indica a indissociabilidade entre esse plano formal e os sentidos mais amplos que a obra literária pode alcançar. É por meio do trabalho com a linguagem, afinal, que a literatura comunica seu sentido de humanidade, incluindo aí os sonhos e utopias que cada grupo humano possa cultivar. Esse parece ser o projeto literário que a trilogia Alma da África comporta em sua intimidade ao abordar o trânsito diaspórico de africanos e de afro-brasileiros.

REFERÊNCIAS

  • BENISTE, José. Dicionário Yorubá Português 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
  • CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.
  • CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 1991.
  • OLINTO, Antonio. A casa da água Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007a. 392 p. Trilogia Alma da África, v. 1.
  • OLINTO, Antonio. O rei de Keto Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007b. 350 p. Trilogia Alma da África, v. 2.
  • OLINTO, Antonio. Trono de vidro Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007c. 406 p. Trilogia Alma da África, v. 3.
  • OLINTO, Antonio. Brasileiros na África Rio de Janeiro: Edições GRD, 1964.
  • PEREIRA, Edimilson de Almeida. Entre orfe(x)u e exunouveau Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2017.
  • PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma Africana no Brasil: os Iorubás. São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.
  • RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá São Paulo: Editora Perspectiva, 2012.
  • SODRÉ, Muniz. Pensar nagô Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
  • VERGER, Pierre. Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. 5. ed. Salvador: Corrupio, 2018.
  • 1
    “Adeniran” é um nome que traz a marca da realeza. Segundo José Beniste, em seu Dicionário yorubá português (2009), “Adé” (BENISTE, 2019BENISTE, José. Dicionário Yorubá Português. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019., p. 40) é uma palavra cujo significado seria “coroa de rei”. É, pois, palavra usada na composição de nomes próprios indicando origem real.
  • 2
    “Ilufemi” é o nome abreviado de “Ilufemiloyê”, cujo significado é “eles me querem para chefe” ou simplesmente “aquela que nós queremos” (OLINTO, 2007cOLINTO, Antonio. Trono de vidro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007c. 406 p. Trilogia Alma da África, v. 3., p. 68).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2022
  • Aceito
    23 Jan 2023
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