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Doença de Hirayama: Relato de caso* Trabalho desenvolvido no Hospital Universitário de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

Resumo

Paciente de 26 anos, previamente hígido, que, aos 18 anos, iniciou perda progressiva de força distal, tremor de repouso, e atrofia muscular no membro superior esquerdo. Ao exame, apresentou atrofia moderada, distal, força muscular de grau 4, e minipolimioclonus. A eletroneuromiografia (ENMG) revelou comprometimento pré-ganglionar crônico de C7/C8/T1 bilateral pior à esquerda, com sinais de desnervação ativa em C8/T1. A ressonância magnética (RM) de coluna cervical mostrou alterações degenerativas espondilodiscais com protrusões centrais em C4-C5, C6-C7, e central direita em C5-C6, que tocavam o saco dural. O diâmetro anteroposterior da medula na posição neutra, no plano de C5-C6, era de 5,1 mm. Houve redução do calibre da medula para 4,0 mm após a manobra dinâmica de flexão forçada da coluna, e aumento de sinal nos cornos anteriores. Os achados clínicos e os dos exames complementares eram compatíveis com doença de Hirayama (DH), uma doença benigna rara dos neurônios motores, que afeta os segmentos espinhais cervicais e é mais prevalente em homens e de início próximo aos 20 anos. É típica a fraqueza unilateral e lentamente progressiva, porém autolimitada. Perturbações sensoriais, sinais autonômicos e do neurônio motor superior são raras.

O manejo geralmente é conservador, com uso de colar cervical macio. Apesar de rara, a DH deve ser considerada em pacientes jovens que apresentam atrofias assimétricas focais de membros superiores. O diagnóstico precoce de DH depende do grau de suspeição, e da cooperação e comunicação entre as diversas especialidades envolvidas na investigação.

Palavras-chave
doença de Hirayama; atrofia muscular espinal; medula espinal; imagem por ressonância magnética

Abstract

A 26-year-old previously healthy patient who, at the age of 18 years, began progressive loss of distal strength, rest tremor, and muscle atrophy in the left upper limb. Upon examination, the patient presented moderate distal atrophy, degree 4 in muscular strength, and minipolymioclonus. Electromyoneurography revealed (EMNG) chronic preganglionic bilateral involvement of bilateral C7/C8/T1, worse on the left, with signs of active C8/T1 denervation. A cervical spine magnetic resonance imaging (MRI) scan showed spondylodiscal degenerative changes with central protrusions in C4-C5, C6-C7, and right central in C5-C6, which touched the dural sac. The anteroposterior diameter of the medulla in neutral position, in the C5-C6 plane, was of 5.1 mm. There was a reduction of the spinal cord caliber to 4.0 mm after the dynamic maneuver of forced flexion of the spine, as well as signal increase in the anterior horns. The clinical findings and those of the complementary tests were compatible with Hirayama disease (HD), a rare benign motor neuron disease that affects cervical spinal segments and is most prevalent in men, with onset in the early 20s. Unilateral and slowly progressive weakness is typical, but self-limited. Sensory disturbances, and autonomic and upper motor neuron signals are rare.

Management is usually conservative, with the use of a soft cervical collar. Although rare, HD should be considered in young patients with focal asymmetric atrophy in the upper limbs. The early diagnosis of HD depends on the degree of suspicion, as well as on the cooperation and communication among the various specialties involved in the investigation.

Keywords
Hirayama disease; muscular atrophy; spinal; spinal cord; magnetic resonance imaging

Introdução

Inicialmente descrita por Keizo Hirayama em 1959, a doença de Hirayama (DH) é também chamada de amiotrofia juvenil não progressiva ou amiotrofia monomélica.11 Hirayama K. Juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease). Intern Med 2000; 39 (04) 283-290 O diagnóstico clínico é suspeitado diante de alguns critérios delineados por Tashiro et al.22 Tashiro K, Kikuchi S, Itoyama Y. et al. Nationwide survey of juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease) in Japan. Amyotroph Lateral Scler 2006; 7 (01) 38-45 a partir de levantamento epidemiológico feito no Japão. Os critérios são: fraqueza muscular predominantemente distal e atrofia no antebraço e na mão; envolvimento da extremidade superior unilateral na maioria dos casos; início entre as idades de 10 e 20 anos; início insidioso, com progressão gradual durante os primeiros anos, seguido de estabilização; ausência de envolvimento dos membros inferiores; ausência de distúrbios sensoriais ou anormalidades dos reflexos de estiramento; e exclusão de outras doenças.22 Tashiro K, Kikuchi S, Itoyama Y. et al. Nationwide survey of juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease) in Japan. Amyotroph Lateral Scler 2006; 7 (01) 38-45 A atrofia distal do antebraço e da mão, incluindo predominantemente os músculos da eminência tenar, hipotenar e musculatura interóssea, acarreta uma aparência típica de “amiotrofia oblíqua”.11 Hirayama K. Juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease). Intern Med 2000; 39 (04) 283-290

A DH geralmente é esporádica, de prevalência desconhecida, e a ocorrência familiar é extremamente rara.11 Hirayama K. Juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease). Intern Med 2000; 39 (04) 283-290 Em geral, é autolimitada, apresentando inicialmente uma fase progressiva, que pode variar de 1 a 5 anos, seguida por período estacionário.33 Vitale V, Caranci F, Pisciotta C. et al. Hirayama's disease: an Italian single center experience and review of the literature. Quant Imaging Med Surg 2016; 6 (04) 364-373

Não há uma explicação fisiopatológica clara. Uma das teorias postuladas é a de que o crescimento desproporcional entre a coluna vertebral e seu conteúdo, durante a fase de estirão do crescimento, poderia criar uma distensão da parede posterior do canal dural que causaria o deslocamento anterior da dura-máter na flexão. A dura-máter deslocada levaria à compressão da medula, o que resultaria em distúrbios locais da microcirculação e necrose das células do corno anterior.11 Hirayama K. Juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease). Intern Med 2000; 39 (04) 283-290,44 Kandukuri GR, Acosta NR. Significance of Dynamic Imaging in Diagnosis of Hirayama Disease: A Rare Case Report and Literature Review. Kans J Med 2020; 13 (13) 58-60

A eletroneuromiografia (ENMG) pode demonstrar sinais de desnervação aguda ou crônica na musculatura intrínseca da mão, e redução da amplitude dos potenciais de ação muscular compostos. A desnervação pode se estender a músculos clinicamente normais em 25% a 50% dos casos.11 Hirayama K. Juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease). Intern Med 2000; 39 (04) 283-290,55 Hassan KM, Sahni H. Nosology of juvenile muscular atrophy of distal upper extremity: from monomelic amyotrophy to Hirayama disease-Indian perspective. BioMed Res Int 2013; 2013: 478516

A ressonância magnética (RM) cervical dinâmica é essencial para o diagnóstico de DH. Os principais achados da RM em posição neutra são: atrofia localizada da medula cervical inferior/achatamento assimétrico da medula; hipersinal intrínseco da medula em imagens ponderadas em T2; e uma curvatura cervical anormal, com perda de inserção entre o saco dural posterior e lâmina subjacente. As RMs em flexão (30° a 40°) mostram deslocamento anterior da parede posterior do saco dural cervical, e achatamento dorsal da medula cervical inferior devido ao alargamento do espaço epidural posterior atribuído a uma congestão do plexo venoso epidural.66 Raval M, Kumari R, Dung AA, Guglani B, Gupta N, Gupta R. MRI findings in Hirayama disease. Indian J Radiol Imaging 2010; 20 (04) 245-249

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de DH diagnosticado tardiamente, após suspeição por ENMG, enfatizando a importância da correlação eletroclínica e a comunicação entre os profissionais envolvidos na “odisseia” (rotina) diagnóstica de uma doença rara.

Relato de Caso

Este relato foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) (CAAE 34383220.9.0000.5558) de nossa instituição, e foi assinado o termo de consentimento informado.

Paciente, de 26 anos, previamente hígido, que, aos 18 anos, iniciou quadro de perda progressiva de força distal no membro superior esquerdo, associada a atrofia muscular. Relatava dor cervical intensa e o hábito de flexionar o pescoço para aliviar a dor. Evoluiu sem restrições para atividades laborais como técnico em informática.

Não havia antecedentes pessoais ou familiares significativos, exceto o relato de traumatismo cranioencefálico leve, após queda de dois metros, com trauma da cabeça contra o solo, que ocorreu aos 8 anos de idade.

Ao exame físico, apresentava atrofia moderada, que envolvia a musculatura distal de ambos os membros superiores, pior à esquerda (Figura 1). Apresentava também tônus muscular reduzido, força muscular de grau 4 distal e de grau 5 proximal, hiporreflexia bicipital, tricipital, braquiorradial e de flexores dos dedos, e presença de minipolimioclonus, todos à esquerda.

Fig. 1
Atrofia assimétrica acometendo o membro superior esquerdo.

A RM de plexo braquial direito foi normal. A primeira RM cervical mostrou pequenas protrusões discais de C4-C5 a C6-C7, tocando o saco dural. A ENMG realizada três anos após a investigação inicial evidenciou comprometimento pré-ganglionar crônico e desnervação ativa em C7/C8/T1 bilateral e pior à esquerda. Neste exame, levantou-se a hipótese de DH, e orientou-se a realização de RM cervical dinâmica.

Nova RM da coluna cervical (Figura 2) evidenciou alterações degenerativas espondilodiscais, com protrusões centrais em C4-C5, C6-C7 e central direita em C5-C6, que tocavam o saco dural. O diâmetro anteroposterior da medula na posição neutra, no plano de C5-C6, era de 5,1 mm. Houve redução do calibre da medula para 4,0 mm, após a manobra dinâmica de flexão forçada da coluna, e aumento do sinal nos cornos anteriores. O deslocamento anterior da dura-máter posterior sugeria um aumento da mobilidade, que determina a compressão sobre a medula.

Fig. 2
Imagens da RM da coluna cervical em corte sagital na posição neutra (A ), em sagital flexão (B) axial (C) do paciente. Imagens ponderadas em T2 em cortes sagitais mostrando deslocamento anterior da dura-máter posterior no nível vertebral C5-C6, o que sugere um aumento da mobilidade, que determina a compressão sobre a medula. Corte axial (C) ponderado em T2 demonstrando achatamento assimétrico da medula.

Discussão

O paciente do caso relatado apresentava achados clínicos e de exames complementares compatíveis com DH, confirmada somente oito anos depois do início dos sintomas. O diagnóstico só foi possível pela suspeição do neurofisiologista, que sugeriu RM cervical dinâmica.

Vitale et al.,33 Vitale V, Caranci F, Pisciotta C. et al. Hirayama's disease: an Italian single center experience and review of the literature. Quant Imaging Med Surg 2016; 6 (04) 364-373 em estudo prospectivo, observaram que 100% dos pacientes com DH apresentavam perda da lordose cervical à RM. O ganho de sensibilidade com RM em flexão dinâmica é de 87%, quando comparada à sensibilidade de 49% da RM em posição neutra.33 Vitale V, Caranci F, Pisciotta C. et al. Hirayama's disease: an Italian single center experience and review of the literature. Quant Imaging Med Surg 2016; 6 (04) 364-373

Siringomielia, esclerose lateral amiotrófica, espondilose cervical associada a mielopatia, tumores de medula espinhal, e mielopatia traumática são diagnósticos diferenciais da DH, e devem ser descartados.77 Huang YL, Chen CJ. Hirayama disease. Neuroimaging Clin N Am 2011; 21 (04) 939-950, ix-x

O manejo geralmente é conservador, com colar cervical, evitando flexões sustentadas ou repetidas do pescoço.11 Hirayama K. Juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease). Intern Med 2000; 39 (04) 283-290,88 Tokumaru Y, Hirayama K. [Cervical collar therapy for juvenile muscular atrophy of distal upper extremity (Hirayama disease): results from 38 cases]. Rinsho Shinkeigaku 2001; 41 (4-5): 173-178 O tratamento cirúrgico, com fusão espinhal cervical e duraplastia, é reservado para casos selecionados.

Por fim, o caso ilustra a importância da interação entre os profissionais na escolha do método de investigação mais adequado para a conclusão diagnóstica.

Apesar de rara, a DH deve entrar na lista de diagnósticos diferenciais em pacientes jovens que apresentam atrofias assimétricas focais de membros superiores. Estabelecer o diagnóstico de DH, de forma precoce, depende do grau de suspeição, e da cooperação e comunicação entre as diversas especialidades.

  • Suporte Financeiro
    Este estudo não recebeu nenhum apoio financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.
  • Trabalho desenvolvido no Hospital Universitário de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2021
  • Aceito
    14 Out 2021
  • Publicado
    10 Ago 2022
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