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Instrumentação monossegmentar anterior e posterior combinada para o tratamento de uma espondilodiscite tuberculosa severa: relato de caso e revisão da literatura Trabalho desenvolvido no Italian Hospital of Buenos Aires, Institute of Orthopedics Carlos E. Ottolenghi, Buenos Aires, Argentina.

RESUMO

A tuberculose espinhal (doença de Pott) pode produzir deformidades severas se não for tratada adequadamente. Instrumentações longas através de uma abordagem simples ou dupla geralmente são necessárias para corrigir a deformidade. Os autores apresentam um caso de deformidade severa em região lombar secundária a espondilodiscite tuberculosa tratada com instrumentação monossegmentária por dupla abordagem em um paciente com diagnóstico inicial de escoliose idiopática. A cirurgia corretiva e a resolução da infecção através de debridamento e artrodese são observadas após um ano de acompanhamento.

Palavras-chave:
Discite; Vértebras lombares; Tuberculose da coluna vertebral; Vértebras torácicas; Fusão vertebral; Debridamento

ABSTRACT

Spinal tuberculosis (Pott disease) can produce severe deformities when it is not properly treated. Long instrumentations through single or combined double approaches are usually required to prevent and correct the deformity. The authors present a case of severe deformity secondary to tuberculous spondylodiscitis in the lumbar spine treated with a monosegmental instrumentation through a double approach in a patient with idiopathic scoliosis. Deformity correction and infection resolution through debridement and arthrodesis is observed after one year of follow-up.

Keywords:
Discitis; Lumbar vertebrae; Tuberculosis; spinal; Thoracic vertebrae; Spinal fusion; Debridement

Introdução

A tuberculose (TB) é um problema ainda não resolvido nos países em desenvolvimento. Mais de 80% dos casos são pulmonares. A espondilite tuberculosa (doença de Pott), observada em menos de 1% dos pacientes com tuberculose, é um dos exemplos de doença extrapulmonar.11 Arora S, Sabat D, Maini L, Sural S, Kumar V, Gautam VK, et al. Isolated involvement of the posterior elements in spinal tuberculosis: a review of twenty-four cases. J Bone Joint Surg Am. 2012;94(20):e151.

A apresentação típica da espondilite tuberculosa pode envolver elementos anteriores, geralmente dois corpos vertebrais adjacentes e o disco intervertebral, forma-se um abscesso paravertebral. Ela raramente envolve os elementos posteriores (tuberculose do arco neural) isoladamente ou em combinação com lâmina, processo espinhoso, processo transverso, processos articulares e pedículos; também pode causar abscesso epidural e/ou piomiosite dos músculos paraespinhais posteriores.

A apresentação clínica típica é a dor nas costas. Entretanto, em pacientes com envolvimento dos elementos posteriores, o aparecimento súbito de déficit neurológico pode ser observado.22 Kapoor SK, Garg V, Dhaon BK, Jindal M. Tuberculosis of the posterior vertebral elements: a rare cause of compression of the cauda equina. A case report. J Bone Joint Surg Am. 2005;87(2):391-4.

O tratamento da espondilite tuberculosa baseia-se no dano estrutural secundário à destruição óssea e ligamentar. Geralmente, debridamento e procedimentos de fusão anterior ou posterior são necessários. Aproximadamente 5% dos casos de tuberculose na coluna vertebral desenvolvem deformidades graves.33 Issack PS, Boachie-Adjei O. Surgical correction of kyphotic deformity in spinal tuberculosis. Int Orthop. 2012;36(2):353-7. O tratamento cirúrgico nesse cenário é desafiador.

A instrumentação curta já foi descrita anteriormente para espondilite tuberculosa em um nível e deformidades leves.44 Klöckner C, Valencia R. Sagittal alignment after anterior debridement and fusion with or without additional posterior instrumentation in the treatment of pyogenic and tuberculous spondylodiscitis. Spine (Phila Pa 1976). 2003;28(10):1036-42. Entretanto, não foram encontrados estudos que descrevessem a instrumentação monossegmental para o tratamento de TB com deformidade lombar grave.

Os autores apresentam um caso de TB lombar tratado com desbridamento e artrodese posterior e anterior de um nível da coluna lombar em uma paciente com escoliose leve.

Relato de caso

Uma mulher de 23 anos, tratada por três meses em outra instituição devido ao rompimento do psoas, apresentou-se nesta instituição devido a dor lombar grave e progressiva. Não se observou comprometimento neurológico nem perda de peso; qualquer outro sintoma foi associado à dor lombar. A análise da radiografia prévia da coluna vertebral mostrou escoliose idiopática torácica direita com curva compensatória lombar de 22° (fig. 1).

Fig. 1
(A) Radiografia anteroposterior: escoliose toracolombar com 22° na região lombar; (B) radiografia de perfil, aproximadamente um ano antes do diagnóstico.

A ressonância magnética indicou envolvimento do corpo vertebral L2, do disco L2-L3 e do psoas direito (fig. 2). Suspeitou-se então de espondilodiscite. Foi feita tomografia computadorizada (TC) para avaliar estruturas abdominais e descartar outros problemas clínicos relacionados a dor intensa (fig. 3). A TC indicou comprometimento grave do nível L2-L3, com maior deformidade da curva nesse nível.

Fig. 2
(A) e (B) Ressonância magnética sagital em T1 e T2 mostra comprometimento de L2-L3; (C) e (D) ressonância magnética axial mostra comprometimento do músculo psoas direito.

Fig. 3
(A) e (B) Radiografias lombares anteroposterior e perfil com um cateter percutâneo usado para drenar abscesso de psoas direito; (C) e (D) imagem de tomografia computadorizada mostra comprometimento grave do espaço discal L2-L3 e destruição óssea vertebral.

Fez-se punção percutânea guiada por TC; 60 cm33 Issack PS, Boachie-Adjei O. Surgical correction of kyphotic deformity in spinal tuberculosis. Int Orthop. 2012;36(2):353-7. de material hematogênico foram drenados (fig. 3), mas as culturas foram negativas.

Planejou-se então a intervenção cirúrgica para estabilizar e corrigir a deformidade da coluna vertebral, drenar o componente necrótico e inflamatório e prevenir comprometimento neurológico.

Tratamento cirúrgico

Observou-se cifose segmentar vertebral de 17° e angulação lateral de 25°.

Foi planejada instrumentação monossegmentar por meio de abordagem dupla anteroposterior. No primeiro estágio, acesso lateral minimamente invasivo para o desbridamento intersomático e paravertebral foi feito, seguido por reconstrução com cage intersomático de titânio em L2-L3 com autoenxerto de osso de costela.

Em seguida e sob a mesma indução anestésica, foi feito acesso posterior para a instrumentação pedicular em L2-L3; os níveis não acometidos da coluna não foram instrumentados (fig. 4).

Fig. 4
Passos radioscópicos intraoperatórios para a artrodese anterior e posterior, abordagem minimamente invasiva lateral, desbridamento vertebral e do psoas, seguido de instrumentação de cage intersomático e instrumentação posterior pós-operatória.

A perda estimada de sangue durante todo o procedimento foi de 850 mL. Ambos os estágios foram feitos sob monitoramento neurofisiológico, inclusive potenciais evocados somatossensitivos (PESSs) e potenciais evocados motores (PEMs).

Não foram observadas complicações durante o procedimento.

Análise histológica

Imagens microscópicas (fig. 5) mostraram reações granulomatosas com células multinucleadas. A técnica de coloração de Ziehl Neelsen foi negativa; no entanto, a reação em cadeia da polimerase (PCR) foi positiva para a tuberculose.

Fig. 5
(A) Amostra microscópica que mostra a reação do tecido granulomatoso; (B) Imagem microscópica magnificada de células multinucleadas de granuloma.

Tratamento e acompanhamento pós-operatório

Uma órtese tóraco-lombo-sacra (OTLS) foi indicada e usada durante três meses.

O controle clínico e radiológico foi feito a cada três meses. Não foram observadas deformidades durante o seguimento. Os ângulos segmentares anterior e lateral pós-operatório foram de 1 e 2 graus, respectivamente. Os parâmetros clínicos apresentaram melhoria e a terapia antituberculosa foi bem-sucedida após 12 meses de tratamento (fig. 6).

Fig. 6
(A) e (B) Controle pós-operatório imediato; (C) e (D) controle pós-operatório de um ano; (E) e (F) tomografia computadorizada mostra artrodese intersomática em L2-L3.

O protocolo pós-operatório incluiu quatro agentes antituberculosos por dois meses (isoniazida, etambutol, pirazinamida, rifampicina), seguidos de dois medicamentos por dez meses (isoniazida, rifampicina).

Discussão

O tratamento da tuberculose na coluna vertebral geralmente é conservador, com a administração de quatro fármacos antituberculosos e uso de órtese.55 Moon MS, Kim I, Woo YK, Park YO. Conservative treatment of tuberculosis of the thoracic and lumbar spine in adults and children. Int Orthop. 1987;11(4):315-22. Em alguns casos, o tratamento cirúrgico se faz necessário: perda de alinhamento sagital ou coronal da coluna devido a extensa osteólise e propagação de um abscesso nos tecidos paraespinhais e no canal vertebral, déficit neurológico progressivo, falha no tratamento conservador ou diagnóstico indeterminado.22 Kapoor SK, Garg V, Dhaon BK, Jindal M. Tuberculosis of the posterior vertebral elements: a rare cause of compression of the cauda equina. A case report. J Bone Joint Surg Am. 2005;87(2):391-4.

A instrumentação posterior, com ou sem fusão anterior, apresenta bons resultados clínicos e cirúrgicos.66 Mak KC, Cheung KM. Surgical treatment of acute TB spondylitis: indications and outcomes. Eur Spine J. 2013;22 Suppl. 4:603-11.,77 Yang P, He X, Li H, Zang Q, Yang B. Clinical efficacy of posterior versus anterior instrumentation for the treatment of spinal tuberculosis in adults: a meta- analysis. J Orthop Surg Res. 2014;9(1):10.

A fusão anterior isolada é geralmente indicada para pacientes com comprometimento de nível único e deformidades menores ou leves.88 Dai LY, Jiang LS, Wang W, Cui YM. Single-stage anterior autogenous bone grafting and instrumentation in the surgical management of spinal tuberculosis. Spine (Phila Pa 1976). 2005;30(20):2342-9.

9 Guerado E, Cerván AM. Surgical treatment of spondylodiscitis. An update. Int Orthop. 2012;36(2): 413-20.
-1010 Tosun B, Erdemir C, Yonga O, Selek O. Surgical treatment of thoracolumbar tuberculosis: a retrospective analysis of autogenous grafting versus expandable cages. Eur Spine J. 2014;23(11):2299-306. A instrumentação posterior adicional é considerada em casos de comprometimento multinível ou deformidade grave. As instrumentações curtas ou longas são feitas para evitar falhas precoces e obter maior correção.1111 Hu J, Li D, Kang Y, Pang X, Wu T, Duan C, et al. Active thoracic and lumbar spinal tuberculosis in children with kyphotic deformity treated by one- stage posterior instrumentation combined anterior debridement: preliminary study. Eur J Orthop Surg Traumatol. 2014;24 Suppl. 1:S221-9.

A abordagem anterior é possível somente se o pilar posterior estiver intacto. Foi demonstrado que essa abordagem pode diminuir o tempo operatório, a perda de sangue e a morbidade pós-operatória. No entanto, em pacientes com doença panvertebral ou que requeiram encurtamento do pilar posterior para redução da cifose, ou ainda em casos de doença multinível, é necessária estabilização posterior.1212 Yilmaz C, Selek HY, Gürkan I, Erdemli B, Korkusuz Z. Anterior instrumentation for the treatment of spinal tuberculosis. J Bone Joint Surg Am. 1999;81(9):1261-7.

Os autores apresentaram um caso de deformidade lombar grave secundária à espondilite tuberculosa tratada com abordagem dupla posterior e anterior, com instrumentação monossegmental. Observou-se artrodese após um seguimento de um ano. Os pacientes devem ser cuidadosamente selecionados antes do uso dessa técnica. Mais casos são necessários para reforçar essa recomendação.

Não foram encontrados estudos que descrevessem a instrumentação monossegmental combinada para o tratamento de uma deformidade da coluna grave e secundária à espondilite tuberculosa. São necessários mais casos para respaldar esse tratamento.

References

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  • Trabalho desenvolvido no Italian Hospital of Buenos Aires, Institute of Orthopedics Carlos E. Ottolenghi, Buenos Aires, Argentina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2016
  • Aceito
    30 Ago 2016
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