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Diretrizes da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) para o diagnóstico e tratamento de comorbidades psiquiátricas e dependência de álcool e outras substâncias

Guidelines of the Brazilian Association of Studies on Alcohol and Other Drugs (ABEAD) for diagnoses and treatment of psychiatric comorbidity with alcohol and other drugs dependence

Resumos

O diagnóstico e tratamento de comorbidade psiquiátrica e dependência de álcool e outras substâncias tem sido objeto de inúmeros estudos nos últimos anos. A Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas desenvolveu o projeto Diretrizes. Este trabalho visa o desenvolvimento de critérios diagnósticos e terapêuticos atualizados para as comorbidades psiquiátricas mais prevalentes. Ensaios clínicos randomizados, estudos epidemiológicos, com animais e outros estudos são revisados. As principais comorbidades psiquiátricas são estudadas e os dados de literatura resumidos, tendo como referência diretrizes adotadas em outros países. São abordados aspectos epidemiológicos, critérios diagnósticos, tratamento integrado e organização de serviço especializado, assim como especificidades do tratamento psicoterápico e farmacológico. As Diretrizes da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas reforçam a importância da abordagem adequada do dependente químico portador de comorbidade psiquiátrica.

Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Comorbidade; Diretrizes para a prática clínica; Diagnóstico; Terapia combinada


Recently, several studies have focused on comorbity psychiatric disorders with alcohol and other substance dependence. The Brazilian Association of Studies on Alcohol and Other Drugs proposed the Brazilian Guidelines project. This study review diagnostic and therapeutic criteria to the most prevalent psychiatric comorbidities. Randomized clinical trials, epidemiological, animal studies and other forms of research are reviewed. The main psychiatric comorbidities are studied based on guidelines adopted by other countries and the literature data resumed. Epidemiological aspects, diagnoses, integrated treatment and service organization, as well as specific psychotherapic and pharmacological treatment are discussed. The Brazilian Association of Studies on Alcohol and Other Drugs Guidelines reassures the importance of adequate diagnoses and treatment regarding alcoholic and drug dependent patients suffering of comorbid psychiatric disorders.

Substance related disorders; Comorbidity; Practice guidelines; Diagnosis; Combined modality therapy


REVISÃO

Diretrizes da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) para o diagnóstico e tratamento de comorbidades psiquiátricas e dependência de álcool e outras substâncias

Guidelines of the Brazilian Association of Studies on Alcohol and Other Drugs (ABEAD) for diagnoses and treatment of psychiatric comorbidity with alcohol and other drugs dependence

Marcos ZaleskiI, II; Ronaldo Ramos LaranjeiraIII; Ana Cecília Petta Roselli MarquesIII; Lílian RattoIV; Marcos RomanoIII; Hamer Nastasy Palhares AlvesIII; Márcia Britto de Macedo SoaresV; Valter AbelardinoVI; Félix KesslerVII; Sílvia BrasilianoVIII; Sérgio NicastriIX; Patrícia Brunferntrinker HochgrafVIII; Analice de Paula GigliottiX, XI; Tadeu LemosI, II

INúcleo de Psiquiatria, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis (SC), Brasil

IIInstituto de Psiquiatria de Santa Catarina, Florianópolis (SC), Brasil

IIIUnidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD), Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo (SP), Brasil

IVUnidade de Álcool e Drogas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil

VGrupo de Estudos de Doenças Afetivas (GRUDA), Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clinicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

VICentro de Atendimento Médico e Social (CAMPS) - Clínica Vitao, Curitiba (PR), Brasil

VIIEquipe de Álcool e Drogas, Serviço de Psiquiatria, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre (RS), Brasil

VIIIPrograma de Atenção à Mulher Dependente Química (PROMUD), Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

IXPrograma Álcool e Drogas, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo (SP), Brasil

XSetor de Dependência Química, Santa Casa do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil

XIUniversidade Gama Filho, Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Correspondence Correspondência Marcos Zaleski Rua Itapecerica,14 - Itacorubi 88034-420 Florianópolis, SC, Brasil Tel: (55 48) 222-4218/ (55 48) 9972-6313 E-mail: mzaleski@terra.com.br

RESUMO

O diagnóstico e tratamento de comorbidade psiquiátrica e dependência de álcool e outras substâncias tem sido objeto de inúmeros estudos nos últimos anos. A Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas desenvolveu o projeto Diretrizes. Este trabalho visa o desenvolvimento de critérios diagnósticos e terapêuticos atualizados para as comorbidades psiquiátricas mais prevalentes. Ensaios clínicos randomizados, estudos epidemiológicos, com animais e outros estudos são revisados. As principais comorbidades psiquiátricas são estudadas e os dados de literatura resumidos, tendo como referência diretrizes adotadas em outros países. São abordados aspectos epidemiológicos, critérios diagnósticos, tratamento integrado e organização de serviço especializado, assim como especificidades do tratamento psicoterápico e farmacológico. As Diretrizes da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas reforçam a importância da abordagem adequada do dependente químico portador de comorbidade psiquiátrica.

Descritores: Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Comorbidade; Diretrizes para a prática clínica; Diagnóstico; Terapia combinada

ABSTRACT

Recently, several studies have focused on comorbity psychiatric disorders with alcohol and other substance dependence. The Brazilian Association of Studies on Alcohol and Other Drugs proposed the Brazilian Guidelines project. This study review diagnostic and therapeutic criteria to the most prevalent psychiatric comorbidities. Randomized clinical trials, epidemiological, animal studies and other forms of research are reviewed. The main psychiatric comorbidities are studied based on guidelines adopted by other countries and the literature data resumed. Epidemiological aspects, diagnoses, integrated treatment and service organization, as well as specific psychotherapic and pharmacological treatment are discussed. The Brazilian Association of Studies on Alcohol and Other Drugs Guidelines reassures the importance of adequate diagnoses and treatment regarding alcoholic and drug dependent patients suffering of comorbid psychiatric disorders.

Keywords: Substance related disorders; Comorbidity; Practice guidelines; Diagnosis; Combined modality therapy

Introdução

Comorbidade pode ser definida como a ocorrência de duas entidades diagnósticas em um mesmo indivíduo. No estudo da dependência de álcool e outras substâncias (AOS), a manifestação de transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de drogas e de outros transtornos psiquiátricos vem sendo bastante estudada já desde os anos 80.1 De fato, o abuso de substâncias é o transtorno coexistente mais freqüente entre portadores de transtornos mentais, sendo de importância fundamental o correto diagnóstico das patologias envolvidas. Os transtornos mais comuns incluem os transtornos de humor, como a depressão, tanto uni como bipolar, transtornos de ansiedade, transtornos de conduta, déficit de atenção e hiperatividade e, numa extensão menor, a esquizofrenia. Transtornos alimentares e transtornos da personalidade também apresentam estreita correlação com o abuso de substâncias.2

Na última década, a co-ocorrência de transtornos mentais e transtornos devidos ao uso de substâncias psicoativas tem sido largamente reconhecida na clínica psiquiátrica. Diversos estudos, principalmente na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), relatam os efeitos negativos do uso/dependência de substâncias psicoativas entre pacientes com transtornos mentais, tentando estabelecer as potenciais diferenças entre pacientes que abusam de álcool ou substâncias psicoativas, principalmente nas implicações quanto a diagnóstico, tratamento e prognóstico. Há evidências de que mesmo o uso infreqüente e de pequenas doses de drogas, legais ou ilegais, podem levar o indivíduo com transtornos mentais graves a conseqüências mais sérias do que as vistas na população geral e está associados a mais efeitos negativos ligados aos transtornos mentais.3-4

Epidemiologia

Pacientes com comorbidade psiquiátrica em geral representam uma população heterogênea, tendo sido propostos muitos diferentes subtipos, baseados nas diferentes combinações entre os transtornos psiquiátricos existentes e as substâncias utilizadas, ou ainda conforme a idade de início do transtorno, gravidade do quadro e a duração de uso da substância e do transtorno mental. Muitos pacientes apresentam múltiplos transtornos psiquiátricos, uso de mais de uma substância e doenças clínicas associadas.5

A prevalência de comorbidade em dependência química varia conforme as diferenças no tipo de estudo realizado (se epidemiológico ou clínico), no tipo de serviço que deu origem às amostras, no método de avaliação utilizado, na definição do transtorno devido ao uso de substâncias, em variações nas características sociodemográficas das amostras, variações na disponibilidade de drogas ilícitas na comunidade e conforme a região geográfica estudada.6-8

Pesquisas do Epidemiologic Catchment Área Study (ECA) demonstraram que cerca de metade dos indivíduos diagnosticados com AOS pelos critérios do DSM-IV apresentam um diagnóstico psiquiátrico adicional: 26% apresentam transtornos do humor, 28% transtorno de ansiedade, 18% transtornos da personalidade anti-social e 7% esquizofrenia. A prevalência de depressão maior entre dependentes químicos varia de 30 a 50%.9

Lotufo-Neto e Gentil avaliaram a prevalência de sintomas de ansiedade e fóbicos em pacientes dependentes de álcool, e também a prevalência de abuso e dependência de álcool entre aqueles que procuraram o serviço ambulatorial por diagnóstico de transtorno do pânico/agorafobia.10 Os resultados mostraram que os ataques de pânico e as fobias estavam associados com um aumento da gravidade e pior prognóstico para o alcoolismo, e que o abuso e dependência de álcool foi mais freqüente em homens com pânico e agorafobia que usavam o álcool para controlar os sintomas de ansiedade. Em outros estudos com pacientes com transtorno de ansiedade, 20 a 45% relatam histórias de dependência de álcool.11-12

Existe a hipótese de que os indivíduos ansiosos acabam por usar o álcool como uma forma de automedicação, o que acaba por agravar o transtorno ansioso primário.13 Isto tem sido estudado e confirmado em alguns experimentos com animais.14

Portanto, transtornos ansiosos pré-mórbidos são considerados fatores de risco para o desenvolvimento de abuso e dependência de substâncias, assim como a ansiedade é um sintoma que faz parte da síndrome de abstinência e da intoxicação crônica por estas substâncias.15

A ocorrência de comorbidade com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtorno de conduta, que apresenta elevada incidência entre adolescentes com comorbidade com AOS, é maior entre adolescentes do sexo masculino do que do sexo feminino.16 Adultos com TDAH apresentam prevalência na vida muito maior para transtornos do uso de substâncias: aproximadamente 33% dos adultos com TDAH apresentam antecedentes de abuso ou dependência de álcool e 20% deles história de abuso ou dependência de outras substâncias.17 O uso de álcool é o mais prevalente entre adultos com TDAH, seguido pela maconha, estimulantes e cocaína.18

Uma revisão com estudos comunitários sobre AOS e comorbidade psiquiátrica revelou que 60% dos jovens com AOS tinham uma comorbidade, sendo o transtorno de conduta e o transtorno desafiador opositivo os mais comuns, seguidos pela depressão.19

Diversos trabalhos demonstram que a comorbidade com depressão com AOS é mais comum em mulheres do que em homens.20-22 Entre as mulheres com AOS, 19% tiveram depressão em algum momento na vida, enquanto que na população geral de mulheres essa prevalência é de 7%. Nos homens com AOS, 78% apresentaram primeiro AOS e depois depressão; entre as mulheres com AOS, 66% apresentaram primeiro a depressão.9

Hendrick et al. também encontraram diferenças entre homens e mulheres no que se refere ao consumo de substâncias, em amostra clínica composta por 131 bipolares (63 mulheres e 68 homens).23 Neste estudo retrospectivo, os autores descreveram que homens bipolares apresentavam comorbidade com abuso/dependência de substâncias mais freqüentemente do que mulheres bipolares; essas, por sua vez, apresentavam problemas relacionados ao uso de álcool e de substâncias com maior freqüência do que mulheres da comunidade (freqüências 4 e 7 vezes maiores, respectivamente).

Estudos apontam para uma elevada prevalência de transtornos da personalidade e dependência de álcool e outras drogas.24 Abuso de uma ou mais substâncias foram relatados por 76% de pacientes com transtorno da personalidade borderline (TPB) e por 95% dos pacientes com transtorno da personalidade anti-social (TPAS), em adultos jovens internados em um serviço psiquiátrico de hospital geral.25

Para a comorbidade com esquizofrenia, o ECA demonstrou uma prevalência dos transtornos relacionados ao uso de AOS de aproximadamente 47%, incluindo 34% com abuso de álcool e 28% com abuso de drogas.26-27

Em estudos de estimativas de prevalência com amostras clínicas de mulheres portadoras de algum tipo de transtorno alimentar, a associação com abuso ou dependência de álcool, presente ou passado, variou de 12 a 39%, com uma média de 26%. A associação entre bulimia e comportamentos bulímicos e quadros de dependência é mais forte do que em relação à anorexia. A porcentagem de bulímicas que relataram abuso ou dependência de álcool variou de 2,9 a 48,6%, com uma média de 22,9%.28 Em um estudo realizado na Universidade de São Paulo por Negrão e Cordás,29 37,5% das pacientes que procuravam o ambulatório de transtornos alimentares faziam abuso de anfetaminas, e o mesmo percentual foi encontrado para aquelas que preenchiam critérios do DSM-IV para depressão maior. Já Bulik et al. compararam grupos de mulheres bulímicas sem história de dependência de álcool (BN-AD) com outro em que as mulheres preenchiam os critérios da DSM-III-R para dependência de álcool (BN+AD).30 O grupo BN+AD apresentou aumento significativo do diagnóstico de comorbidade com transtorno da personalidade do grupo B, do número de tentativas de suicídio, uso diário de cigarros e consumo de outras substâncias psicoativas.

Pesquisas demonstram que a maioria dos pacientes alcoolistas comórbidos com tabagismo morrem de causas relacionadas ao tabagismo, o que revela a importância do tratamento desta comorbidade.31 Inúmeros estudos apareceram comprovando a associação de depressão maior com tabagismo, com taxas de prevalência entre 35 e 41%.32

A incidência de comorbidade com transtornos mentais graves parece estar aumentando.33 Tal fenômeno tem sido atribuído a uma maior disponibilidade de álcool e drogas na população geral. Alguns autores sugerem que é importante diferenciar pacientes com transtornos mentais graves que abusam de drogas psicoativas daqueles que apresentam quadros de dependência a essas drogas, uma vez que parece ser bastante diferente a evolução desses indivíduos. Parece haver uma tendência maior ao abandono do uso de álcool e drogas entre os pacientes que somente abusam delas do que naqueles que apresentam quadros de dependência. Isto mesmo apesar das evidências de que a prevalência de transtornos mentais por uso de substâncias psicoativas não seja muito variável entre uma população geral de pacientes durante a vida.34

Diagnóstico

Uma das maiores dificuldades na abordagem do paciente com comorbidade está no diagnóstico diferencial, pois ocorre uma superposição de sintomas. Um transtorno pode exacerbar ou mascarar o outro. Não é fácil, no início, estabelecer diferenças entre a presença de comorbidade psiquiátrica e abuso de substâncias psicoativas.

Por outro lado, também ainda não é claro o efeito dessas substâncias na apresentação dos sintomas em pacientes com transtornos mentais graves, não sendo possível estabelecer a real influência das drogas psicoativas sobre a psicopatologia: alucinações experimentadas por dependentes de álcool podem não diferir significativamente das alucinações experimentadas por pacientes esquizofrênicos.35 Aspectos envolvendo gênero, etnia e status socioeconômico também não devem ser esquecidos. Muitos autores concordam que tais fatores podem levar a pistas de situações ambientais traumáticas ou dificuldades variadas que influenciem o desenvolvimento e/ou o agravamento, tanto das questões relacionadas ao abuso de substâncias quanto à comorbidade psiquiátrica.36 Em razão do elevado índice de comorbidade com AOS entre mulheres que apresentam diagnóstico psiquiátrico, em relação aos homens, uma atenção especial deve ser dada para o acessamento de AOS para o sexo feminino.37

Muitos questionários têm sido aplicados à população de pacientes com transtornos mentais graves associados ao uso de drogas. A escolha da entrevista a ser utilizada deve basear-se nos objetivos do estudo, pois existem diferentes instrumentos desenvolvidos para cada tipo de avaliação especifica. Instrumentos de triagem servem para identificar indivíduos que provavelmente apresentem problemas relacionados ao abuso de substâncias; demandam maior sensibilidade que especificidade, como "CAGE" e o "AUDIT" (Alcohol Use Disorders Identification Test).38

O correto diagnóstico através das entrevistas iniciais ou da observação da evolução clínica pode facilitar a abordagem terapêutica e as estratégias de prevenção de recaída. Os estágios de mudança sugeridos por Prochaska e Di Clemente39 e amplamente empregados no tratamento da dependência química podem ser influenciados, por exemplo, por estados depressivos ou psicóticos.

Tratamento

1. Tratamento integrado e organização de serviço

Há cerca de uma década já existe um consenso entre os pesquisadores quanto ao sinergismo de sintomas. Muitos dos sintomas atribuídos a uma comorbidade são muitas vezes sintomas associados ao período de intoxicação ou de abstinência a uma ou mais substâncias.

Osher & Kofoed propuseram abordagem integrada para pacientes comórbidos que incluem os seguintes fatores: estratégias para aumentar a aderência ao tratamento, persuasão acerca da relação entre abuso de substâncias e transtorno psiquiátrico e tratamento concomitante dos dois distúrbios para aliviar qualquer conflito entre as duas modalidades de tratamento.40 Outros autores também sugerem que o tratamento integrado de pacientes com comorbidade psiquiátrica tem um melhor resultado do que o tratamento seqüencial ou o paralelo, com uma abordagem abrangente, incluindo manejo da crise aguda por equipe multidisciplinar e por terapeuta individual, aguardando a desintoxicação com abstinência por no mínimo duas semanas.41-43 O pior prognóstico dos pacientes dependentes químicos que apresentam comorbidade psiquiátrica pode ser atribuído, em grande parte, à abordagem tradicional, que trata a dependência em um serviço e o transtorno psiquiátrico associado em outro.41

Serviços voltados ao atendimento de pacientes dependentes têm pouca segurança e experiência em trabalhar com pacientes psicóticos, pacientes bipolares ou com graves transtornos de personalidade e acreditam que seu tratamento está além de suas possibilidades.44 Por esta razão, existem propostas para programas específicos, que permitam às equipes de saúde mental desenvolver formas efetivas de lidar com tais pacientes, visando conscientizá-los da necessidade de se tornarem abstinentes, melhorar sua aderência ao tratamento e reorganizar suas redes sociais.45 No Brasil, até o momento, são poucos os estudos que investigaram essa questão, mas há indicações de que a comorbidade entre transtornos mentais graves e abuso ou dependência de álcool ou drogas seja um problema relevante.46-48 Alguns autores enfatizam a necessidade de incluir no tratamento, além dos itens aqui citados, também programas psicoeducacionais para atendimento familiar.49

2. Tratamento psicoterápico

A entrevista motivacional (EM), um importante instrumento no tratamento de AOS, deve ser aplicada durante a fase inicial e durante o curso do tratamento de pacientes comórbidos. Pacientes com dependência química demandam maior esforço por parte do terapeuta para estabelecer uma aliança capaz de promover mudanças em seu comportamento e aumentar as possibilidades de aderência à terapia proposta. As psicoterapias têm se mostrado atualmente consistentes quando avaliadas em pesquisas clínicas para AOS e transtornos de ansiedade e do humor, tanto depressivo quanto bipolar, além de fortalecer a aliança terapêutica nos portadores de demais transtornos.50

Esta aliança tem importância especial para os portadores de transtorno da personalidade, que apresentam dificuldades para mudanças de estágio, redução da aderência e altas taxas de abandono de tratamento. Estudos mostram que estes pacientes se beneficiam do tratamento tanto quanto os que têm apenas diagnóstico em Eixo I, apesar de apresentarem recaídas mais precoces.51-52 Os transtornos de ansiedade e depressão também respondem bem às abordagens interpessoais, quando feitas por terapeutas experientes.53

Uma outra modalidade de psicoterapia, o tratamento psicossocial, deve ser aplicado imediatamente, pois pode determinar a utilização ou não da farmacoterapia em muitos casos e contribuir para diminuir as recaídas. Vários tipos de intervenção são preconizadas, dentre elas tem se dado preferência à terapia cognitivo-comportamental (TCC) e suas variantes, na forma de prevenção de recaída, tanto individual como em grupo.54-55

É consenso entre os pesquisadores que a comorbidade entre depressão e AOS intensifica os estados depressivos, diminui a resposta terapêutica e aumenta o risco de suicídio.56

Indivíduos com esquizofrenia e com abuso de substâncias têm um prognóstico pior do que pacientes com apenas um desses transtornos e são de difícil tratamento. Recentemente, vários guidelines têm sido propostos para o tratamento dos pacientes com essa comorbidade: o tratamento deve ser individualizado; o médico ou a equipe deve tentar diagnosticar a natureza da psicose, proteger o paciente dos danos próprios e alheios, bem como desintoxicá-lo e medicá-lo a fim de resolver os sintomas agudos. Ao contrário dos modelos de tratamento para dependência química, os grupos de auto-ajuda e o aconselhamento devem ter menor intensidade e poucas confrontações.57-58

São poucas as pesquisas sobre a eficácia terapêutica do tratamento integrado do transtorno alimentar com AOS. Em um dos poucos estudos em que foram incluídos pacientes dependentes com transtornos alimentares, el-Guebaly et al., com uma abordagem integrada em hospital-dia e focalizada nas necessidades individuais, observaram melhoras que foram sustentadas por um período superior a um ano, tanto no uso de álcool ou drogas quanto na qualidade de vida.59 O tratamento de pacientes com comorbidade com transtornos alimentares tem como recursos, além do período de desintoxicação, uma combinação de técnicas que inclui prevenção de recaída para AOS, aconselhamento nutricional, intervenção psicossocial e tratamento farmacológico.59-60

Hughes demonstrou que o tratamento para parar de fumar em alcoolistas é tão bem sucedido quanto em não-alcoolistas.61 Em 1997, Stuyt comparou as taxas de recuperação entre fumantes e não-fumantes após tratamento para dependência de álcool e outras substâncias em regime de internação.62 Os resultados indicaram que não-fumantes apresentaram períodos mais longos de abstinência do que os fumantes. As diferenças encontradas são mais significativas em pacientes cuja droga de escolha atua como depressora do sistema nervoso central (ex: álcool). Não houve diferenças significativas das taxas de recuperação entre fumantes e não-fumantes quando se tratava de dependência de substâncias estimulantes (ex. cocaína).

A condução do tratamento do tabagismo pressupõe a modificação do padrão de uso de outras drogas, especialmente o álcool. Não há suporte científico para a noção tradicional de que a interrupção simultânea de álcool e nicotina possa aumentar o risco de recaída para o álcool. Na avaliação do paciente tabagista é fundamental observar o desejo de parar de fumar. Caso o paciente não deseje interromper o uso do tabaco, deve-se tratar a comorbidade e utilizar estratégias psicoterápicas para motivá-lo (entrevistas motivacionais).63

3. Tratamento farmacológico

A regra geral é aguardar o período de desintoxicação para iniciar o tratamento da comorbidade. Obviamente, se um paciente está ativamente psicótico, agressivo ou suicida, intervenção imediata específica deve ser empreendida, ainda que se considere o transtorno afetivo relacionado à dependência química (ou seja, farmacoterapia, proteção ambiental, orientação familiar, psicoterapia suportiva).

O tratamento deve seguir as orientações para cada entidade psiquiátrica, associando, quando necessário, o uso dos agentes anticraving naltrexona para reduzir da impulsividade, e do acamprosato para reduzir a reação ao estresse e sensibilidade a sintomas de ansiedade, agentes estes aprovados apenas para dependência de álcool.64-65

No entanto, diversos estudos sugerem cuidados especiais na orientação farmacológica de algumas das comorbidades com os transtornos psiquiátricos aqui abordados, e que serão discutidos a seguir.

Em todos os casos de comorbidades psiquiátricas com AOS há restrições ao uso de benzodiazepínicos (BZD), devido ao risco de tolerância e dependência cruzada com AOS.66-67 A buspirona é a substância ansiolítica mais recomendada, considerada tão segura e efetiva como o BZD.68

Para o TDAH, autores divergem quanto ao uso seguro do metilfenilato, em razão do potencial de abuso por sua ação dopaminérgica.69-70 Estudos recentes demonstram que a bupropiona apresenta-se como uma opção mais segura e igualmente eficaz, embora mais estudos sejam necessários para definição desta substância como sendo de primeira escolha no tratamento da comorbidade com AOS.71-72

Para a comorbidade com depressão (e também para os comórbidos com transtorno da personalidade e transtorno alimentar que apresentam sintomas depressivos), estudos demonstram que os tricíclicos causam melhora nos sintomas e diminuem as taxas de recaída, mas seus efeitos colaterais produzem altos índices de abandono.73 Diversos estudos demonstram a eficácia de antidepressivos tricíclicos e dos inibidores de recaptação de serotonina para o tratamento destes pacientes, levando à redução da freqüência e severidade das recaídas.56,74 Embora inibidores da MAO possam ser utilizados, devem ser cuidadosamente considerados os riscos de recaída a AOS e comportamento de ingestão alimentar descontrolado (risco de ingestão de alimentos ricos em tiramina).60

A pequena margem de segurança para o uso do lítio torna difícil o seu uso com segurança para os pacientes que apresentam THB e abuso de AOS (baixa aderência, seguimento descontínuo, dificuldade em manter estado de hidratação continuamente satisfatório – o que aumenta o risco de intoxicação por hemoconcentração).75 Assim, há uma maior preferência pelo uso de anticonvulsivantes como o valproato e a carbamazepina.76

Algumas vezes os neurolépticos podem exacerbar os sintomas psicóticos ou causar delirium, devendo ser priorizados nos estágios mais avançados do tratamento, quando os efeitos das substâncias psicoativas tiverem desaparecido. A farmacoterapia com neurolépticos é indicada na menor dose possível. Estudos recentes demonstram uma preferência pelo uso de neurolépticos atípicos para comórbidos com transtornos psicóticos. Isto ocorre tanto por sua ação mais eficaz sobre sintomas negativos, o que reduz o abuso de drogas como tentativa de pseudo-tratar os sintomas deficitários dos quadros psicóticos crônicos, quanto pela ação anticraving de algumas destas substâncias, como a olanzapina, clozapina e quetiapina.77-78

Considerações gerais finais

Os seguintes itens a serem considerados, centrados em estratégias de manejo biopsicossocial:79

1) Considerar a combinação específica da comorbidade e o estágio de motivação ao escolher o melhor método de tratamento.

2) Considerar o uso de farmacoterapia para o tratamento do transtorno psiquiátrico, desintoxicação e fase inicial de recuperação e prevenção de recaída.

3) Usar técnicas psicossociais para aumentar a motivação, auxiliar na resolução de problemas ambientais e no manejo de situações difíceis.

4) Fornecer apoio familiar e informação sobre tratamento adicional de apoio, como grupos baseados nos 12 passos de Alcoólicos Anônimos e outros grupos de auto-ajuda.

5) Apoio psiquiátrico para o controle de sintomas psicóticos, mania e depressivos com ou sem risco de suicídio.

Em resumo, a Figura 1 apresenta os critérios para uma abordagem adequada ao paciente com diagnóstico de transtorno psiquiátrico e dependência de álcool e outras drogas.


Recebido: 6 Outubro 2005

Aceito: 3 Novembro 2005

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      03 Nov 2005
    • Recebido
      06 Out 2005
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