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O desafio da esquizofrenia

Livros

O desafio da esquizofrenia

Editado por Itiro Shirakawa, Ana Cristina Chaves e Jair J. Mari. 1998. São Paulo:Lemos Editorial & Gráficos Ltda, 279 páginas.ISBN 85-7450-002-X

A esquizofrenia é uma síndrome polimorfa que incide com maior freqüência entre os adultos jovens. Com um curso geralmente cronificante, implica na reminiscência de sintomas psicóticos, no deficiente ajuste e desempenho social e na intensa utilização de serviços hospitalares, ambulatoriais e de atendimento emergencial. A esquizofrenia não é o mais prevalente transtorno mental, quando por exemplo é comparado ao alcoolismo e dependências químicas ou transtornos afetivos ou de ansiedade, porém, numericamente é significativa entre a população usuária de serviços de saúde mental. Os custos que decorrem da assistência ao paciente, os que resultam da cessação de uma vida produtiva e independente, e os gerados pelo impacto familiar são imensos, alcançando frações não desprezíveis do PIB (Produto Interno Bruto) dos países industrializados.

No Brasil os cálculos dos custos da esquizofrenia ainda são incipientes e incompletos. Seguramente, se as nossas autoridades responsáveis pela dotação orçamentária os conhecessem, seriam mais criteriosos no incentivo à implantação de uma rede de assistência mais eficiente ao paciente esquizofrênico e à sua família. Neste contexto, é muito bem-vinda uma obra intitulada "O Desafio da Esquizofrenia", capaz de colocar ao alcance do profissional médico e de outras áreas de saúde mental envolvidas com a assistência ao paciente esquizofrênico uma ampla palheta de informações úteis e indispensáveis para a tomada de decisões terapêuticas e para o planejamento de programas de atendimento.

O livro é uma iniciativa do Proesq (Programa de Esquizofrenia da Unifesp-EPM), um serviço de pesquisa e assistência para pacientes esquizofrênicos na cidade de São Paulo, e reúne a contribuição de 18 autores, na maioria pós-graduandos da disciplina de psiquiatria da Unifesp. Com a edição de Itiro Shirakawa, seguramente um dos profissionais mais experientes no manejo terapêutico de esquizofrênicos em nosso meio, Jair Mari, um destacado pesquisador que se tem empenhado em mudar o perfil da pós-graduação no Brasil, e Ana Cristina Chaves, coordenadora do Proesq, é apresentado um amplo enfoque da síndrome esquizofrênica. O livro foi subdividido em quatro grandes áreas de estudo: 1ª) critérios diagnósticos e estudos etiológicos; 2ª) estudos de prognóstico; 3ª) intervenções terapêuticas e 4ª) aspectos culturais. Para finalizar, Itiro Shirakawa, em um capítulo apresentado à parte, sob o título "Manejo Terapêutico", discorre, com a informalidade que lhe é própria, sobre sua prática terapêutica. Ao longo de 16 capítulos são revisadas mais de 800 referências. Um trabalho valioso, dada a avalanche de informações e referências existentes na literatura especializada sobre o assunto.

Inicia-se com a descrição da evolução dos critérios diagnósticos em esquizofrenia, passando em revista o seu percurso a partir dos autores clássicos até os critérios atuais do DSM-IV e CID-10. O capítulo referente à epidemiologia é uma retomada conceitual da metodologia de investigação epidemiológica, na medida em que discute de forma detalhada os procedimentos e as dificuldades para a investigação sobre a prevalência e incidência da esquizofrenia nas populações. A genética é discutida com semelhante rigor, pois seu autor se mostra preocupado em conduzir o leitor por um assunto bastante específico e geralmente pouco familiar. A discussão do papel do neurodesenvolvimento, imprescindível para uma conceituação mais ampla, no sentido de uma anomalia estrutural do SNC, já é mais sucinta, limitando-se à apresentação de dados de pesquisa.

O segundo bloco, que concerne os estudos de prognóstico, é um dos pontos altos do livro, pois seus autores se remetem a pesquisas originais sobre o assunto, realizadas no nosso país. Como a quase totalidade de informações sobre o prognóstico da esquizofrenia provém da literatura internacional, sendo portanto obtidas de campos de pesquisa bastante distintos dos da nossa realidade, os dados aqui apresentados tornam-se particularmente atraentes. É o caso, por exemplo, do estudo sobre o curso e prognóstico após a hospitalização, em que uma coorte de pacientes psicóticos são reavaliados após dois anos, focalizando as variáveis de estudo de psicopatologia e ajustamento social, além de outras variáveis clínicas. Outro estudo mostra as diferenças entre os sexos no início, na evolução e no prognóstico, discutindo as possíveis determinantes de um pior prognóstico para o sexo masculino. Ainda em outro estudo é discutida a correlação entre sintomatologia (psicopatologia) e a "incapacitação social", mostrando que, além de o sexo masculino encontrar mais dificuldades nos relacionamentos sociais, a presença de sintomas deficitários, ou negativos, também intervem no desempenho social. Finalmente, para encerrar este bloco, é descrita a depressão em pacientes esquizofrênicos, uma ocorrência não rara e que se confunde, com facilidade, com os sintomas negativos ou os possíveis efeitos colaterais das medicações antipsicóticas.

O terceiro bloco, o das intervenções terapêuticas, abre com um capítulo sucinto, apresentando as bases do tratamento farmacológico. Dada a importância do assunto - uma vez que hoje pode-se contabilizar os maiores avanços na melhora da qualidade de vida do esquizofrênico ao nosso melhor conhecimento das potencialidades e dos limites da ação dos diversos agentes antipsicóticos - o tema mereceria um tratamento mais abrangente, se aprofundando, por exemplo, nas diferentes estratégias de uso dos neurolépticos nos distintos momentos da doença. Já o enfoque dado à psicoterapia - foram destinados dois capítulos ao assunto, o das terapias individuais e outro para as grupais - é primoroso, visto que seus autores conseguem apresentar um assunto tão polêmico, como é o da psicoterapia em psicóticos, com objetividade e clareza. Ao citar Katz, "Hoje, uma abordagem psicoterápica que negue a relevância dos componentes orgânicos para a esquizofrenia é tão obtusa quanto uma visão biomédica, que simplifica a esquizofrenia em termos de uma doença para a qual apenas uma droga apropriada deva ser prescrita, e que ignore o papel desempenhado pelas experiências de vida", assumem claramente a sua necessidade e viabilidade mediante o uso de objetivos e técnicas bem definidas. Da mesma forma, os propósitos e as técnicas da terapia ocupacional - geralmente fala-se muito em T.O., mas sabe-se pouco sobre seus recursos e objetivos - são apresentados assentados no eixo tratamento-reabilitação. O enfoque dado à terapia familiar é original e elegante: mediante a realização de uma metanálise, os autores agruparam seis estudos de intervenção familiar, abrangendo um total de 350 casos, concluindo sobre a eficácia desta modalidade na prevenção de recaídas.

A apreciação da esquizofrenia no contexto cultural não é habitual nos livros do gênero, ou melhor, é merecedora de poucas citações. Aqui, no quarto bloco, o tema merece um tratamento amplo e esclarecedor. Na cuidadosa revisão sobre esquizofrenia e cultura, são apresentados ao leitor trabalhos que investigam as diferenças que há na manifestação da esquizofrenia entre as diferentes culturas. Assim, é de conhecimento que a esquizofrenia tem diferentes desfechos nos países mais ou menos desenvolvidos, pois acredita-se que haveria fatores precipitantes ou agravantes de um lado e protetores ou atenuantes de outro, que explicariam as diferenças nas apresentações clínicas. Isto, evidentemente, levanta questões sobre sua dinâmica e interação ambiental. Em um outro capítulo, este já voltado para o microambiente familiar, fala-se "das representações de doença pelos familiares, das nomeações e dos conceitos constituídos ao longo da experiência com o familiar doente", e de como, "ao não fixarem um único conceito para a doença, os familiares desenvolvem uma estratégia para lidar com ela". De uma forma mais ampla, no último capítulo, é apresentado um trabalho que investiga um propósito semelhante, ou seja, de como uma comunidade, no caso a República do Cabo Verde, concebe os indivíduos com esquizofrenia e quais recursos dispõem para lidar com essas pessoas.

Mas, não obstante a sua elevada qualidade, há ressalvas a fazer. Assim, ocorre por exemplo indagar se não há falta de alguns enfoques bastante úteis na monitorização e avaliação mais fina de cada caso. Para isso é imprescindível uma discussão mais fina da psicopatologia, um enfoque que infelizmente é cada vez mais sacrificado, na medida em que se universaliza o uso de escalas e instrumentos de avaliação que, embora tenham contribuído de forma inegável para uma aproximação conceitual e aberto a possibilidade da pesquisa em psiquiatria, são de pouca utilidade para a prática clínica do dia-a-dia. Muito se beneficia aquele que conhece os autores clássicos, que com invejável depuração de detalhes conseguiram descrever a realidade vivida pelos seus pacientes. Maior destaque mereceria também a descrição da história natural da esquizofrenia, seus pródromos, suas primeiras manifestações clínicas, a sua evolução em surtos agudos intercalados na maioria das vezes por períodos de estabilização e seus estágios de cronificação. Muitas dessas informações, que estão nas "entrelinhas" ou espalhadas ao longo dos diferentes capítulos, mereceriam um capítulo próprio. Outra contribuição que faz falta, esta já recente e atual, concerne o estudo na neuropsicologia e neuroimagem, um enfoque que, apesar de não ter encontrado um lugar demarcado na clínica assistencial, é uma vertente importante da pesquisa que talvez, no futuro, venha cumprir a tarefa de integrar áreas hoje ainda distantes, como a da farmacologia e da clínica. Mas incluir ou excluir este ou aquele enfoque de um assunto tão amplo como a esquizofrenia é a "angústia de quem faz", pois é impossível falar de tudo, sob pena de superficializar o conteúdo ou, quem sabe, nunca finalizar a tarefa.

Wulf H. Dittmar

São Paulo - SP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Mar 1999
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