Ensino oftalmológico na graduação

Undergraduate ophthalmology teaching

“A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo.”

Nelson Mandela, Prêmio Nobel da Paz em 1993.

O ensino oftalmológico na graduação médica é um momento muito importante na formação do aluno. É o primeiro contato formal no aprendizado da especialidade e, talvez, o único para a maioria que não vai seguir a carreira de oftalmologia. Nesse momento, ele aprende sobre a importância da visão, o quanto ela impacta na qualidade de vida das pessoas, as patologias oculares e como tratá-las, mas principalmente sobre sua correlação com inúmeras doenças sistêmicas. Nas palavras do Emérito Professor Newton Kara José: “A oftalmologia, por exemplo, que pode ser vista e relacionada apenas com as doenças dos olhos, é uma das áreas mais amplas da medicina... não existe doença em geral que não tenha influência no olho.” ¹

Como professor da Disciplina de Oftalmologia do Curso de Medicina da Graduação há aproximadamente 20 anos, constato que, de fato, os cuidados oculares são inseparáveis da formação médica. Em pesquisa realizada junto da Associação Brasileira das Ligas Acadêmicas de Oftalmologia (ABLAO) em 2019 com amostra de 242 alunos de todas as regiões do país, verificou-se que 95,9% consideraram a oftalmologia importante em sua formação como médico generalista. ² Esse fato se torna mais ainda evidente quando, além da grade curricular normal, o discente procura atividades acadêmicas complementares voltadas para a oftalmologia, mesmo que não pretenda segui-la (internato eletivo, iniciação científica, monitoria e ligas acadêmicas). Esse mesmo estudo mostrou que o número de alunos que participam das ligas acadêmicas de oftalmologia é aproximadamente o dobro dos que pretendem seguir a especialidade. ²

Nesse contexto, é muito importante que o programa de ensino seja o mais produtivo possível. O conteúdo abordado deve ser adequado a esse momento inicial da formação do aluno, correlacionando assuntos de seu interesse, fundamentos básicos da especialidade e situações práticas do dia a dia.

O Ministério da Educação, por meio de diretrizes curriculares, define um perfil para o formando egresso do Curso de Medicina. Trata do assunto de forma indistinta, orientando a guardar relação com as necessidades de saúde mais frequentes referidas pela comunidade e identificadas pelo setor de saúde. ³ Isso faz todo sentido num país de dimensões continentais e com tantas diferenças regionais, ampliando a possibilidade de assuntos a serem abordados, mas penso que ainda há espaço para o debate e um ajuste com conteúdos mais específicos.

Silva descreve a necessidade do médico não especialista saber realizar um atendimento ocular primário e, caso necessário, encaminhar o paciente adequadamente ao oftalmologista. ⁴ Para isso, são necessárias competências que devem estar presentes em seu processo de ensino. Em nível nacional, algumas pesquisas apontam falhas no conhecimento oftalmológico dos estudantes de medicina, o que acaba levando à insegurança durante o atendimento, quando formados. ¹ , ⁵ , ⁶

Graubart et al. desenvolveram instruções, endossados pela Associação Universitária de Professores em Oftalmologia ( Association of University Professores in Ophthalmology - AUPO), juntamente com a American Academy of Ophthalmology , de conteúdos que possam ser utilizados nos currículos para estudantes de medicina. ⁷ Da mesma forma, o International Council of Ophthalmology criou um manual para alunos de medicina com assuntos que seriam os pontos-chave de aprendizado em sua formação curricular. ⁸ Nas duas publicações, destacam-se tópicos em comum, como a definição de um exame oftalmológico básico, o diagnóstico diferencial do olho vermelho, a perda súbita e crônica da visão, as manifestações oculares de doenças sistêmicas, os efeitos colaterais de medicamentos e a avaliação do paciente com trauma ocular. ⁷ , ⁸ Nessa linha de abordagem, ao invés do conteúdo acadêmico tradicional ensinado de forma segmentada (anatomia, fisiologia, patologia e farmacologia), observa-se a integração de todos esses conteúdos em torno de situações cotidianas. As informações mais pertinentes e a discussão baseada na construção de um raciocínio clínico tornam a aula mais interessante e com aplicabilidade real.

No ano de 2020, formaram-se, no Brasil, 24.587 médicos, com expectativa de aumento de 32% nos próximos 4 anos. ⁹ O aumento no número de escolas médicas com maior oferta de vagas para o curso de medicina preocupa não só pela quantidade de novos profissionais que alcançam o mercado, mas também pela qualidade de sua formação.

Esse tipo de temor já está presente na pós-graduação, como descrito por Kara Júnior: ¹⁰ “a necessidade de aprendizado criou uma oportunidade de mercado”. De fato, por uma redução no número de vagas na transição entre a graduação e a pós-graduação, jovens médicos que não conseguem ingressar em programas de especialização de qualidade reconhecida tendem a se capacitar em serviços sem estrutura de ensino, criando distorções no aprendizado. Desse mesmo modo, é possível imaginar que esse cenário já possa estar ocorrendo na graduação.

Seria muito importante e útil nesse momento, em âmbito nacional, uma discussão articulada e dirigida pelas principais associações que promovem o ensino médico geral e oftalmológico. Uma análise geral de como esse ensino está sendo feito atualmente e propostas com recomendações para criação de uma base científica central e de uma metodologia de ensino poderiam ajudar a diminuir as distorções na formação do aluno de medicina, capacitando-o melhor para os cuidados oculares fundamentais.

REFERÊNCIAS

• ¹
  Kara José N, Saad JB. Através dos meus olhos. Uma autobiografia de Newton Kara José. s.l.p.; 2019. Diante do nariz porque a oftalmologia. p.90-3.
• ²
  Ferreira MA, Gameiro GR, Cordeiro FM, Santos TV, Hilarião AA, Souza GM, et al. Perfil multicêntrico do acadêmico de medicina e suas perspectivas sobre o ensino da oftalmologia. Rev Bras Oftalmol. 2019;78(5):315-20.
• ³
  Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2001 [citado 2021 Mai 7]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Med.pdf
  » http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/Med.pdf
• ⁴
  Silva MR. O ensino da oftalmologia. Rev Bras Oftalmol. 2009;68(3):127-8.
• ⁵
  Ginguerra MA, Ungaro ABS, Villela FF, Kara-José AC, Kará-José N. Aspectos do ensino de graduação em oftalmologia. Arq Bras Oftalmol. 1998;61(5):546-50.
• ⁶
  Rached CR, Oliveira TC, Sousa CL, Escudeiro IM, Mori LP, Ferreira FP, et al. Avaliação do conhecimento sobre urgências oftalmológicas dos acadêmicos da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Rev Bras Oftalmol. 2012;71(2):100-5.
• ⁷
  Graubart EB, Waxman EL, Forster SH, Giaconi JA, Rosenberg JB, Sankar PS, et al. Ophthalmology objectives for medical students: revisiting what every graduating medical student should know. Ophthalmology. 2018;125(12):1842-3.
• ⁸
  International Council of Ophthalmology. Handbook for medical students learning ophthalmology. 2015 [cited 2021 May 7]. Available from: http://www.icoph.org/downloads/icomedicalstudentenglish.pdf
  » http://www.icoph.org/downloads/icomedicalstudentenglish.pdf
• ⁹
  Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). Conselho Federal de Medicina (CFM). Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP/CFM; 2020 [citado 2021 Mai 7]. Disponível em: https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2020_9DEZ.pdf
  » https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2020_9DEZ.pdf
• ¹⁰
  Kara Júnior N. O ensino da oftalmologia no século 21. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 2020. O ensino da Oftalmologia está se tornando um negócio empresarial. Cap.19. p. 89-90.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  03 Set 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  03 Maio 2021
• Aceito
  10 Maio 2021