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Síndrome de Gilles de La Tourette em criança portadora do transtorno do humor bipolar

Gilles de la Tourette syndrome in a child with bipolar disorder

CARTA AOS EDITORES

Síndrome de Gilles de La Tourette em criança portadora do transtorno do humor bipolar

Gilles de la Tourette syndrome in a child with bipolar disorder

Sr. Editor,

O transtorno do humor bipolar (THB) em crianças apresenta características clínicas bastante peculiares como predominância de estados mistos e ciclagem ultrarápida.1 A comorbidade de THB com síndrome de Gilles de La Tourette (SGT) na infância tem chamado atenção, mas os fatores associados ainda são pouco conhecidos.2-5

Relatamos o caso de um menino com THB encaminhado ao Ambulatório de Transtornos Afetivos do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (ATA-SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), cujos sintomas de SGT somente ficaram evidentes após a retirada da medicação que atuava como estabilizadora de humor.

Relato de caso

LPM, 10 anos e do sexo masculino. Aos seis anos, teve início quadro de agressividade, agitação e hiperatividade. Havia sido tratado com carbamazepina sem melhora e, subseqüentemente com olanzapina, que aumentou a ansiedade. Posteriormente, medicado com metilfenidato, houve piora dos sintomas disruptivos, sendo desencadeado o primeiro episódio de mania.

Aos 10 anos apresentava sintomas de euforia, agitação psicomotora, grandiosidade e irritabilidade. Recebeu na ocasião doses diárias de risperidona (12 mg) e divalproato de sódio (DVP) (500 mg) sem melhora significativa.

Encaminhado ao ATA-SEPIA, foi internado para observação e controle medicamentoso. Recebeu alta após 35 dias, com estabilização parcial do humor utilizando risperidona 8 mg/dia e DVP 1.000 mg/dia. No seguimento ambulatorial, foi associado o carbonato de lítio (CL) 1.050 mg/dia com melhora significativa das oscilações de humor e explosões de raiva. Cinco meses após, voltou a apresentar oscilações diárias de humor. Na ocasião, a dosagem sérica dos estabilizadores de humor mostrava níveis eficientes (DVP = 122 ug/ml e litemia = 0,7 mEq/l), mas os medicamentos haviam proporcionado alterações de prolactina (28,9 ng/ml) e TSH (8,78 uU/ml). O paciente foi novamente internado.

Na segunda internação, CL e risperidona foram rapidamente descontinuados e o DVP reduzido lentamente. Ainda em uso de DVP 250 mg/dia, no décimo dia de internação, o paciente apresentou melhora significativa e recebeu alta para prosseguir o tratamento ambulatorial.

Quinze dias após a retirada completa de risperidona, ainda eutímico, o paciente começou a apresentar diversos tiques motores e fônicos. A intensidade dos tiques lhe conferia um aspecto de inquietação psicomotora, impossibilitando-o de executar qualquer atividade. Ele nunca havia apresentado sintomas semelhantes antes.

Optou-se pela re-introdução da risperidona 3 mg/dia, visto que a retirada abrupta do antipsicótico exacerba sintomas de tiques em SGT, associando o DVP 500 mg/dia. Os tiques motores e fônicos remitiram completamente após 30 dias e o humor manteve-se estável.

Discussão

Os relatos sobre a comorbidade de THB com SGT em crianças são raros. Ambas são patologias que podem causar graves prejuízos no funcionamento e desenvolvimento. Apresentam em comum sintomas como explosões de raiva, humor irritado e impulsividade.1,2,5 Pesquisas têm mostrado que indivíduos com SGT e THB apresentam mais comorbidades psiquiátricas e conseqüentemente maiores prejuízos de funcionamento.3,4 Essas co-ocorrências de sintomas podem levar à confusão diagnóstica, mesmo em se tratando de condições psicopatológicas distintas, com quadros clínicos e evoluções particulares.

O presente caso mostra que as alterações do humor produzidas pelo THB foram mais significativas desde o início e sobrepuseram-se aos sintomas de SGT, de forma que o segundo diagnóstico nunca havia sido considerado. Entretanto, a presença latente de SGT poderia explicar as dificuldades de controle inicial,3 quando nem as altas doses de antipsicóticos conseguiam controlar os comportamentos disruptivos do paciente, sendo necessário interná-lo. É importante que se faça o diagnóstico diferencial com o intuito de se evitar erros e conduções equivocadas no tratamento clínico e psicoterápico.3-5

Miguel Angelo Boarati, Ana Regina G Lage Castillo, José

Carlos Ramos Castillo, Lee Fu-I

Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas,

Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

  • 1. Findling RL, Gracious BL, McNamara NK, Youngstrom EA, Demeter CA, Branicky LA, Calabrese JR. Rapid, continuous cycling and psychiatric co-morbidity in pediatric bipolar I disorder. Bipolar Disord 2001;3(4):202-10.
  • 2. Bleich A, Bernout E, Apter A, Tyano S. Gilles de la Tourette syndrome and mania in a adolescent. Br J Psychiatry 1985;146:664-5.
  • 3. Robertson MM. Mood disorders and Gilles de la Tourette's syndrome: An update on prevalence, etiology, comorbidity, clinical associations, and implications. J Psychosom Res 2006;61(3):349-58.
  • 4. Burd L, Kerbeshian J. Gilles de la Tourette's syndrome and bipolar disorder. Arch Neurol. 1984;41(12):1236.
  • 5. Berthier ML, Kulisevsky J, Campos VM. Bipolar disorder in adult patients with Tourette's syndrome: a clinical study. Biol Psychiatry 1998;43(5):364-70.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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