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Automutilação ocular: relato de seis casos de enucleação ocular

Self-mutilation: report of six cases of enucleation

Resumos

No presente trabalho são relatados seis casos de pacientes que cometeram auto-enucleação (cinco unilaterais e uma bilateral), acompanhados no serviço de psiquiatria do Hospital das Clínicas da Unicamp nos últimos dez anos. Além disso, é feita uma revisão da literatura relacionada a esse tipo de comportamento, considerado a forma mais grave e dramática de automutilação ocular. A partir da discussão crítica comparativa entre os aspectos clínicos de cada caso relatado e os dados encontrados na literatura, concluímos que se mostram associados à auto-enucleação: pacientes esquizofrênicos que cometeram a autolesão durante episódios psicóticos agudos, fortes elementos religiosos como parte da psicopatologia, evidências de comportamento automutilatório menos grave antes da auto-enucleação e explicação do ato como relacionado a uma suposta salvação do próprio paciente ou do mundo. Algumas outras características mais específicas de nossos casos também são destacadas: longo tempo de evolução da doença no momento da auto-enucleação; crenças religiosas variando entre três diferentes igrejas cristãs (Católica, Evangélica e Testemunhas de Jeová); presença de uma forma não usual de auto-enucleação com uso de arma de fogo e presença de um caso de auto-enucleação bilateral.

Auto-enucleação; Automutilação; Religião; Esquizofrenia


Six cases of self-inflicted ocular mutilation (five unilateral and one bilateral) were seen and treated at a university hospital in the last ten years. The literature on ocular self-mutilations was also reviewed. Self-enucleation is considered one of the most severe and dramatic forms of self-mutilation. After comparing these patients' clinical and psychopathological data with the literature on ocular self-enucleation, it was concluded that: 1. It is more frequent in schizophrenic patients during acute episodes; 2. Symptoms with a strong religious content are very important; 3. Less severe forms of self-mutilation before self-enucleation are common and; 4. In many patients, self-enucleation is associated with magic beliefs related to sin, and world or personal redemption. There were other interesting aspects seen in these patients: most episodes of self-enucleation were performed many years after the beginning of the mental illness, one case of atypical ocular self-mutilation (with a gun), and a case of bilateral self-enucleation.

Self-enucleation; Self-mutilation; Religion; Schizophrenia


relato de caso

Automutilação ocular: relato de seis casos de enucleação ocular

Self-mutilation: report of six cases of enucleation

Marcelo G Nucci e Paulo Dalgalarrondo

Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da FCM/Unicamp

Resumo

No presente trabalho são relatados seis casos de pacientes que cometeram auto-enucleação (cinco unilaterais e uma bilateral), acompanhados no serviço de psiquiatria do Hospital das Clínicas da Unicamp nos últimos dez anos. Além disso, é feita uma revisão da literatura relacionada a esse tipo de comportamento, considerado a forma mais grave e dramática de automutilação ocular.

A partir da discussão crítica comparativa entre os aspectos clínicos de cada caso relatado e os dados encontrados na literatura, concluímos que se mostram associados à auto-enucleação: pacientes esquizofrênicos que cometeram a autolesão durante episódios psicóticos agudos, fortes elementos religiosos como parte da psicopatologia, evidências de comportamento automutilatório menos grave antes da auto-enucleação e explicação do ato como relacionado a uma suposta salvação do próprio paciente ou do mundo. Algumas outras características mais específicas de nossos casos também são destacadas: longo tempo de evolução da doença no momento da auto-enucleação; crenças religiosas variando entre três diferentes igrejas cristãs (Católica, Evangélica e Testemunhas de Jeová); presença de uma forma não usual de auto-enucleação com uso de arma de fogo e presença de um caso de auto-enucleação bilateral.

Descritores

Auto-enucleação. Automutilação. Religião. Esquizofrenia.

Abstract

Six cases of self-inflicted ocular mutilation (five unilateral and one bilateral) were seen and treated at a university hospital in the last ten years. The literature on ocular self-mutilations was also reviewed. Self-enucleation is considered one of the most severe and dramatic forms of self-mutilation. After comparing these patients' clinical and psychopathological data with the literature on ocular self-enucleation, it was concluded that: 1. It is more frequent in schizophrenic patients during acute episodes; 2. Symptoms with a strong religious content are very important; 3. Less severe forms of self-mutilation before self-enucleation are common and; 4. In many patients, self-enucleation is associated with magic beliefs related to sin, and world or personal redemption. There were other interesting aspects seen in these patients: most episodes of self-enucleation were performed many years after the beginning of the mental illness, one case of atypical ocular self-mutilation (with a gun), and a case of bilateral self-enucleation.

Keywords

Self-enucleation. Self-mutilation. Religion. Schizophrenia.

Introdução

A auto-enucleação (extração do próprio olho) é um dos comportamentos de automutilação mais graves observados em pacientes com transtornos mentais. Descrições de automutilações oculares são quase tão antigas quanto os registros da civilização ocidental. O mais famoso caso envolvendo auto-enucleação é o de Édipo, personagem da peça de Sófocles "Édipo Rei",1 que arrancou seus próprios olhos após saber que havia assassinado seu pai e se casado com sua mãe. Gerhard2 chegou a propor que o termo "edipismo" fosse utilizado para referir-se aos casos de automutilação ocular e, mais propriamente, aos casos de auto-enucleação.

Algumas passagens bíblicas fazem menção à automutilações e, especificamente, à relação entre os olhos e o pecado. Assim, Mateus, 6: 22-23:3 "A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz. Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso...".

Outra passagem, freqüentemente citada pelos próprios pacientes após cometerem auto-enucleação, encontra-se em Mateus, 5:29:3 "Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti, pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno".

O apóstolo Marcos é ainda mais incisivo ao referir-se ao tema em seu evangelho:3 "Se o teu olho é ocasião de escândalo para você, arranque-o. É melhor você entrar no Reino de Deus com um olho só, do que ter os dois olhos jogados no inferno, onde o seu verme nunca morre e o seu fogo nunca se apaga". (Marcos, 9:47)

Duke-Elder,4 o grande tratadista da oftalmologia, lembra que na tradição cristã, três santas que perderam a vista por pensamentos ou atitudes pecaminosas são consideradas pelos fiéis como "protetoras" dos olhos: Santa Lúcia de Siracusa, Santa Triduana e Santa Medana. Santa Lucia de Siracusa, por exemplo, arrancou seus olhos após experimentar uma tentação sexual, entregando-os para o autor da tentação, dizendo-lhe que a deixasse em paz. Na mitologia germânica, Odin sacrificou um de seus olhos para adquirir sabedoria.5 Entre os gregos, Tiresias perdeu a visão por observar Minerva banhando-se, tendo porém, posteriormente, voltado a enxergar.6 Tapper et al,7 citam como Marco Polo, visitando Bagdad no século XIII, ouviu a história de um sapateiro que arrancou seu olho direito após uma tentação sexual quando ajudava uma jovem mulher a se calçar.

No século XIX, com a expansão da literatura médica, iniciaram-se os relatos científicos acerca das automutilações oculares. O primeiro caso documentado – Bergman8 – envolvia uma mulher de 43 anos, na época apresentada como sofrendo de "delírio místico" e que justificava sua auto-enucleação citando Mateus 5:29. Até 1968, apenas outros nove casos referentes a auto-enucleações foram relatados na literatura psiquiátrica. Desde então, estudos acerca do comportamento automutilatório e particularmente das automutilações oculares e genitais têm merecido um crescente destaque.

Num trabalho publicado em 1989,9 verificou-se que, incluindo o relato de Bergman, cerca de 85 casos de automutilação ocular grave foram relatados na literatura médica. Desse total, 55 (64%) eram tentativas de auto-enucleação, sendo que 46 delas (83%) foram completadas. Destas 46, quinze (32%) referiam-se a auto-enucleações bilaterais e quatro das tentativas referiam-se a auto-enucleações bilaterais que resultaram na perda de apenas um dos olhos. Em 64 do total de 85 casos revisados havia referência ao sexo do paciente: 38 (59%) homens e 26 (41%) mulheres. Em relação aos diagnósticos, 37 (43%) dos 85 casos não traziam referências quanto ao diagnóstico psiquiátrico subjacente. Dos outros 58 casos restantes, 29 (50%) eram diagnosticados como esquizofrênicos, 13 casos (22%) envolviam abuso de drogas (desses 13 casos, 12 apresentavam co-morbidade com esquizofrenia), 6 (10%) referiam-se a casos de retardo mental, além de 2 (3%) pacientes em fase maníaca e 3 casos (5%) com diagnóstico de intoxicação aguda por álcool. Os casos restantes apresentavam uma grande variedade de diagnósticos, a maioria dos quais não mais utilizados. Do total de pacientes, 34 (40%) tinham razões religiosas para a realização do ato automutilatório, incluindo-se aqui 23 (67%) esquizofrênicos. Além disso, 21 (24%) pacientes apresentavam algum motivo relacionado à sexualidade como justificativa para a lesão ocular.

Desde 1989, vários outros trabalhos têm sido publicados trazendo relatos adicionais de automutilações oculares graves. A Tabela 1 sumariza alguns estudos referentes à forma mais grave de automutilação ocular (auto-enucleação) publicados nas últimas décadas.

Em nosso serviço psiquiátrico (HC-Unicamp), seis pacientes que cometeram auto-enucleação foram acompanhados nos últimos dez anos, sendo que em um dos casos o paciente cometeu auto-enucleação bilateral (caso 6). Em outro caso, o paciente cometeu uma forma bizarra de auto-enucleação utilizando uma arma de fogo (caso 5). Dos seis pacientes, quatro deles receberam o diagnóstico de esquizofrenia paranóide, um de esquizofrenia residual e o último de transtorno delirante. Todos os nossos pacientes eram do sexo masculino, com idade variando de 29 a 57 anos. Dois deles tinham histórias de automutilações menos graves previamente à auto-enucleação e todos, à exceção de um (caso 2), apresentavam significativos sintomas religiosos (alucinações e delírios de conteúdo místico-religioso) como parte do quadro psicopatológico. Além disso, dois deles referiam-se especificamente à citação de Mateus 5:29 como justificativa para a auto-enucleação. A Tabela 2 resume as principais características dos seis casos apresentados.

Relato de casos

Caso 1

JS, masculino, 44 anos, solteiro, cristão, segundo ele da "Igreja de Jesus", com antecedentes de educação religiosa bastante rígida, tendo sido o pai pastor protestante. Aos 28 anos, ao estar cursando o terceiro ano do curso de medicina, começou a apresentar alterações de comportamento como desfazer-se de seus pertences e ficar o dia todo pregando a Bíblia. Começou a dizer que "tinha que ir a Jerusalém tentar converter os judeus ao cristianismo" porque estava recebendo "mensagens de Deus para salvar o mundo". Passou também a apresentar comportamento hetero e auto-agressivo (cortava o próprio braço com facas e giletes). Desde o início do quadro teve três internações psiquiátricas de longa duração, além de manter cronicamente alterações significativas do pensamento, do afeto e do comportamento pessoal. Nos últimos cinco anos vivia num hospital psiquiátrico relativamente bem controlado de seus sintomas usando enantato de flufenazina (duas ampolas de 25mg via intramuscular/mês). Nos últimos meses, entretanto, vinha apresentando piora, refratária ao uso de diferentes neurolépticos em doses altas. Sua aparência nos anos imediatos que precederam a auto-enucleação é digna de nota; alto, de barbas negras e longas, olhar e voz penetrante, quase sempre vestido de branco, assemelhando-se, de fato, à imagem de Cristo ou a de um santo. Sua temática, de um modo geral, era predominantemente religiosa. Trazido ao nosso serviço após cometer auto-mutilação ocular (arrancou seu olho direito com as mãos), chegou com o globo ocular preso à face apenas pelo nervo óptico. Seu estado era de êxtase e, apesar da dor intensa, referia estar muito feliz. Inquirido sobre a razão da auto-enucleação, dizia apenas que "Deus queria que fosse assim", manifestando ainda o desejo de que lhe entregassem o olho "para ficar guardado". Citava ainda Mateus 5:29 e afirmava o desejo de cortar também sua mão direita (como também descrito em Mateus 5:30 e Marcos 9:43).

Caso 2

AA, masculino, 57 anos, solteiro, católico não praticante. Paciente com diagnóstico de esquizofrenia residual, história de início da doença há mais de trinta anos. Abandonado pela família, morando numa ala de crônicos de um hospital psiquiátrico da região há mais de dez anos. Foi trazido ao pronto-socorro de nosso serviço após cometer ato automutilatório ocular (arrancou seu olho esquerdo com as próprias mãos). Perguntado sobre o ato, dizia que sem o olho iria "viver mais" e que no momento da auto-agressão estava pensando em seus pais, sentindo-se culpado porque eles "queriam que eu trabalhasse mas eu nunca trabalhei". No exame psíquico apresentava-se desorientado no tempo, afetivamente distante, apático, com pensamento empobrecido e volição diminuída. Negava alterações de senso-percepção, apresentando porém comportamento de fala e risos imotivados.

Caso 3

RBS, masculino, 39 anos, solteiro, católico praticante. Paciente com diagnóstico de esquizofrenia paranóide desde os 20 anos de idade. História de sintomas de irritabilidade e heteroagressividade desde o início do quadro com perda progressiva de contatos afetivos e sociais, idéias de perseguição, alucinações auditivas de conteúdo religioso (dizia ouvir a "voz de Deus") e comportamento bizarro (trazia lixo e objetos velhos que encontrava na rua para casa). Apresentava uma evolução da doença bastante ruim, tendo mais de dez internações psiquiátricas devido à intensificação desses sintomas, principalmente do comportamento heteroagressivo. Foi trazido ao nosso serviço após automutilação ocular grave (tentou arrancar o olho direito com as mãos). No momento da avaliação psiquiátrica inicial apresentava-se francamente psicótico, dizia estar obedecendo "às ordens de Deus", repetia palavras isoladas como "salvação" e "paraíso", além de manifestar alterações sensoperceptivas compatíveis com alucinações auditivas.

Caso 4

ORM, masculino, 31 anos, solteiro, presbiteriano (há dois anos estava freqüentando a "Igreja Testemunhas de Jeová"). Paciente com história de início dos sintomas aos 17 anos de idade: delírios religiosos e de referência, comportamento alterado incluindo hetero e auto-agressividade (batia a cabeça contra a parede, queimava-se com cigarros), alucinações auditivas com conteúdo religioso (vozes comentavam que ele "estava no inferno" e que "é justo que as pessoas sofram muito aqui para poderem ir para o céu"). Antecedente de várias internações psiquiátricas desde então, sempre mantendo os sintomas do início do distúrbio e um quadro dramático de auto-agressões repetidas; falava que "precisava sofrer muito para aliviar um pouco o sofrimento dos outros". Nessas internações, constantemente apresentava um quadro concomitante de insinuações e convites para que outros pacientes ou enfermeiros do sexo masculino tivessem atos sexuais com ele. Dizia que nunca havia tido relações heterosexuais porque as mulheres quando se aproximavam dele "se transformavam no Satanás". Encaminhado ao nosso serviço após cometer um ato de automutilação ocular grave (arrancou o olho esquerdo com as próprias mãos), justificando seu comportamento dizendo que "não estava mais agüentando ver o fogo do inferno" e que "precisava livrar o mundo dos pecados". Além disso, afirmava que praticou a auto-enucleação obedecendo Mateus, 5:29. Foi reencaminhado ao hospital psiquiátrico de origem, onde praticamente vivia, permanecendo internado naquele hospital por cerca de um ano. Voltou então a apresentar idéias e planos de arrancar o outro olho. Foi novamente trazido para nossa enfermaria, tendo-se introduzido clozapina (300 mg/dia). Após cinco a seis semanas de uso de clozapina, apresentou melhora marcante de suas alucinações e delírios, podendo passar a viver normalmente com os pais e a ser tratado em regime de hospital-dia (mantendo-se nesta condição terapêutica há mais de um ano).

Caso 5

JPS, masculino, 29 anos, solteiro, dizia ser "evangélico" porém não freqüentava nenhuma igreja. Paciente com história de duas internações psiquiátricas anteriores (há dez e três anos, respectivamente), em ambas apresentando intensos sintomas paranóides, irritação, agressividade e a descrição de estar tendo "visões bíblicas". Nessas ocasiões, referia ter a percepção de interagir com personagens bíblicos (Adão, Eva, Moisés, Jesus, etc.), podendo vê-los e ouví-los. Dizia assim "conhecer" esses vários personagens bíblicos, contando que, por exemplo, Adão é "um homem alto, moreno, parecido comigo". Apresentava ainda, muito medo de "uma cobra roxa" e dos "homens com metralhadoras" que estariam querendo matá-lo. No início do quadro (antes da primeira internação), apresentou episódio de auto-mutilação ocular, dizendo que "precisava provocar um ferimento que fosse grave" porque "estava sofrendo muito". Assim, pegou uma espingarda e deu um tiro em seu olho direito. Foi internado, seu olho direito enucleado, e então transferido para um hospital psiquiátrico onde recebeu o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Trazido para nosso hospital universitário por apresentar piora do quadro paranóide e agitação psicomotora sem, no entanto, manifestar comportamento automutilatório nos últimos anos.

Caso 6 (Auto-enucleação bilateral)

RP, masculino, 43 anos, casado, duas filhas, professor universitário (matemático e físico teórico). A avó materna apresentou quadro esquizofrênico crônico. Refere ser cristão, embora não freqüente nenhuma congregação religiosa. De modo geral, afirmava ser interessado em temas religiosos e espirituais. Apesar do paciente não ter qualquer história de episódio psiquiátrico grave ou tratamento psiquiátrico anterior, tratava-se de um indivíduo considerado estranho pelos colegas de trabalho por defender teorias físicas não usuais sobre a origem do universo e da vida. É descrito por familiares como sendo uma pessoa tímida, retraída, mas muito cordial e dedicado ao trabalho. No período da auto-enucleação bilateral estava realizando pós-doutorado em física teórica numa universidade européia. Alguns dias antes da auto-enucleação passou a apresentar-se ansioso, inquieto e muito preocupado. Trancou-se então num quarto e depois de muitas horas de isolamento a esposa chamou os vizinhos que arrombaram a porta e o encontraram já auto-enucleado. Após a enucleação cirúrgica foi avaliado por um psiquiatra que diagnosticou uma "psicose reativa aguda". Foi medicado com haloperidol, 5 mg ao dia e em poucos dias não se encontrava mais em estado psicótico. Passou a ficar deprimido e arrependido pelo que fez. Algumas semanas após a auto-enucleação, retornou ao Brasil, sendo encaminhado ao nosso serviço. O paciente nos relatou que cometeu a auto-enucleação pois vinha desenvolvendo uma fórmula matemática que propiciava uma nova e revolucionária compreensão da origem do universo e da vida e que contestava uma das teorias de Einstein. Ao desenvolver suas fórmulas matemáticas, passou a notar que elas explicavam a origem do universo excluindo a existência de Deus. Ao notar isso, passou a pensar que o demônio deveria estar agindo sobre ele. Como não "via" a presença de Deus em seu modelo do universo, passou a pensar que o demônio deveria estar alojado em seus olhos. Por isso, refere que resolveu arrancar os próprios olhos para "livrar-se" do demônio, lançá-lo fora de seu corpo.

O paciente nos fez esse relato cerca de um mês após o ocorrido. Não demonstrava uma crítica completa em relação às suas vivências psicóticas; dizia-se arrependido pelo que fez, que tudo havia sido algo terrível e impulsivo, mas continuava afirmando a veracidade e a plausibilidade de seu modelo matemático de origem e funcionamento do universo. Não queria, nesse momento, falar sobre a questão do demônio. Estava visivelmente deprimido, com insônia, apatia, tristeza intensa, diminuição do apetite e ideação pessimista. Não apresentava atividade alucinatória, seu pensamento era coerente e seu comportamento geral adequado. O diagnóstico clínico de nosso serviço foi de um episódio psicótico agudo, num paciente que apresentava previamente um transtorno delirante (considerou-se que há vários anos o paciente apresentava um delírio sobre a origem do universo sem sintomas característicos de esquizofrenia ou transtornos de humor concomitantes).

Discussão

De maneira geral, o comportamento de automutilação ocular constitui-se num fenômeno pouco comum, não podendo, porém, ser considerado um fenômeno raro. Favazza e Conterio10 estimaram uma prevalência de 0,75% de comportamento automutilatório no período de um ano na população em geral, considerando-se todos os tipos de automutilações. Desse total, apenas uma pequena minoria de casos é constituída por automutilações graves. O mesmo Favazza,11 a partir da epidemiologia geral dos comportamentos automutilatórios e dos relatos de caso da literatura, estimou que devem ocorrer cerca de 500 casos de automutilações oculares graves por ano. Tais estimativas, entretanto, ainda não nos permitem uma noção exata da epidemiologia desse tipo de fenômeno.

Diversas formas de lesões podem ser encontradas na literatura acerca do comportamento automutilatório, o que nos possibilita pensar num espectro de variável gravidade associado às automutilações oculares. Num extremo, lesões menos graves como conjuntivites induzidas química ou mecanicamente ou ainda lacerações de córnea, produzidas principalmente por pacientes acometidos de transtornos neuróticos ou retardo mental. Num outro extremo, e representando as formas de lesão ocular mais graves e dramáticas, os atos auto-infligidos levando à perda de um ou de ambos os olhos, dentre os quais destaca-se a auto-enucleação produzida pelo arrancamento do globo ocular com as próprias mãos. Além disso, fazendo parte desse espectro, algumas formas particularmente bizarras de lesão ocular também podem ser encontradas na literatura, como por exemplo: exposição deliberada dos olhos a queimaduras solares, injeção de ar ou outras substâncias dentro do globo ocular ou auto-enucleação produzida com o uso de materiais como facas, canetas ou – como descrito no caso 5 – arma de fogo.

As automutilações oculares podem ainda ser classificadas de acordo com os modelos de classificação geral para as automutilações, dentre os quais destaca-se o modelo de Favazza e Rosenthal,12 que divide as automutilações em estereotipadas, superficiais e graves. As automutilações estereotipadas compreenderiam aquelas formas de autolesão produzidas de forma repetitiva e com um nível de gravidade geralmente fixo como, por exemplo, os casos de agressão com as mãos contra partes do próprio corpo, tipicamente encontradas em pacientes autistas ou com retardo mental.13 As automutilações classificadas como superficiais ou moderadas compreenderiam atos de freqüência intermediária e variável, geralmente de baixa gravidade, cometidos principalmente por pacientes com transtornos ansiosos e neuróticos (dentre os quais destaca-se na literatura descrições de casos com diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno factício) e, principalmente, por pacientes com transtorno de personalidade, tipicamente transtorno de personalidade borderline. Assim como nos casos das automutilações estereotipadas, agressões contra os olhos podem também ser cometidas sob essa forma de automutilação superficial ou moderada.14,15 O terceiro tipo de automutilação compreende as automutilações graves, caracterizadas por atos infreqüentes ou isolados, de extrema gravidade, e cometidos principalmente por pacientes em episódios psicóticos agudos (surtos esquizofrênicos ou psicoses induzidas por drogas). Dentre essas formas de automutilações destacam-se as autolesões genitais (por exemplo, auto-amputação de pênis), oculares (auto-enucleação) e as auto-amputações de membros (principalmente mãos e dedos), língua e orelha. Dessa forma, a auto-enucleação, objeto do presente estudo, é caracterizada como uma das automutilações graves mais freqüentemente cometida, representando o extremo mais grave e dramático do espectro de atos autolesivos cometidos contra os olhos.

Historicamente, a literatura médica referente à auto-enucleação destaca alguns aspectos como: pacientes jovens, do sexo masculino, em episódios psicóticos agudos (principalmente associados ao diagnóstico de esquizofrenia ou psicose induzida por substância psicoativa), com antecedente de automutilações ou tentativas de suicídio anteriores e com alterações psicopatológicas (delírios ou alucinações) envolvendo intensos sintomas de conteúdo místico-religioso e secundariamente sexual. A Tabela 2 apresenta de forma esquemática as principais características observadas nos pacientes auto-enucleadores acompanhados em nosso serviço, características basicamente semelhantes às encontradas na literatura, cabendo destacar, entretanto: o longo tempo de evolução da doença e a idade relativamente avançada (mais de 30 anos) no momento da auto-enucleação (exceção do caso 5); as crenças religiosas dos pacientes, variando entre três diferentes igrejas cristãs (Católica, Evangélica e Testemunhas de Jeová); a presença de uma forma não usual de auto-enucleação com uso de arma de fogo (caso 5); e a presença de um caso de auto-enucleação bilateral (caso 6).

Diversos autores procuraram sumarizar fatores comuns que poderiam estar associados ao comportamento de auto-enucleação. Shore et al16 destacam a presença de automutilações prévias, preocupações auto-referentes de origem religiosa e alucinações de comando. Moskovitz e Byrd17 definem algumas características como: ato significando salvação do paciente ou do mundo, ausência de arrependimento, citação do versículo bíblico Mateus 5:29, geralmente em pacientes com diagnóstico de episódios psicóticos agudos associados ou não à utilização de drogas psicoativas. Gomez & Gomez18 acrescentam considerações sobre a presença de sentimentos de culpa geralmente associados a questões sexuais nesses pacientes, além de delírios relacionados a uma religiosidade fanática e a sentimentos de agitação e de ansiedade intensas seguidos por alívio e tranqüilidade após a realização do ato autolesivo. MacLean e Robertson19 destacam ainda um distúrbio na imagem corporal como outro fator geralmente associado a pacientes que cometem esse tipo de automutilação. Esses últimos autores sugerem que uma alteração na percepção do próprio corpo associada às vivências psicóticas de natureza predominantemente religiosa seriam os principais elementos para que esses pacientes se automutilassem de acordo com uma lógica própria.

Finalmente, dois outros aspectos relacionados à auto-enucleação merecem ser assinalados: o concretismo e o uso idiossincrático de mitos organizadores da cultura. O concretismo, ou seja, a tendência em lidar com símbolos, valores e representações subjetivas de um modo concreto, tratando fenômenos abstratos e metáforas como "coisas" ou histórias reais, é considerado por muitos psicopatólogos20 como um aspecto central do psiquismo dos pacientes psicóticos. No caso dos pacientes auto-enucleadores, é citada comumente a interpretação idiossincrática de algumas passagens bíblicas num contexto envolvendo delírios místico-religiosos, onde afirmações como "não ver a maldade no mundo" ou "o demônio está nos olhos" acabam sendo entendidas de forma concreta ou literal. Além disso, certos mitos básicos organizadores da subjetividade ocidental (como o conjunto de mitos da tradição judaica-cristã, incluindo o enunciado em Mateus 5:29) tendem a ser reinterpretados de modo radicalmente idiossincrático pelos indivíduos psicóticos. Nesse aspecto, os enunciados bíblicos associados à organização subjetiva da expiação de culpa, à purificação e à salvação da alma parecem ser particularmente importantes no conteúdo psicopatológico desses pacientes.

Correspondência

Paulo Dalgalarrondo

Depto. de Psicologia Médica e Psiquiatria

FCM – Unicamp

Caixa Postal 6111

CEP 13083-970 Campinas, SP, Brasil

Recebido em 21/2/2000. Aceito em 8/3/2000.

Fonte de financiamento inexistente.

Conflito de interesses inexistente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 2000

Histórico

  • Aceito
    08 Mar 2000
  • Recebido
    21 Fev 2000
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