Open-access Compras compulsivas: uma revisão e um relato de caso

Resumos

OBJETIVO: O transtorno do comprar compulsivo foi descrito pela primeira vez como uma síndrome psiquiátrica no começo do século XX. Sua classificação permanece incerta e os investigadores têm debatido uma correlação potencial com transtornos do humor, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos do impulso. O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão de transtorno do comprar compulsivo e um relato de caso. MÉTODO: Duas bases de dados foram investigadas (Medline e PsycINFO) em busca de artigos publicados nos últimos 40 anos. Os unitermos selecionados foram "oniomania" e "compras compulsivas". Outros artigos relevantes também foram identificados por meio das listas de referências. RESULTADOS: O transtorno do comprar compulsivo é uma condição crônica e prevalente encontrada ao redor do mundo, que divide características comuns com transtornos do controle do impulso. Em amostras clínicas, mulheres perfazem mais de 80% dos sujeitos. Sua etiologia é desconhecida, mas mecanismos neurobiológicos e genéticos têm sido propostos. O transtorno apresenta altas taxas de comorbidade com transtornos do humor, abuso de substâncias, transtornos alimentares e transtornos do controle do impulso. CONCLUSÃO: As recomendações terapêuticas derivadas da literatura e da experiência clínica sugerem que compradores compulsivos podem se beneficiar de intervenções psicossociais. Modelos de intervenção cognitivo-comportamental de grupo parecem promissores. Ensaios farmacológicos relatam resultados conflitantes. A identificação e o tratamento das comorbidades psiquiátricas são também um aspecto chave do tratamento. Para determinar a validade do transtorno do comprar compulsivo, os futuros trabalhos devem enfocar os achados psicopatológicos e neurobiológicos específicos à síndrome.

Oniomania; Compras compulsivas; Personalidade; Tratamento; Transtornos do controle do impulso


OBJECTIVE: Compulsive buying disorder was first described as a psychiatric syndrome in the early twentieth century. Its classification remains elusive, and investigators have debated its potential relationship to mood, substance use, obsessive-compulsive, and impulse control disorders. The objective of this study is to present a review of compulsive buying disorder and present a case vignette. METHOD: Two databases were reviewed (Medline and PsycINFO) in search for articles published in the last 40 years. Selected terms included oniomania, compulsive buying, and compulsive shopping. Other relevant articles were also identified through reference lists. RESULTS: Compulsive buying disorder is a prevalent and chronic condition that is found worldwide, sharing commonalities with impulse control disorders. In clinical samples, women make up more than 80% of subjects. Its etiology is unknown, but neurobiologic and genetic mechanisms have been proposed. The disorder is highly comorbid with mood, substance use, eating and impulse control disorders. CONCLUSIONS: Treatment recommendations derived from the literature and clinical experience suggest that problem shoppers can benefit from psychosocial interventions. Cognitive-behavioral group models appear promising. Medication trials have reported mixed results. The identification and treatment of psychiatric comorbidity is also a key aspect of treatment. In order to determine the validity of compulsive buying disorder, future work should focus on psychopathology and neurobiological findings unique to the syndrome.

Oniomania; Compulsive buying; Personality; Treatment; Impulse control disorders


ARTIGOS

Compras compulsivas: uma revisão e um relato de caso

Hermano TavaresI; Daniela Sabbatini S LoboII; Daniel FuentesIII; Donald W BlackIV

IAmbulatório de Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso (AMJO), Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

IISeção de Neurogenética, Centre of Addiction and Mental Health, University of Toronto, Toronto, Canadá

IIIUnidade de Psicologia e Neuropsicologia, Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

IVUniversity of Iowa Roy J. and Lucille A. Carver College of Medicine, Iowa City, EUA

Correspondência Correspondência: Hermano Tavares Rua Purpurina 155, cjs. 126/128 05435-030, São Paulo, SP, Brasil Tel/fax: (55 11) 3814-3920 E-mail: hermanot@uol.com.br

RESUMO

OBJETIVO: O transtorno do comprar compulsivo foi descrito pela primeira vez como uma síndrome psiquiátrica no começo do século XX. Sua classificação permanece incerta e os investigadores têm debatido uma correlação potencial com transtornos do humor, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos do impulso. O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão de transtorno do comprar compulsivo e um relato de caso.

MÉTODO: Duas bases de dados foram investigadas (Medline e PsycINFO) em busca de artigos publicados nos últimos 40 anos. Os unitermos selecionados foram "oniomania" e "compras compulsivas". Outros artigos relevantes também foram identificados por meio das listas de referências.

RESULTADOS: O transtorno do comprar compulsivo é uma condição crônica e prevalente encontrada ao redor do mundo, que divide características comuns com transtornos do controle do impulso. Em amostras clínicas, mulheres perfazem mais de 80% dos sujeitos. Sua etiologia é desconhecida, mas mecanismos neurobiológicos e genéticos têm sido propostos. O transtorno apresenta altas taxas de comorbidade com transtornos do humor, abuso de substâncias, transtornos alimentares e transtornos do controle do impulso.

CONCLUSÃO: As recomendações terapêuticas derivadas da literatura e da experiência clínica sugerem que compradores compulsivos podem se beneficiar de intervenções psicossociais. Modelos de intervenção cognitivo-comportamental de grupo parecem promissores. Ensaios farmacológicos relatam resultados conflitantes. A identificação e o tratamento das comorbidades psiquiátricas são também um aspecto chave do tratamento. Para determinar a validade do transtorno do comprar compulsivo, os futuros trabalhos devem enfocar os achados psicopatológicos e neurobiológicos específicos à síndrome.

Descritores: Oniomania; Compras compulsivas; Personalidade; Tratamento; Transtornos do controle do impulso

Introdução

O ato de comprar desenvolveu-se na antiga Grécia, onde a emergência do dinheiro alterou os valores culturais e morais. O poder era determinado não pelo nome de família, mas pelo comércio, que aumentou muito pela adoção dos sistemas monetários. O ato de realizar uma compra continuou a distrair e a extasiar as pessoas nos milênios subseqüentes e tem despertado preocupações de que possa levar a um transtorno clínico.

Psiquiatras descritivos como Kraepelin1 e Bleuler2 escreveram sobre o transtorno do comprar compulsivo, ou oniomania, no início do século XX. Basearam suas descrições do transtorno no conceito de monomania de Esquirol.3 Segundo Bleuler:2 "o elemento particular (na oniomania) é a impulsividade; eles não podem evitá-la, o que algumas vezes se expressa inclusive no fato de que, a despeito de ter uma boa formação acadêmica, os pacientes são absolutamente incapazes de pensar diferentemente e de conceberem as conseqüências sem sentido de seu ato e as possibilidades de não realizá-lo. Não chegam nem a sentir o impulso, mas agem de acordo a sua natureza, como a lagarta que devora a folha". Kraepelin descreveu a compra excessiva (oniomania) como um "impulso patológico".2 Bleuler classificou a oniomania junto com os "impulsos reativos", que incluíam a piromania e a cleptomania.

O transtorno do comprar compulsivo (TCC) atraiu pouca atenção nas décadas seguintes, exceto entre os estudiosos do comportamento de consumo 4,5 e psicanalistas.6 O interesse reviveu nos primeiros anos da década de 1990, quando foram publicadas três séries de casos clínicos independentes que envolveram 90 indivíduos.7-9 O transtorno tem sido descrito mundialmente com relatos provenientes dos EUA, Canadá,10 Inglaterra,5 Alemanha,11 França12 e Brasil.13 Apesar de o custo do transtorno nunca ter sido calculado, estima-se que o impulso de comprar gere mais de U$4 bilhões em compras anuais na América do Norte.14

A classificação do TCC continua sendo incerta e o transtorno não está incluído nos sistemas nosológicos contempo-râneos, tais como o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais ou a Classificação Internacional de Doen-ças da Organização Mundial da Saúde, Décima Edição.

Alguns pesquisadores têm considerado o TCC como um transtorno de dependência15 e o agruparam com os transtornos de uso de álcool e drogas. Outros o consideram como parte do espectro dos transtornos obsessivo-compulsivos,16 ou do humor.17 Essa é uma categoria que foi proposta e que combina dependências comportamentais e inclui o jogo patológico, a cleptomania, a piromania, a dependência de Internet e o comportamento sexual compulsivo juntamente com o TCC. Alguns escritores criticaram as tentativas de categorizar o TCC como um transtorno, o que eles consideram como parte de uma tendência a "medicalizar" os problemas comportamentais.18 Infelizmente, essa abordagem ignora a realidade do TCC e estigmatiza as tentativas de compreender ou tratar a condição.

O objetivo deste estudo é o de apresentar uma breve revisão do comportamento do comprar descontrolado, ilustrado com um relato de caso. O comportamento de comprar descontroladamente tem sido principalmente referido como "comprar compulsivo" ou "ida compulsiva às compras". Nenhum dos termos deve ser interpretado como implicando uma relação com transtornos compulsivos ou impulsivos, pois sua verdadeira natureza é indeterminada. Os termos "comprar compulsivo" e "ida compulsiva às compras" serão utilizados de forma intercambiável.

Revisão de literatura

Os autores pesquisaram o Medline e o PsycINFO em busca de artigos publicados desde 1966, utilizando os termos "oniomania" e "comprar". Os artigos então recuperados foram cruzados com os termos "impulsivo", "compulsivo", "patológico" e "transtorno". Setenta e quatro artigos que trataram do comportamento do comprar descontrolado (e.g. prevalência, diagnóstico, etiologia ou tratamento) foram selecionados. Somente dois artigos tinham sido publicados nos anos 1980, os demais foram publicados depois desse período; a maioria (47 artigos) foi publicada desde 2000. Devido a restrições edito-riais, nem todos os trabalhos recuperados puderam ser mencionados nesta versão do artigo, mas a lista completa está disponível mediante solicitação ao autor correspondente.

1. Epidemiologia

Faber e O'Guinn aplicaram a Escala de Compras Compulsivas (ECC) a 292 respondentes em Illinois, EUA, e estimaram a prevalência de TCC entre 2% e 8% da população geral.19 Mais recentemente, Koran et al. estimaram a prevalência pontual de TCC em cerca de 6% dos respondentes, com base nos resultados de um levantamento telefônico aleatório com 2.513 adultos, utilizando um escore da ECC dois desvios padrão mais baixo que a média.20 Uma prevalência de 1,4% foi calculada utilizando o critério ainda mais estrito de três desvios padrão abaixo da média. Grant et al. relataram um índice de prevalência de TCC durante a vida de pouco mais de 9% entre 204 pacientes psiquiátricos hospitalares consecutivamente internados.21 Apesar do crescente interesse científico e leigo, não há evidências de que o TCC esteja crescendo em termos de prevalência.

A pesquisa clínica demonstra que entre 80% e 94% dos compradores compulsivos são mulheres.7-9 Tanto Kraepelin como Bleuler observaram que o comprar compulsivo afetava principalmente as mulheres.1,2 Kraepelin concluiu que algumas mulheres tinham se tornado compradoras incontroláveis devido a sua atração por situações arriscadas e excitantes, comparando este impulso com o comportamento observado em jogadores patológicos, que eram, em sua maio-ria, homens. No entanto, Koran et al. relataram recentemente que a freqüência de TCC é quase igual em homens e mulheres (5,5% e 6,0%, respectivamente).20 Seu achado sugere que a diferença relatada entre gêneros pode ser produto de um artefato e talvez esteja relacionada ao fato de que as mulheres parecem reconhecer mais prontamente que gostam de fazer compras do que os homens. No entanto, Dittmar escreveu que a diferença de gênero é genuína e não se deve ao fato de os homens estarem sub-representados nas amostras clínicas.22 Ela baseou essa conclusão nos resultados de uma pesquisa com a população geral no Reino Unido em que 92% dos respondentes considerados compradores compulsivos eram mulheres.

Relata-se que o TCC tem início no final da adolescência ou nos primeiros anos da segunda década de vida, o que pode se relacionar com a emancipação do núcleo familiar, bem como com a idade em que as pessoas conseguem crédito pela primeira vez.23 É interessante que as compras descontroladas em adolescentes estão provavelmente associadas a um padrão mais generalizado de desinibição comportamental que inclui fumar cigarros, uso de álcool, uso de drogas e sexo precoce.24 Devido ao fato que se pode, hoje em dia, comprar on-line durante as 24 horas do dia e que até adolescentes possuem cartões de crédito, é provável que alguns compradores compulsivos iniciem sua vida adulta com uma dívida substancial. Ressalte-se que Black et al. relataram que o TCC era relativamente freqüente (19%) em uma amostra de pessoas com uso compulsivo do computador.23

Não há estudos de acompanhamento de longo prazo de TCC, mas os dados de Schlosser et al. e de Christenson et al. sugerem que, para a maioria das pessoas, o transtorno é ou crônico ou recorrente.7,9 Aboujaoude et al. relataram recentemente que as pessoas que responderam ao tratamento com citalopram tinham probabilidade de permanecer em remissão durante o acompanhamento de um ano.25 Esse achado sugere que o tratamento poderia alterar a história natural do transtorno.

2. Diagnóstico

Na literatura sobre o comportamento do consumidor, Faber e O'Guinn descrevem o TCC como um comportamento crônico e repetitivo que é difícil de ser interrompido e que tem conseqüências prejudiciais; além disso, ele ocorre em resposta a eventos ou sentimentos negativos.19 McElroy et al. desenvolveram crité-rios diagnósticos operacionais para o TCC que enfatizam a incapacidade em resistir à urgência em comprar, preocupação mal-adaptativa com as compras e o prejuízo que o acompanha.8 A mania e a hipomania são exclusões ao diagnóstico (Tabela 1). Esses critérios têm sido amplamente aceitos na comunidade de pesquisa, ainda que sua confiabilidade e validade não tenham sido determinados.

É importante distinguir as compras normais das descontroladas. Significativamente, a distinção não é feita com base na quantidade de dinheiro gasto ou no nível de renda, mas na extensão da preocupação, no nível de angústia pessoal e no desenvolvimento de conseqüências adversas. Muitas pessoas terão orgias de compras ocasionais, particularmente em situações especiais (e.g., aniversários, férias), mas o gasto excessivo episódico por si só não se constitui em evidência para confirmar um diagnóstico de TCC.

Foram desenvolvidos vários instrumentos para avaliar o TCC ou classificar sua gravidade. A ECC, antes mencionada, parece distinguir confiavelmente compradores normais dos patológicos.19 Ela consiste em sete itens que representam comportamentos, motivações e sentimentos específicos associados ao TCC. Edwards desenvolveu uma escala útil com 13 itens que avalia experiências e sentimentos importantes sobre compras e gastos.26 Monahan et al. modificaram a Escala Obsessivo-Compulsiva de Yale Brown para medir a gravidade do TCC e a mudança durante ensaios clínicos.27 A escala de 10 itens classifica o tempo envolvido, a angústia, a interferência, a resistência e o grau de controle das cognições e comportamentos típicos do TCC. Outros grupos desenvolveram escalas, ainda que não tenham encontrado ampla utilização.

A Minnesota Impulsive Disorders Interview é uma entrevista semi-estruturada desenvolvida por Christenson et al. para avaliar a presença de TCC, cleptomania, tricotilomania, transtorno explosivo intermitente, comportamento sexual compulsivo, jogo patológico e exercício compulsivo.7 Grant et al.21 relataram que o instrumento tinha uma sensibilidade de 100% e uma especificidade de 96% com relação ao TCC, quando comparado aos critérios de McElroy et al.8

3. Comorbidade psiquiátrica

O TCC é freqüentemente comórbido com transtornos de humor e de ansiedade, transtornos de uso de substâncias e transtornos alimentares.7,9,23 Em uma relevante comparação, Lejoyeux et al. compararam compradores compulsivos deprimidos com indivíduos-controle deprimidos.28 Os compradores compulsivos tiveram significativamente mais depressão recorrente, transtorno bipolar, cleptomania, bulimia, tentativas de suicídio e abuso de benzodiazepínicos. Os indivíduos com TCC mais grave foram mais propensos a ter comorbidades dos Eixos I ou II do que os que possuem formas menos graves do transtorno.

Ainda que tenha sido proposta uma relação com o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), somente um dos quatro estudos relevantes relatou uma alta prevalência de TOC (35%) entre compradores compulsivos;8 a prevalência variou de 2% a 6% em outros estudos.7,9,29 No sentido oposto, alguns estudos encontraram que o TCC era freqüen-temente comórbido com TOC; de fato, a presença de TCC pode caracterizar um subgrupo específico (10%) de pacien-tes com TOC impulsivos.30,31 Frost et al. sugeriram que o comprar descontrolado está relacionado ao comportamento de colecionar observado entre os pacientes com TOC, sendo, portanto, um sintoma compulsivo.32 Esses pesquisadores sugerem que, da mesma forma que apostar para jogadores patológicos, pessoas com TCC sentem que perderão uma oferta se resistirem a uma compra. Esse medo tem sido comparado ao medo de perder algo potencialmente de valor relatado pelos colecionadores compulsivos.

A associação do TCC com outros transtornos do controle do impulso (TCI) também tem sido relatada,7-9,12 bem como comorbidade significativa com escoriação psicogênica, compulsão alimentar e outros comportamentos impulsivos. Os transtornos de personalidade também são comuns em pessoas com TCC, tendo os índices relatados variado entre 50% a 60%. Black et al. relataram, em um estudo com 31 pessoas com TCC, que os diagnósticos mais freqüentes do Eixo II foram transtornos borderline, anti-social e de personalidade narcisista.29 Em outro estudo, transtornos obsessivo-compulsivo, borderline e de personalidade evitativa foram os mais comuns.9

Em termos dos traços de personalidade dimensionais, Lejoyeux et al. relataram que os compradores compulsivos deprimidos tinham escores mais altos do que os compradores normais deprimidos na subescala de busca de experiências da Zuckerman Sensation Seeking Scale, assim como escores mais altos de impulsividade cognitiva, impulsividade motora, atividades não planejadas e também de escores totais na Barratt Impulsiveness Scale.12 O'Guinn e Faber relataram altos níveis de compulsividade, materialismo e fantasia, mas níveis mais baixos de auto-estima em compradores compulsivos, em comparação com compradores normais.4

4. Manifestações clínicas

Muitos compradores compulsivos descrevem seu comportamento como repetitivo, com pensamentos intrusivos sobre comprar, aos quais eles tentam resistir, geralmente sem muito êxito.7,13 Para enfrentar a natureza mista do TCC, Nataraajan e Goff propuseram dois fatores independentes: a urgência ou o desejo de comprar e o controle sobre as compras.33 Nesse esquema, os compradores compulsivos seriam representados pela grande urgência com baixo controle. Essas observações são consistentes com relatos clínicos de que os compradores compulsivos estão preocupados com comprar e gastar e exercem pouco controle sobre seus impulsos para comprar. Eles tipicamente gastam muitas horas por semana ocupados com esses comportamentos.7,9 Os compradores compulsivos geralmente demonstram um grande senso para a moda, consistente com seu intenso interesse em novos estilos e produtos de vestuário.

As pessoas com TCC freqüentemente descrevem um crescente nível de ansiedade que somente podem aliviar quando é feita uma compra.7 A experiência real de comprar é descrita como intensa por muitos indivíduos com TCC; alguns chegam até a descrever que experimentam uma sentimento sexual.9 O ato é completado com a aquisição, geralmente seguida de um sentimento de decepção ou desapontamento consigo mesmo. Os itens podem ser guardados em um armário ou sótão e não serem utilizados ou, às vezes, serem devolvidos à loja. O comportamento do comprar compulsivo ocorre durante o ano todo, ainda que alguns pacientes relatem que seu gasto excessivo ocorre em "acessos". A experiência de comprar é quase sempre solitária e, embora as compras sejam geralmente para eles mesmos, os compradores compulsivos podem gastar excessivamente em compras para seus parceiros ou cônjuges, filhos ou amigos. O TCC pode ocorrer em qualquer tipo de estabelecimento comercial, desde lojas de departamentos luxuosas a brechós ou pequenas lojinhas. Compras pela Internet e por catálogos são também populares entre os compradores compulsivos.

Miltenberger et al. relataram que as emoções negativas tais como raiva, ansiedade, tédio e pensamentos autocríticos eram os antecedentes mais comuns às compulsões de comprar em um grupo de pessoas com TCC, ao passo que euforia ou alívio das emoções negativas eram as conseqüências mais comuns.34 Lejoyeux et al. concluem que, para certas pessoas, "as compras descontroladas, como a bulimia, podem ser utilizadas como um mecanismo compensatório para os sentimentos depressivos".17 Faber conclui que o comportamento de comprar tem probabilidade de se tornar problemático quando provê um senso de reconhecimento e aceitação para pessoas com baixa auto-estima, permitindo que expressem a raiva ou a agressão, ao mesmo tempo em que lhes dão uma escapatória de monotonia de seu dia-a-dia.19

Vestuário, sapatos, jóias, maquiagem e CDs são as categorias favoritas de itens adquiridos por compradores compulsivos; alguns pacientes relatam comprar um produto baseados em sua atratividade ou porque era uma oferta. Vários escritores têm comentado sobre o significado emocional dos tipos de objetos adquiridos.9 Apesar de não serem grandes ou caros em si, os itens parecem estar direcionados a necessidades de identidade pessoal e social.35 Essa explicação para comportamentos do comprar compulsivo pode aplicar-se a algumas, mas não a todas as pessoas com TCC; um estudo relevante encontrou que a função da auto-imagem nas motivações subjacentes ao TCC estava mais diretamente vinculada às mulheres que aos homens.22

Há um amplo espectro de gravidade no TCC. Em um estudo com 44 pessoas com TCC, Black et al. encontraram maior gravidade associada a menor renda, uma menor probabilidade de um rendimento acima da mediana, e o gasto de uma menor porcentagem da renda em itens em promoção.36 Esses resultados sugerem que os transtornos de compras mais graves são encontrados em pessoas com baixa renda que têm pouca capacidade de controlar ou retardar suas urgências para fazer aquisições inapropriadas.

5. Questões socioculturais

Alguns pesquisadores do comportamento do consumidor consideram o TCC como parte de um espectro do comportamento aberrante do consumidor, que incluiria também o jogo patológico, o furto em lojas e o abuso do crédito. Dessa forma, já em 1924 Stekel propôs que o gasto compulsivo era uma forme fruste de cleptomania. Dispêndios e o uso de cartões de crédito de forma extravagante tornaram-se ícones culturais de poder e de prestígio. Esse vínculo parece ser particularmente forte em compradores compulsivos37 e as mulheres podem ser particularmente vulneráveis, pois em uma sociedade dominada pelos homens a função do crédito como uma fonte de autonomia é ressaltada para elas.

Black propôs a hipótese de que são necessários mecanismos culturais para o desenvolvimento de TCC, como provado pelo fato de que o transtorno ocorre principalmente em países desenvolvidos.23 Ele propôs a presença dos seguintes elementos para que se desenvolva o TCC: presença de uma economia de mercado, disponibilidade de uma ampla variedade de mercadorias, de uma renda disponível e de um significativo tempo de lazer.

6. Neurobiologia e genética

As teorias neurobiológicas têm-se centrado na desregulação da neurotransmissão serotonérgica, dopaminérgica ou opióide. Os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRSs) têm sido utilizados para tratar o TCC,38-40 em parte porque os pesquisadores têm notado similaridades entre o TCC e o TOC, um transtorno conhecido como respondedor a ISRSs. Os relatos de caso que sugerem benefícios do antagonista de opióide naltrexona levaram à especulação sobre a função dos receptores de opióides.41 Apesar de que essas associações alimentaram as especulações sobre os sistemas neurotransmissores subjacentes no TCC, até agora não há estudos que tenham examinado diretamente os neurotransmissores no TCC, seja por meio dos níveis plasmáticos ou dos cefalorraquidianos.

McElroy et al. relataram a primeira investigação sobre histórico familiar. De 18 pessoas com TCC, 17 tinham um ou mais familiares de primeiro grau com depressão maior, três com um transtorno de ansiedade, 11 com abuso de álcool ou substâncias e três com TCC.8 Black et al. avaliaram 137 familiares de primeiro grau de 31 compradores compulsivos; o TCC foi identificado em 13 (9,5%).29 Este estudo também relatou que, em comparação com controles, os familiares de primeiro grau de compradores compulsivos relataram significativamente mais depressão, alcoolismo e abuso de drogas. No entanto, os sintomas de TCC não foram avaliados em indivíduos-controle nesse estudo. As pequenas amostras constituem limitações importantes desses estudos. No entanto, é de se ressaltar que em ambos os estudos as freqüências de TCC relatadas entre familiares são mais altas do que os índices relatados na população geral.19 Além disso, estudos de famílias podem ajudar a clarificar as diferenças e pontos em comum entre grupos de transtornos.

Dois estudos genéticos moleculares sobre TCC foram publicados. Comings et al. encontraram uma relação significativa entre um polimorfismo na região promotora do gene receptor D1 e a associação do transtorno de Tourette ao jogo, abuso de álcool e TCC.42 Devor et al. não conseguiram encontrar uma associação ente TCC e o polimorfismo da região promotora do gene do transportador de serotonina.43 Porém, esse estudo foi realizado com uma pequena amostra que não teve o poder de detectar a associação com alelos de pequeno efeito.

7. Tratamento

1) Psicoterapia

Não há tratamento padrão para o TCC e muito do que tem sido descrito reflete a orientação teórica do autor. Há vários estudos de caso com relação ao tratamento de compradores compulsivos,6 cada um deles enfatizando a importância das experiências iniciais da vida. Mais recentemente, foram desenvolvidos modelos cognitivo-comportamentais para o TCC. Lejoyeux17 e Bernik13 sugeriram que a exposição a estímulos e prevenção de respostas pode ser útil. Bernik relatou o caso de dois pacientes com transtorno de pânico e agorafobia comórbidos e que eram responsivos a clomipramina, cujas compras descontroladas não responderam à droga. Ambos os pacientes responderam bem a 3-4 semanas de exposição a estímulos e prevenção de respostas, ainda que não tenha sido apresentado nenhum relato do acompanhamento posterior.

Modelos cognitivo-comportamentais em grupo também foram desenvolvidos. Mitchell et al. relataram que seu modelo produziu melhora significativa em comparação a uma lista de espera em um estudo piloto de 12 semanas; a melhora se manteve durante o acompanhamento de seis meses.44

2) Psicofarmacologia

McElroy et al. relataram um total de 23 compradores compulsivos tratados com antidepressivos.8,45 No primeiro relato, três indivíduos com transtornos de humor e ansiedade comórbidos tiveram remissão parcial ou total de suas compras excessivas. No último relato, 9 de 20 pacientes tratados principalmente com inibidores de recaptação da serotonina tiveram remissão parcial ou total. Dois dos nove pacientes tiveram também psicoterapia de apoio antes de tomarem antidepressivos. No entanto, em um ensaio clínico de nove semanas com fluvoxamina em compradores compulsivos, nove entre 10 pacientes melhoraram, o que sugere que os indivíduos não necessitam estar deprimidos para a melhora com um antidepressivo.38

Dois ensaios clínicos controlados aleatorizados foram realizados com TCC, ambos utilizando fluvoxamina. Ninan et al. relataram um ensaio clínico de 12 semanas com 37 indivíduos e não encontraram diferenças entre fluvoxamina e placebo em uma análise de intenção de tratar.39 Black et al. estudaram uma amostra de 23 pacientes ambulatoriais não deprimidos com TCC, que foram aleatoriamente distribuídos para fluvoxamina (n = 12) ou placebo (n = 11).46 Ao final do ensaio clínico de nove semanas, 50% dos pacientes do grupo da fluvoxamina e 64% do grupo placebo foram classificados como melhora "grande" ou "muito grande" na Escala de Melhora Clínica Global. A alta resposta ao placebo ressalta a necessidade de serem realizados mais ensaios clínicos aleatorizados controlados com períodos mais longos de acompanhamento.7,23

Koran et al. relataram os resultados de um ensaio clínico aberto com citalopram. Dezessete (71%) dos 24 pacientes inicialmente selecionados relataram estar bastante melhor nas medidas específicas do comportamento de comprar e do funcionamento global. Os respondedores a citalopram foram então incluídos em um ensaio clínico aleatorizado controlado com placebo de nove semanas.40 Os sintomas de compras compulsivas retornaram em cinco dos oito indivíduos atribuídos a placebo, em comparação a nenhum dos sete que continuaram tomando citalopram. Fazendo-se a comparação, o escitalopram demonstrou ter um efeito pequeno no TCC em um ensaio clínico de descontinuamento com desenho idêntico pelos mesmos pesquisadores.47

Grant descreveu casos em que pessoas com TCC melhoraram com naltrexona, o que sugere que os antagonistas de opiáceos poderiam ter uma função no tratamento de TCC.41

3) Outros tratamentos

Outras abordagens também têm sido descritas. Livros de auto-ajuda estão disponíveis e podem ser úteis. Os Devedores Anônimos, criado sob o padrão dos Alcoólicos Anônimos, podem ser também úteis. É um grupo voluntário, dirigido por leigos, que proporciona uma atmosfera de apoio e encorajamento mútuos para aqueles que têm dívidas substanciais. Estão disponíveis em algumas cidades dos EUA os círculos da simplicidade; esses grupos voluntários encorajam grupos de pessoas a adotar um estilo de vida simples e a abandonar seu TCC. O aconselhamento matrimonial (ou de casais) pode ser útil, especialmente quando o TCC em um membro destruiu o relacionamento. Muitas pessoas com TCC desenvolvem dificuldades financeiras e podem se beneficiar do aconselhamento financeiro.

Relato de caso

O caso seguinte ilustra as complexidades de tratar um paciente com TCC.

Simone, uma auxiliar de enfermagem de 48 anos, compareceu a fim de receber auxílio para parar com suas compras descontroladas. Ela tinha um histórico prévio de episódios depressivos maiores e uma tentativa de suicídio, mas não estava atualmente deprimida. A vergonha a tinha impedido de revelar seus comportamentos de compras aos clínicos anteriores, mas seus sintomas eram consistentes com os critérios de McElroy et al.8 Simone nunca foi capaz de economizar dinheiro e normalmente gastava toda sua renda em roupas e CDs. Como vivia só, não havia esposo ou companheiro para ajudar a monitorar seu comportamento. No entanto, ela concordou em cancelar seus cartões de crédito e sua conta bancária.

Na primeira semana do tratamento, enquanto trabalhava para controlar suas urgências de comprar, Simone relatava sentir-se irritável e com suor frio e nervosismo: "Eu sentia como se fosse uma viciada em drogas em abstinência". Ela foi educada sobre seu transtorno e conscientizada dos estímulos que pareciam provocar seus comportamentos inapropriados de compras e recebeu conselhos sobre como poderia resistir melhor a esses estímulos. Foi iniciada a psicoterapia psicodinâmica semanal. Simone ressentia-se há muito por sua mãe ter renunciado a ela para adoção com a idade de seis anos, após a morte de seu pai. Ela foi criada por uma família adotiva, mas nunca sentiu ser realmente um membro dessa família. Pouco tempo após o início do tratamento, ela localizou sua mãe biológica e reatou uma relação com ela. Para sua surpresa, sua mãe também era uma compradora compulsiva.

As relações de Simone pareciam refletir uma conexão emocional frouxa que ela tinha com os membros das duas famílias (a original e a adotiva). Na quinta sessão de terapia ela disse: "Não posso confiar nas pessoas, mas as coisas que eu compro não podem me abandonar". Quando foi revelada a substituição simbólica da companhia humana por objetos inanimados, ela vivenciou um forte sentimento de angústia que levou a um episódio de compras descontroladas. Não teve nenhuma orgia de compras nas 25 semanas restantes de tratamento. Apresentou novamente sintomas depressivos na décima sessão que responderam a fluoxetina 20 mg/dia. A paciente foi então capaz de renegociar suas dívidas.

1. Uma abordagem clínica do TCC

O caso de Simone ilustra muitas das questões enfrentadas pelos compradores compulsivos quando buscam tratamento. Apesar de ela não ter recebido inicialmente medicação, era claro que necessitava "romper" com suas compras excessivas (i.e., controle do estímulo). A terapia psicodinâmica foi então iniciada para enfrentar os processos subjacentes a suas compras descontroladas, para possibilitar que Simone desenvolvesse novas habilidades para lidar com o transtorno. Finalmente, a medicação foi prescrita para tratar de sua depressão maior comórbida.

Nesse caso, o tratamento foi útil e Simone pôde retomar o controle de seu comportamento de compras excessivas. Já que não há terapias padrão, são necessárias pesquisas para determinar a função das diferentes opções de tratamento e, em particular, se tratamentos psicossociais isolados ou combinados com medicação irão produzir os melhores resultados. Os clínicos podem considerar as seguintes recomendações de tratamento (que são baseadas principalmente na experiência clínica):

1) Primeiro, é importante uma avaliação psiquiátrica completa para descartar um transtorno bipolar e para avaliar as comorbidades psiquiátricas. Nesse ponto, as técnicas motivacionais podem ser úteis para que as intervenções subseqüentes sejam produtivas;

2) A seguir, comece com o controle do estímulo de forma que o paciente se acalme e se engaje em tratamento adicional;

3) A exposição progressiva ao estímulo e a prevenção de respostas podem ajudar a prevenir recaídas provocadas por desencadeantes de compras;

4) A abordagem de terapia cognitivo-comportamental clássica com reestruturação cognitiva, treinamento de habilidades e prevenção de recaídas ajuda a estabilizar os ganhos iniciais;

5) Se a fissura persistir, a medicação antifissura (ISRS, naltrexona) pode auxiliar;

6) As técnicas psicodinâmicas podem consolidar ganhos terapêuticos, explorando conflitos subjacentes que podem ter provocado o transtorno.

A avaliação dos pacientes em risco de TCC (e.g. pacientes com dependências ou outros transtornos do controle do impulso, mulheres deprimidas) deve estimular investigações sobre compras ou gastos excessivos ou descontrolados. As conseqüências potenciais do TCC são suficientemente graves para que os pacientes com essa condição mereçam ser avaliados e tratados.

Discussão

1. TCC e jogo patológico: têm relação entre si?

O TCC tem vários pontos em comum com o jogo patológico: 1) O TCC afeta principalmente adultos jovens e é provavelmente desencadeado pela passagem à idade adulta e pelo maior acesso ao dinheiro; 2) a ocorrência de compras descontroladas de início precoce parece estar relacionada a uma "síndrome de comportamento problemático geral", da mesma forma como identificado para jogo na adolescência; 3) muitos aspectos similares de personalidade são comuns a ambas as condições, particularmente a impulsividade;12 4) o TCC e o jogo patológico compartilham perfis de comorbidade similares, classificados em quatro grupos principais: transtornos de humor, transtornos de ansiedade, transtornos de uso de substâncias e outros transtornos do controle do impulso;5 5) o fato de que o comportamento de compras compulsivas é relativamente freqüente entre os jogadores patológicos e vice-versa9 é uma evidência a favor de uma relação; 6) ainda que os padrões para o tratamento de TCC ainda não tenham sido estabelecidos, da mesma forma que para o jogo patológico, a abordagem geral tende a envolver terapias cognitivo-comportamentais e terapias psicodinâmicas, juntamente com medicação psicotrópica, especialmente inibidores de recaptação da serotonina; 7) tanto o TCC como o jogo patológico parecem se encaixar na teoria de Jacob,48 em que o paciente se torna dependente de uma substância ou de um comportamento quando sua atuação proporciona alívio para uma auto-identidade danificada.

A distribuição de gênero parece ser uma das principais diferenças entre as síndromes: no jogo patológico predominam os homens, de forma oposta ao que ocorre com mulheres no TCC. Uma possível explicação é que a expressão de uma tendência em direção à desinibição comportamental e ao engajamento em atividades auto-recompensatórias é moldada pelas expectativas de gênero da sociedade.

2. TCC: reação impulsiva, atividade de fuga-alívio ou algo distinto?

O TCC e o jogo patológico podem formar parte de um espectro impulsivo-compulsivo.8,16 De acordo com essa linha, alguns autores consideram o TCC como uma expressão comportamental de um traço de personalidade. Dependendo das circunstâncias, esses traços podem se expressar como um estilo de lazer prazeroso, como uma busca de excitação mal-adaptativa ou como uma estratégia de lidar com o estresse. De acordo com essa visão, os sintomas de compras descontroladas não se constituem em uma verdadeira comorbidade, mas são marcadores de impulsividade. De forma consistente com essa visão estão os resultados de um estudo analítico fatorial de Gerbing et al., que encontraram que os itens que avaliam compras impulsivas (i.e., não planejadas) tiveram grande relação com um fator de impulsividade geral.49 Lejoyeux et al., como já mencionado, demonstraram que as pessoas deprimidas com TCC tiveram escores dimensionais de impulsividade mais altos do que pessoas deprimidas sem TCC.12 E, apesar de que a relação do TCC com o TOC permanece incerta, as evidências a favor de uma relação com a impulsividade sobrepujam as evidências de sua relação com a compulsividade.

A natureza ego-sintônica do TCC e sua relação com o prazer,17 além de ser freqüentemente comórbida com transtornos do controle do impulso, também sugere que o TCC poderia se encaixar melhor nessa categoria. Esses transtornos (e.g., jogo patológico, cleptomania, piromania, tricotilomania) são unificados pelo fato de que cada um deles envolve decisões voluntárias de se engajar em comportamentos geralmente prazerosos, freqüentemente em resposta a uma urgência irresistível. Faber observou que esses comportamentos geralmente se tornam uma "forma primária de fugir do estresse ou de situações desagradáveis".50 Apesar de serem inicialmente gratificantes, os comportamentos começam, em última análise, a interferir no funcionamento da vida normal.

3. TCC e os transtornos de dependência e de humor

A similaridade com os transtornos de dependências já foi apontada.17 Glatt e Cook descreveram um caso de uma mulher com TCC que relatava sentir-se eufórica ao adquirir novos bens, o que se seguia por depressão e culpa.15 Esses sintomas parecem ser consistentes com a visão de alguns autores de que as compras compulsivas constituem uma dependência, mesmo que nenhuma substância tenha sido injetada ou ingerida. Portanto, o conceito de um "vício comportamental" é aplicável, em que um comportamento (e.g., comprar, jogar, fazer sexo) produz a mesma cascata de problemas que as substâncias rotineiramente produzem. Por exemplo, nessas situações, o comportamento se torna crescentemente importante para a pessoa, que tenta controlá-lo apesar de suas conseqüências adversas. Além disso, o comportamento proporcio-na alívio de efeitos negativos e há um sentimento de agitação ou irritação quando se tenta restringi-lo.

Outros pesquisadores têm salientado que o TCC ocorre em resposta a transtornos de humor, principalmente depressão, e que o seu tratamento provavelmente suprime as compras descontroladas.17 As evidências a favor de uma relação com os transtornos de humor incluem o fato que os compradores compulsivos possuem escores elevados no Inventário de Depressão de Beck, comparados aos compradores normais.7 Mesmo que o TCC seja associado a estados negativos de humor e que a presença de TCC comórbido com depressão pareça identificar indivíduos com psicopatologia mais grave, é improvável que as compras descontroladas sejam uma forma mal-adaptativa de lidar com depressão, pois elas podem ser observadas na ausência de sintomas de humor.38

4. Pesquisas futuras

Os critérios de McElroy et al. têm sido amplamente aceitos, ainda que não tenha havido esforços para examinar sua confiabilidade e validade.8 Além da Minnesota Impulsive Disorders Interview, não há entrevistas estruturadas aceitas para diagnosticar o comprar compulsivo e outros transtornos do controle do impulso. Mais pesquisas são necessárias para clarificar o papel desse e de instrumentos que potencialmente compitam com ele, bem como outros instrumentos de classificação, incluindo a ECC e a versão para compras da Escala Obsessivo-Compulsiva de Yale-Brown. A prevalência de TCC precisa ser estudada em mais amostras não-enviesadas e a presença de TCC deve ser vinculada a avaliações funcionais, de forma que se possa determinar a extensão de sua interferência em importantes domínios da vida. A distribuição de gênero precisa ser esclarecida, assim como sua verdadeira relação com transtornos psiquiátricos comórbidos. Por exemplo, a depressão maior precede o início de TCC ou vice-versa? Mais estudos são necessários para clarificar a inter-relação do TCC, jogo patológico e outros comportamentos descontrolados (e.g., comportamento sexual compulsivo, uso compulsivo do computador), a fim de determinar se há alguma validade para o conceito de "dependências comportamentais". Não há bons dados sobre o curso longitudinal do TCC e os estudos de acompanhamento ajudariam nesse aspecto. Estudos neurobiológicos, incluindo a genética molecular, exames de imagens cerebrais, investigações neuropsicológicas e psicofisiológicas poderiam auxiliar a delinear o processo pelo qual se adquire e desenvolve o hábito de comprar descontroladamente.

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: A Unidade Ambulatorial de Jogo recebeu apoio das seguintes companhias farmacêuticas: Lundbeck, Servier, Janssen-Cilag e Roche. Prof. Tavares foi membro palestrante da Janssen-Cilag.

Referências bibliográficas

  • 1. Kraepelin E. Psychiatrie 8th ed. Leipzig: Verlag Von Johann Ambrosius; 1915. p. 409.
  • 2. Bleuler E. Textbook of Psychiatry New York (NY): McMillan; 1924.
  • 3. Esquirol JE. Des maladies mentales Paris: Baillière; 1838.
  • 4. O'Guinn TC, Faber RJ. Compulsive buying: a phenomenological exploration. J Consumer Res 1989;16:147-57.
  • 5. Elliott R. Addictive consumption: function and fragmentation in post-modernity. J Consumer Policy 1994;17(2):159-79.
  • 6. Krueger DW. On compulsive shopping and spending: a psychodynamic inquiry. Am J Psychother 1988;42(4):574-84.
  • 7. Christenson GA, Faber RJ, de Zwaan M, Raymond NC, Specker SM, Ekern MD, Mackenzie TB, Crosby RD, Crow SJ, Eckert ED. Compulsive buying: descriptive characteristics and Psychiatric comorbidity. J Clin Psychiatry 1994;55(1):5-11.
  • 8. McElroy SL, Keck PE Jr, Pope HG Jr, Smith JM, Strakowski SM. Compulsive buying: a report of 20 cases. J Clin Psychiatry 1994;55(6):242-8.
  • 9. Schlosser S, Black DW, Repertinger S, Freet D. Compulsive buying. Demography, phenomenology, and comorbidity in 46 subjects. Gen Hosp Psychiatry 1994;16(3):205-12.
  • 10. Valence G, D'Astous A, Fortier L. Compulsive buying: concept and measurement. J Cons Policy 1988;11:419-33.
  • 11. Scherhorn G, Reisch LA, Raab G. Addictive buying in West Germany: an empirical study. J Consumer Policy 1990;13(4):355-87.
  • 12. Lejoyeux M, Tassain V, Solomon J, Ades J. Study of compulsive buying in depressed patients. J Clin Psychiatry 1997;58(4):169-73.
  • 13. Bernik MA, Akerman D, Amaral JA, Braun RC. Cue exposure in compulsive buying. J Clin Psychiatry 1996;57(2):90.
  • 14. Kacen JJ, Lee JA. The influence of culture on consumer impulsive buying behavior. J Consumer Psychol. 2002;12(2):163-76.
  • 15. Glatt MM, Cook CC. Pathological spending as a form of psychological dependence. Br J Addict 1987;82(11):1257-8.
  • 16. Hollander E, Kwon JH, Stein DJ, Broatch J, Rowland CT, Himelein CA. Obsessive-compulsive and spectrum disorders: overview and quality of life issues. J Clin Psychiatry 1996;57(Suppl 8):3-6.
  • 17. Lejoyeux M, Ades J, Tassain V, Solomon J. Phenomenology and psychopathology of uncontrolled buying. Am J Psychiatry 1996;153(12):1524-9.
  • 18. Lee S, Mysyk A. The medicalization of compulsive buying. Soc Sci Med 2004;58(9):1709-18.
  • 19. Faber RJ, O'Guinn TC. A clinical screener for compulsive buying. J Consumer Res 1992;19:459-69.
  • 20. Koran LM, Faber RJ, Aboujaoude E, Large MD, Serpe RT. Estimated prevalence of compulsive buying in the United States. Am J Psychiatry 2006;163(10):1806-12.
  • 21. Grant JE, Levine L, Kim D, Potenza MN. Impulse control disorders in adult psychiatric inpatients. Am J Psychiatry 2005;162(11):2184-8.
  • 22. Dittmar H, Drury J. Self-imageis it in the bag? A qualitative comparison between "ordinary" and "excessive" consumers. J Econ Psychol 2000;21(2):109-42.
  • 23. Black DW. Compulsive buying disorder: definition, assessment, epidemiology and clinical management. CNS Drugs 2001;15(1):17-27.
  • 24. Roberts JA, Tanner JF Jr. Compulsive buying and sexual attitudes, intentions, and activity among adolescents: an extension of Roberts and Tanner (2000). Psychol Rep 2002;90(3 Pt 2):1259-60.
  • 25. Aboujaoude E, Gamel N, Koran LM. A 1-year naturalistic following of patients with compulsive shopping disorder. J Clin Psychiatry 2003;64(8):946-50.
  • 26. Edwards EA. Development of a new scale to measure compulsive buying behavior. Fin Counsel Plan 1993;4:67-84.
  • 27. Monahan P, Black DW, Gabel J. Reliability and validity of a scale to measure change in persons with compulsive buying. Psychiatry Res 1996;64(1):59-67.
  • 28. Lejoyeux M, Haberman N, Solomon J, Ades J. Comparison of buying behavior in depressed patients presenting with or without compulsive buying. Compr Psychiatry 1999;40(1):51-6.
  • 29. Black DW, Repertinger S, Gaffney GR, Gabel J. Family history and psychiatric comorbidity in persons with compulsive buying: preliminary findings. Am J Psychiatry 1998;155(7):960-3.
  • 30. du Toit PL, van Kradenburg J, Niehaus D, Stein DJ. Comparison of obsessive-compulsive disorder patients with and without comorbid putative obsessive-compulsive spectrum disorders using a structured clinical interview. Compr Psychiatry 2001;42(4):291-300.
  • 31. Hantouche EG, Lancrenon S, Bouhassira M, Ravily V, Bourgeois ML. Repeat evaluation of impulsiveness in a cohort of 155 patients with obsessive-compulsive disorder: 12 months prospective follow-up. Encephale 1997;23(2):83-90.
  • 32. Frost RO, Kim HJ, Morris C, Bloss C, Murray-Close M, Steketee G. Hoarding, compulsive buying and reasons for saving. Behav Res Ther. 1998;36(7-8):657-64.
  • 33. Nataraajan R, Goff BG. Compulsive buying: toward a reconceptualization. J Soc Behav Person 1991;6(6):307-28.
  • 34. Miltenberger RG, Redlin J, Crosby R, Stickney M, Mitchell J, Wonderlich S, Faber R, Smyth J. Direct and retrospective assessment of factors contributing to compulsive buying. J Behav Ther Exp Psychiatry. 2003;34(1):1-9.
  • 35. Dittmar H, Beattie J, Friese S. Objects, decision considerations and self-image in men's and women's impulse purchases. Acta Psychol (Amst). 1996;93(1-3):187-206.
  • 36. Black DW, Monahan P, Schlosser S, Repertinger S. Compulsive buying severity: an analysis of Compulsive Buying Scale results in 44 subjects. J Nerv Ment Dis 2001;189(2):123-6.
  • 37. Hanley A, Wilhelm MS. Compulsive buying: an exploration into self-esteem and money attitudes. J Econ Psychol 1992;13(1):5-18.
  • 38. Black DW, Monahan P, Gabel J. Fluvoxamine in the treatment of compulsive buying. J Clin Psychiatry. 1997;58(4):159-63.
  • 39. Ninan PT, McElroy SL, Kane CP, Knight BT, Casuto LS, Rose SE, Marsteller FA, Nemeroff CB. Placebo controlled study of fluvoxamine in the treatment of patients with compulsive buying. J Clin Psychopharmacol 2000;20(3):362-6.
  • 40. Koran LM, Chuang HW, Bullock KD, Smith SC. Citalopram for compulsive shopping disorder: an open-label study followed by a double-blind discontinuation. J Clin Psychiatry 2003;64(7):793-8.
  • 41. Grant JE. Three cases of compulsive buying treated with naltrexone. Int J Psychiatry Clin Prac 2003;7:223-5.
  • 42. Comings DE, Gade R, Wu S, Chiu C, Dietz G, Muhleman D, Saucier G, Ferry L, Rosenthal RJ, Lesieur HR, Rugle LJ, MacMurray P. Studies of the potential role of the dopamine D1 receptor gene in addictive behaviors. Mol Psychiatry 1997;2(1):44-56.
  • 43. Devor EJ, Magee HJ, Dill-Devor RM, Gabel J, Black DW. Serotonin transporter gene (5-HTT) polymorphisms and compulsive buying. Am J Med Gen 1999;88(2):123-5.
  • 44. Mitchell JE, Burgard M, Faber R, Crosby RD, de Zwaan M. Cognitive behavioral therapy for compulsive buying disorder. Behav Res Ther 2006;44(12):1859-65.
  • 45. McElroy SL, Sakin A, Pope HG Jr. Treatment of compulsive shopping with antidepressants: a report of three cases. Ann Clin Psychiatry 1991;3:199-204.
  • 46. Black DW, Gabel J, Hansen J, Schlosser S. A double-blind comparison o fluvoxamine versus placebo in the treatment of compulsive buying disorders. Ann Clin Psychiatry 2000;12(4):205-11.
  • 47. Koran LM. Escitalopram treatment evaluated in patients with compulsive shopping disorder. Primary Psychiatry 2005;12:13.
  • 48. Jacobs DF. A general theory of addictions: Rationale for and evidence supporting a new approach for understanding and treating addictive behaviors. In: Shaffer HJ, Stein SA, Gambino B, Cummings TN, editors. Compulsive gambling: Theory, research, and practice Lexington (MA): Lexington Books/D.C. Heath and Company; 1989. p. 35-64.
  • 49. Gerbing DW, Ahadi SA, Patton JH. Toward a conceptualization of impulsivity: components across the behavioral and self-report domains. Multivariate Behav Res 1987;22(3):357-79.
  • 50. Faber RJ. Money changes everything: compulsive buying from a biopsychosocial perspective. Am Behav Sci 1992;35(6):809-19.
  • Correspondência:
    Hermano Tavares
    Rua Purpurina 155, cjs. 126/128
    05435-030, São Paulo, SP, Brasil
    Tel/fax: (55 11) 3814-3920
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Maio 2008
    location_on
    Associação Brasileira de Psiquiatria Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1, 04039-032 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5081-6799, Fax: +55 11 3384-6799, Fax: +55 11 5579-6210 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: editorial@abp.org.br
    rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
    Acessibilidade / Reportar erro