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Sífilis congênita com lesão óssea: relato de caso Trabalho desenvolvido na Universidade Federal Fluminense, Hospital Universitário Antônio Pedro, Niterói, RJ, Brasil.

RESUMO

Os autores apresentam um caso de um recém-nascido portador de sífilis congênita com lesão óssea que evoluiu com periostite no tornozelo esquerdo.

Palavras-chave:
Sífilis congênita; Doenças ósseas; Periostite

ABSTRACT

The authors report a case of congenital syphilis in a newborn with a bone lesion, resulting in left ankle periostitis.

Keywords:
Syphilis congenital; Periostitis; Bone diseases

Introdução

A sífilis congênita (SC) é uma doença que acomete gravemente recém-nascidos (RN) de maneira multissistêmica, pode até ser fatal. Ocorre pela disseminação hematogênica do Treponema pallidum, da gestante infectada não tratada ou inadequadamente tratada para seu concepto, por meio da placenta. Apesar de poder ser evitada com um acompanhamento pré-natal adequado, a SC ainda acomete muitos RN no Brasil.11 Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST/Aids. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.

O objetivo desse artigo é apresentar um relato de caso de SC com lesão óssea e ressaltar a importância desse diagnóstico.

Relato do caso

Paciente, gestante, 21 anos, GIV PI AIII, moradora de São Gonçalo (RJ), sorologia HIV negativo, com VDRL positivo durante a gravidez (VDRL 1:32 em 23/01/15 e VDRL 1:32 em 23/02/15). Não tratada durante gestação. Não hipertensa e não diabética.

Deu à luz a RN, em 23/02/15, por parto vaginal, pré-termo (32 semanas), pequeno para a idade gestacional (PIG), com desconforto respiratório precoce, necessitou de suporte com máscara de oxigênio.

Nesse dia, foi internada na UTI neonatal devido à necessidade de suporte ventilatório. Após rastreio da RN, que evidenciou VDRL positivo, iniciou-se tratamento para SC com penicilina cristalina por 10 dias. Com cinco semanas de vida, iniciou quadro de edema e dor ao manuseio de membro inferior esquerdo, foram solicitadas radiografias comparativas de tornozelos e pernas. Foram observadas alterações radiológicas na tíbia esquerda, caracterizadas por imagem lítica na região metafisária distal com reação periosteal difusa, que se estendia até o terço médio desse osso (fig. 1).

Figura 1
Radiografia de pernas AP, com imagem lítica na região metafisária distal e reação periosteal difusa na tíbia esquerda.

O VDRL de controle de tratamento de um mês de vida apresentou resultado 1:1, reiniciou-se o tratamento com penicilina cristalina por mais 10 dias.

Manteve-se até o sexto mês de vida reativa ao manuseio, sem grandes alterações ao exame. Obteve alta hospitalar aos sete meses, com melhoria dos sinais e sintomas, permanece em acompanhamento ambulatorial.

Em 03/12/2015, já com nove meses, foram feitas as últimas radiografias de controle, que evidenciaram ausência de lesão óssea (figs. 2 A e B).

Figura 2
A, raios X em AP do tornozelo esquerdo, sem alterações ósseas; B, raios X em perfil de tornozelo esquerdo também sem alterações ósseas.

Discussão

A transmissão da SC pode ocorrer em qualquer fase gestacional ou estágio clínico da doença materna, a probabilidade de transmissão vertical depende, basicamente, de dois fatores: o estágio da sífilis na mãe e a duração da exposição do feto no útero.11 Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST/Aids. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.

A SC é mais provável de ocorrer quando as mães fazem um pré-natal inadequado. Também é mais provável de ocorrer nos seguintes casos: mãe com sífilis primária; presença de alguma doença materna de duração desconhecida; títulos maternos elevados nos testes plasmáticos não treponêmicos (VDRL ≥ 1:16) durante o tratamento (ou no momento do parto); intervalos pequenos entre o tratamento e o parto (< 4 semanas); sífilis não tratada.22 Saloojee H, Velaphi S, Goga Y, Afadapa N, Steen R, Lincetto O. The prevention and management of congenital syphilis: an overview and recommendations. Bull World Health Org. 2004;82(6):424-30.

A SC pode ser classificada em precoce (diagnosticada até os dois anos de vida) e tardia (após esse período). Estão entre as principais características da SC precoce: prematuridade, baixo peso ao nascimento, hepatomegalia com ou sem esplenomegalia, lesões cutâneas, pseudoparalisia dos membros, sofrimento respiratório, icterícia, anemia e linfadenopatia generalizada. Além disso, destacam-se também periostite (como ocorre no caso aqui relatado), osteíte e osteocondrite, as quais apresentam lesões características no estudo radiológico.11 Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST/Aids. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. Dentre as alterações laboratoriais temos: anemia, trombocitopenia e leucocitose ou leucopenia. No caso da paciente em questão, a presença da mãe portadora de sífilis não tratada durante a gestação associada à presença de manifestações clínicas do RN é suficiente para fechar o diagnóstico de SC. Já na SC tardia, temos como principais características: tíbia em “lâmina de sabre”, articulações de Clutton, fronte “olímpica”, nariz “em sela”, dentes incisivos medianos superiores deformados (dentes de Hutchinson), surdez neurológica e dificuldade no aprendizado.11 Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST/Aids. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.

Alguns autores acreditam que a SC poderia ser primariamente reduzida através do aprimoramento do acompanhamento pré-natal na população de alto risco e através de um refinamento na notificação de casos para controlar a infecção por sífilis na comunidade.33 Mascola L, Pelosi R, Blount JH, Binkin NJ, Alexander CE, Cates W Jr. Congenital syphilis. Why is it still occurring? JAMA. 1984;252(13):1719-22. Além disso, a notificação de parceiros de mulheres grávidas com sífilis tem sido associada a uma melhoria expressiva no resultado das gravidezes.44 Schmid G. Economic and programmatic aspects of congenital syphilis prevention. Bull World Health Org. 2004;82(6): 402-9.

Sabe-se também que o número de mortes anual por SC compete com o de mortes causadas pela transmissão vertical do HIV.55 Schmid GP, Stoner BP, Hawkes S, Broutet N. The need and plan for global elimination of congenital syphilis. Sex Transm Dis. 2007;34 7 Suppl.:S5-10. Uma vez que os sistemas de saúde investem crescentemente na prevenção da transmissão vertical do HIV, é inexplicável que não seja feito o mesmo pela sífilis, já que o custo para se prevenir um caso de SC pela triagem tradicional é muito inferior ao de se prevenir um caso de transmissão vertical de HIV.55 Schmid GP, Stoner BP, Hawkes S, Broutet N. The need and plan for global elimination of congenital syphilis. Sex Transm Dis. 2007;34 7 Suppl.:S5-10.,66 Walker DG, Walker GJ. Forgotten but not gone: the continuing scourge of congenital syphilis. Lancet Infect Dis. 2002;2(7):432-6.

Um alto índice de suspeição é necessário e o ortopedista deve considerar a possibilidade de SC sempre que as imagens mostrarem lesões ósseas destrutivas.77 Rasool MN, Govender S. The skeletal manifestations of congenital syphilis. A review of 197 cases. J Bone Joint Surg Br. 1989;71(5):752-5. Foi demonstrado, ainda, que as radiografias de ossos longos eram anormais em 20% dos RN assintomáticos com sorologia treponêmica perinatal positiva.88 Atenção à saúde do recém-nascido: guia para os profissionais de saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.,99 Brion LP, Manuli M, Rai B, Kresch MJ, Pavlov H, Glaser J. Long-bone radiographic abnormalities as a sign of active congenital syphilis in asymptomatic newborns. Pediatrics. 1991;88(5):1037-40. As lesões ósseas comumente afetam a tíbia e outros ossos longos do corpo e são geralmente múltiplas e simétricas. As lesões podem ser classificadas como osteocondrites, osteomielites e osteoperiostites.1010 Armangil D, Canpolat FE, Yigit? S, Demir HA, Ceyhan M. Early congenital syphilis with isolated bone involvement: a case report. Turk J Pediatr. 2009;51(2):169-71. Fraturas ósseas e lesões líticas ósseas em RN devem sempre levar em consideração a causa por possíveis infecções intrauterinas, especialmente a sífilis.1010 Armangil D, Canpolat FE, Yigit? S, Demir HA, Ceyhan M. Early congenital syphilis with isolated bone involvement: a case report. Turk J Pediatr. 2009;51(2):169-71. O envolvimento ósseo pode ser muito doloroso, faz com que a criança se recuse a mover a extremidade, achado diagnosticado como pseudoparalisia de Parrot.1010 Armangil D, Canpolat FE, Yigit? S, Demir HA, Ceyhan M. Early congenital syphilis with isolated bone involvement: a case report. Turk J Pediatr. 2009;51(2):169-71.

Assim, se considerarmos o recente aumento da incidência de SC e as possíveis consequências dessa enfermidade para o RN, ressalta-se a importância de que a equipe médica envolvida no tratamento dos RN esteja ciente das manifestações clínicas e dos achados silenciosos dessa doença.

References

  • 1
    Diretrizes para controle da sífilis congênita: manual de bolso/Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST/Aids. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.
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    Saloojee H, Velaphi S, Goga Y, Afadapa N, Steen R, Lincetto O. The prevention and management of congenital syphilis: an overview and recommendations. Bull World Health Org. 2004;82(6):424-30.
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    Mascola L, Pelosi R, Blount JH, Binkin NJ, Alexander CE, Cates W Jr. Congenital syphilis. Why is it still occurring? JAMA. 1984;252(13):1719-22.
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    Schmid G. Economic and programmatic aspects of congenital syphilis prevention. Bull World Health Org. 2004;82(6): 402-9.
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    Walker DG, Walker GJ. Forgotten but not gone: the continuing scourge of congenital syphilis. Lancet Infect Dis. 2002;2(7):432-6.
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    Rasool MN, Govender S. The skeletal manifestations of congenital syphilis. A review of 197 cases. J Bone Joint Surg Br. 1989;71(5):752-5.
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    Atenção à saúde do recém-nascido: guia para os profissionais de saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.
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    Brion LP, Manuli M, Rai B, Kresch MJ, Pavlov H, Glaser J. Long-bone radiographic abnormalities as a sign of active congenital syphilis in asymptomatic newborns. Pediatrics. 1991;88(5):1037-40.
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    Armangil D, Canpolat FE, Yigit? S, Demir HA, Ceyhan M. Early congenital syphilis with isolated bone involvement: a case report. Turk J Pediatr. 2009;51(2):169-71.
  • Trabalho desenvolvido na Universidade Federal Fluminense, Hospital Universitário Antônio Pedro, Niterói, RJ, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2016
  • Aceito
    29 Set 2016
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