Acessibilidade / Reportar erro

Ptose miogênica na distrofia muscular oculofaríngea

RESUMO

Relato de caso de distrofia muscular oculofaríngea, doença genética de herança autossômica dominante e uma das causas de ptose miogênica adquirida. A paciente apresentou quadro de ptose palpebral bilateral e disfagia, achados clínicos típicos da doença, foi submetida a tratamento cirúrgico da ptose, com bom resultado estético e funcional.

Descritores:
Blefaroptose/cirurgia; Distrofia muscular oculofaríngea; Disfagia; Músculos oculomotores/fisiopatologia; Relato de casos

ABSTRACT

The authors report a case of oculopharyngeal muscular dystrophy, an autosomal dominant genetic disease, which leads to miogenic ptosis. This patient presented bilateral palpebral ptosis and dysphagia and underwent ptosis surgical treatment, with a good functional and aesthetic result.

Keywords:
Blepharoptosis/surgery; Muscular dystrophy, oculopharyngeal; Dysphagia; Oculomotor muscles/physiopathology; Case reports

INTRODUÇÃO

Ptose palpebral é uma alteração anatômica caracterizada pelo posicionamento da pálpebra superior (PS) abaixo de sua posição normal, que está localizada cerca de 2 mm abaixo do limbo superior na posição primária do olhar(11 Lucci LM, Fonseca Junior NL, Sugano DM, Silvério J. Transposição da rima palpebral em ptose miogênica mitocondrial. Arq Bras Oftalmol. 2009;72(2):159-63.).

A ptose palpebral pode ser classificada como congênita ou adquirida e esta diferenciação é importante, pois determina a técnica cirúrgica a ser empregada na sua correção(22 Saito FL, Gemperli R, Hiraki PY, Ferreira MC. Cirurgia da ptose palpebral: análise de dois tipos de procedimentos cirúrgicos. Rev Bras Cir Plást. 2010;25(1):11-7.).

A ptose adquirida é classificada de acordo com sua fisiopatologia em aponeurótica, neurogênica, miogênica, traumática e mecânica. A ptose miogênica é relativamente rara e se manifesta como uma ptose palpebral grave com reduzida ou ausente função do músculo levantador da PS, diminuição da motilidade ocular extrínseca e da força dos músculos da face, inclusive o músculo orbicular dos olhos e da cintura escapular em 20% dos casos(11 Lucci LM, Fonseca Junior NL, Sugano DM, Silvério J. Transposição da rima palpebral em ptose miogênica mitocondrial. Arq Bras Oftalmol. 2009;72(2):159-63.).

As causas de ptose miogênica adquirida incluem: (1) miopatia mitocondrial (oftalmoplegia externa crônica progressiva, síndrome de Kearns-Sayre e a miopatia associada à encefalopatia); (2) distrofia muscular oculofaringea; (3) miopatia óculofaringodistal e (4) distrofia miotônica(33 Brais B, Rouleau GA, Bouchard JP, Fardeau M, Tomé FM. Oculopharyngeal muscular dystrophy. Semin Neurol. 1999;19(1):59-66. Review.).

Pacientes com ptose miogênica apresentam uma posição viciosa de cabeça, havendo elevação do mento associada à contratura do músculo frontal na tentativa de liberar o eixo visual obstruído pela ptose palpebral grave, podendo evoluir com fadiga muscular crônica(11 Lucci LM, Fonseca Junior NL, Sugano DM, Silvério J. Transposição da rima palpebral em ptose miogênica mitocondrial. Arq Bras Oftalmol. 2009;72(2):159-63.).

Distrofia muscular oculofaríngea é uma doença progressiva, de herança autossômica dominante caracterizada por blefaroptose bilateral, disfagia, comprometimento dos músculos extraoculares e fraqueza muscular proximal(44 Chen JJ, Allen RC. Oculopharyngeal muscular dystrophy [Internet]. EyeRounds.org. January 18, 2012. [cited 2015 Feb 3]. Available from: http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/cases/147-oculopharyngeal-muscular-dystrophy.htm
http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/c...
).

A alteração genética que causa a doença foi descrita por Brais em 1995. O gene relacionado à doença é encontrado no DNA de todas as células do corpo e está localizado no cromossomo 14q. Sua sequência normal é composta de dez elementos básicos que codificam as moléculas para formar alanina, que por sua vez faz parte da composição da proteína PABPN1 (Poli (A) proteína de ligação, nuclear 1)(55 Brais B, Xie YG, Sanson M, Morgan K, Weissenbach J, Korczyn AD, et al. The oculopharyngeal muscular dystrophy locus maps to the region of the cardiac alpha and beta myosin heavy chain genes on chromosome 14q11.2-q13. Hum Mol Genet. 1995;4(3):429-34.).

Os primeiros sintomas geralmente aparecem entre 45 e 55 anos de idade(55 Brais B, Xie YG, Sanson M, Morgan K, Weissenbach J, Korczyn AD, et al. The oculopharyngeal muscular dystrophy locus maps to the region of the cardiac alpha and beta myosin heavy chain genes on chromosome 14q11.2-q13. Hum Mol Genet. 1995;4(3):429-34.). A disfagia é notada inicialmente com alimentos sólidos, mas pode evoluir com dificuldade de deglutição de líquidos(44 Chen JJ, Allen RC. Oculopharyngeal muscular dystrophy [Internet]. EyeRounds.org. January 18, 2012. [cited 2015 Feb 3]. Available from: http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/cases/147-oculopharyngeal-muscular-dystrophy.htm
http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/c...
).

O diagnóstico baseia-se na apresentação clínica e pode ser confirmado por testes genéticos. Infelizmente não há cura para a distrofia muscular oculofaríngea. As terapias atuais visam melhorar os sintomas que resultam da ptose e disfagia(44 Chen JJ, Allen RC. Oculopharyngeal muscular dystrophy [Internet]. EyeRounds.org. January 18, 2012. [cited 2015 Feb 3]. Available from: http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/cases/147-oculopharyngeal-muscular-dystrophy.htm
http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/c...
).

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 63 anos, natural de Belém-PA, apresentando ptose palpebral bilateral de início insidioso há aproximadamente 5 anos. Relata quadro semelhante em irmão e tio paterno. Acuidade visual de 6/18 em olho direito e 6/12 em olho esquerdo, sem alterações à biomicroscopia, à tonometria de aplanação e em fundo de olho em ambos os olhos.

Ao exame das pálpebras, observaram-se ptose palpebral bilateral severa, ausência de pregas palpebrais em ambas as pálpebras superiores, fendas palpebrais de 5mm em ambos os olhos, distância entre a margem da pálpebra superior e reflexo corneano inviável devido à gravidade do quadro em ambos os olhos, distancia margem inferior ao limbo tangente em ambos os olhos e função do músculo elevador da pálpebra superior avaliada em 8mm em olho direito e 7mm em olho esquerdo (figura 1).

Figura 1
Ptose palpebral bilateral severa

A motilidade ocular apresentou-se alterada por limitações em todas as miradas no olhar para cima. A paciente foi então encaminhada para avaliação neurológica, que concluiu ptose palpebral bilateral associada a quadro de disfagia leve e oftalmoparesia não clônica, sem fadiga ou outros sinais comemorativos. Exames de ressonância magnética de encéfalo e radiografia de tórax mostraram-se normais.

O quadro de ptose palpebral bilateral de característica miogênica associada à oftalmoparesia e disfagia, somado à faixa etária da paciente remete ao diagnóstico de distrofia muscular oculofaríngea.A história familiar positiva de quadro semelhante corrobora com o padrão hereditário da doença de caráter autossômico dominante.

A paciente foi submetida à correção de ptose bilateral através de ressecção das aponeuroses dos elevadores das pálpebras superiores, apresentando bom aspecto estético e funcional.

Figura 2
Aspecto 6 meses de pós-operatório

DISCUSSÃO

Distrofia muscular oculofaríngea (DMOF) é uma doença de herança autossômica dominante, caracterizada por disfagia, paresia da musculatura ocular extrínseca, paresia proximal das extremidades e ptose palpebral progressiva bilateral, forçando o paciente a utilizar a musculatura frontal e a retrofletir a cabeça para compensar a perda de campo de visão(33 Brais B, Rouleau GA, Bouchard JP, Fardeau M, Tomé FM. Oculopharyngeal muscular dystrophy. Semin Neurol. 1999;19(1):59-66. Review.).

A maioria dos pacientes com DMOF são aqueles com ascendência franco-canadense que residem em Quebec(66 Duranceau AC, Beauchamp G, Jamieson GG, Barbeau A. Oropharyngeal dysphagia and oculopharyngeal muscular dystrophy. Surg Clin North Am. 1983;63(4):825-32.). Outros casos desta doença encontram-se nos imigrantes Bukhara judeus em Israel.(77 Blumen SC, Nisipeanu P, Sadeh M, Asherov A, Blumen N, Wirquin Y, et al. Epidemiology and inheritance of oculopharyngeal muscular dystrophy in Israel. Neuromuscul Disord. 1997; 7Suppl 1:S38-40.)

A DMOF geralmente começa de forma insidiosa durante a quinta ou sexta décadas de vida. Esses pacientes evoluem progressivamente com ptose bilateral miogênica.A disfagia é também uma característica proeminente da DMOF, inicialmente percebida com a ingesta de alimentos sólidos, que posteriormente pode evoluir para dificuldades de deglutição de líquidos(88 Díaz de Liaño A, Fernández R L, Yarnóz I C, Artieda S C, González A G, Artajona R A, et al. Distrofia muscular oculofaríngea: tratamiento quirúrgico. Rev Chil Cir. 2009;61(4):360-5.).

Além da ptose e disfagia, os pacientes podem também ter fraqueza proximal das extremidades em variados graus de severidade. Há também muitas vezes um elemento de fraqueza muscular extraocular, geralmente afetando a supradução, mas a oftalmoplegia externa completa é rara.

O diagnóstico de DMOF é baseado na história e apresentação clínica, podendo ser confirmado através de testes genéticos. Antes da viabilidade de tais testes, o diagnóstico era confirmado com biópsia muscular que demonstra vacúolos nas fibras musculares, fibras pequenas e anguladas, além de corpúsculos de inclusão intranuclear(99 Rüegg S, Lehky Hagen M, Hohl U, Kappos L, Fuhr P, Plasilov M, et al. Oculopharyngeal muscular dystrophy - an under-diagnosed disorder? Swiss Med Wkly. 2005;135(39-40):574-86. Review.).

A pneumonia por aspiração e desnutrição são as principais causas de morte em pacientes com DMOF, mas não diminuem a expectativa de vida, porque estas tendem a ocorrer nas fases terminais da doença(55 Brais B, Xie YG, Sanson M, Morgan K, Weissenbach J, Korczyn AD, et al. The oculopharyngeal muscular dystrophy locus maps to the region of the cardiac alpha and beta myosin heavy chain genes on chromosome 14q11.2-q13. Hum Mol Genet. 1995;4(3):429-34.).

Em relação ao tratamento ainda não existe cura para a DMOF. Os métodos atuais de tratamento baseiam-se em melhorar os sinais e sintomas relacionados a ptose palpebral e disfagia. As técnicas cirúrgicas para correção da ptose nesses pacientes são de certa forma difíceis de serem realizadas. Alguns autores preferem a realização do avanço do músculo elevador da pálpebra superior ou combinar esta técnica com o avanço do músculo de Muller, em casos da função do MEPS preservada(1010 Burnstine MA, Putterman AM. Upper blepharoplasty: a novel approach to improving progressive myopathic blepharoptosis. Ophthalmology. 1999;106(11):2098-100.).

Outra técnica também muito utilizada é a suspensão primária do músculo frontal devido à natureza progressiva da doença. Felizmente, muitos pacientes com DMOF mantêm uma boa função do músculo orbicular e um bom fenômeno de Bell, o que diminui muito o risco de comprometimento corneano no pós-operatório(55 Brais B, Xie YG, Sanson M, Morgan K, Weissenbach J, Korczyn AD, et al. The oculopharyngeal muscular dystrophy locus maps to the region of the cardiac alpha and beta myosin heavy chain genes on chromosome 14q11.2-q13. Hum Mol Genet. 1995;4(3):429-34.).

CONCLUSÃO

Não existe tratamento que cure a distrofia oculofaríngea e os estudos genéticos têm importância não só no diagnóstico, mas também na identificação de portadores assintomáticos e aconselhamento genético. Cabe ao profissional da saúde oferecer suporte multidisciplinar biopsicosocial com o objetivo de minimizar os sintomas, como correção cirúrgica da ptose, miotomia cricofaríngea ou gastrostomia para alívio da disfagia, além de apoio fisioterápico e psicológico, promovendo maior qualidade de vida.

  • Trabalho realizado no Hospital Universitário Bettina Ferro de Souza - Belém (PA), Brasil

REFERÊNCIAS

  • 1
    Lucci LM, Fonseca Junior NL, Sugano DM, Silvério J. Transposição da rima palpebral em ptose miogênica mitocondrial. Arq Bras Oftalmol. 2009;72(2):159-63.
  • 2
    Saito FL, Gemperli R, Hiraki PY, Ferreira MC. Cirurgia da ptose palpebral: análise de dois tipos de procedimentos cirúrgicos. Rev Bras Cir Plást. 2010;25(1):11-7.
  • 3
    Brais B, Rouleau GA, Bouchard JP, Fardeau M, Tomé FM. Oculopharyngeal muscular dystrophy. Semin Neurol. 1999;19(1):59-66. Review.
  • 4
    Chen JJ, Allen RC. Oculopharyngeal muscular dystrophy [Internet]. EyeRounds.org. January 18, 2012. [cited 2015 Feb 3]. Available from: http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/cases/147-oculopharyngeal-muscular-dystrophy.htm
    » http://webeye.ophth.uiowa.edu/eyeforum/cases/147-oculopharyngeal-muscular-dystrophy.htm
  • 5
    Brais B, Xie YG, Sanson M, Morgan K, Weissenbach J, Korczyn AD, et al. The oculopharyngeal muscular dystrophy locus maps to the region of the cardiac alpha and beta myosin heavy chain genes on chromosome 14q11.2-q13. Hum Mol Genet. 1995;4(3):429-34.
  • 6
    Duranceau AC, Beauchamp G, Jamieson GG, Barbeau A. Oropharyngeal dysphagia and oculopharyngeal muscular dystrophy. Surg Clin North Am. 1983;63(4):825-32.
  • 7
    Blumen SC, Nisipeanu P, Sadeh M, Asherov A, Blumen N, Wirquin Y, et al. Epidemiology and inheritance of oculopharyngeal muscular dystrophy in Israel. Neuromuscul Disord. 1997; 7Suppl 1:S38-40.
  • 8
    Díaz de Liaño A, Fernández R L, Yarnóz I C, Artieda S C, González A G, Artajona R A, et al. Distrofia muscular oculofaríngea: tratamiento quirúrgico. Rev Chil Cir. 2009;61(4):360-5.
  • 9
    Rüegg S, Lehky Hagen M, Hohl U, Kappos L, Fuhr P, Plasilov M, et al. Oculopharyngeal muscular dystrophy - an under-diagnosed disorder? Swiss Med Wkly. 2005;135(39-40):574-86. Review.
  • 10
    Burnstine MA, Putterman AM. Upper blepharoplasty: a novel approach to improving progressive myopathic blepharoptosis. Ophthalmology. 1999;106(11):2098-100.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2016

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2012
  • Aceito
    12 Fev 2015
Sociedade Brasileira de Oftalmologia Rua São Salvador, 107 , 22231-170 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3235-9220, Fax: (55 21) 2205-2240 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbo@sboportal.org.br