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Transmissão intergeracional da violência familiar: o papel do transtorno de estresse pós-traumático

Intergenerational transmission of family violence: the role of post-traumatic stress disorder

CARTAS AOS EDITORES

Transmissão intergeracional da violência familiar - o papel do transtorno de estresse pós-traumático

Intergenerational transmission of family violence – the role of post-traumatic stress disorder

Sr. Editor,

A crescente violência nas grandes cidades é uma das principais preocupações da sociedade brasileira atual. A cada novo paroxismo de violência, "especialistas" são convocados para discorrer sobre as "causas da violência" nas páginas dos jornais ou no horário nobre das emissoras de televisão. Estas explicações, contudo, raramente se mostram satisfatórias. Na maior parte das ocasiões, representam opiniões pessoais mais ou menos fundamentadas; ocasionalmente, são uma mera oportunidade para o entrevistado dar vazão à sua insatisfação com o estado das instituições sociais e políticas nacionais. Em suma, raramente o que se ouve sobre violência no Brasil atual é fruto de pesquisas empíricas de boa qualidade.

É, portanto, com inegável satisfação que lemos o artigo de Bordin et al., o primeiro estudo de base populacional realizado no Brasil sobre a relação entre punição física grave e problemas de saúde mental em crianças e adolescentes nas comunidades de baixa renda.1 Entre várias outras observações importantes, os autores constataram que não apenas a punição física grave é prática comum nesta população (10,1%), mas também que as vítimas de punições físicas graves têm probabilidade aumentada de se tornar futuros agressores.

A identificação de fatores que condicionam a transmissão intergeracional dos comportamentos violentos (estimada em 23-30% por Pears e Capaldi2) é um dos campos de pesquisa mais promissores nesta área, pois, além de expandir nossa compreensão sobre os mecanismos que subjazem tal tipo de comportamento, oferece uma oportunidade ímpar para intervenções capazes de interromper a aparentemente infinita espiral familiar da violência.

Embora o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) seja o transtorno mental mais fortemente relacionado a situações de violência, seu estudo no Brasil permanece incipiente.3 Uma das facetas menos conhecidas do TEPT é sua freqüente associação à transmissão intergeracional do comportamento violento. O TEPT é comum em famílias onde ocorre abuso infantil grave, não apenas entre as vítimas, mas também, surpreendentemente, entre suas mães, com prevalências atuais de 35,8% e 15,6%, respectivamente.4

Acredita-se que pais que padecem de TEPT em conseqüência de suas experiências pessoais de maus-tratos durante a infância têm maior risco de tratar abusivamente seus próprios filhos. De fato, admite-se que maus-tratos sofridos durante a infância tendem a ser mais prejudiciais que os traumas ocorridos mais tardiamente, por conta das interações entre os sintomas de estresse pós-traumático e o processo de desenvolvimento psicológico. As experiências traumáticas infantis causariam déficits permanentes na regulação dos processos comportamentais, cognitivos e emocionais que contribuiriam para limitar as habilidades dos pais para cuidar de sua prole e, em conseqüência, aumentariam o risco de transmissão intergeracional de dependência de drogas, dificuldades de relacionamento e violência familiar. De Bellis et al. sugeriram que comportamentos violentos em relação aos próprios filhos podem ser a conseqüência de sintomas não tratados de TEPT nos pais, resultantes da violência familiar sofrida por estes durante a infância.5

O trabalho de Bordin et al. inaugurou no Brasil uma importante área de pesquisa.1 É nossa sugestão que estudos futuros por ele inspirados não devem deixar de investigar o papel desempenhado pelo TEPT no processo de perpetuação da violência familiar. É importante também que psiquiatras e outros especialistas em saúde mental, ao se depararem com casos de violência intrafamiliar, tenham em mente esta possibilidade e não percam a oportunidade de diagnosticar e tratar um transtorno cujas conseqüências podem ser muito graves.

Mauro V Mendlowicz

Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Universidade

Federal Fluminense (UFF), Niterói (RJ), Brasil

Ivan Figueira

Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ),

Brasil

Referências

1. Bordin IA, de Paula CS, Nascimento R, Duarte CS. Severe physical punishment and mental health problems in an economically disadvantaged population of children and adolescents. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(4):290-6.

2. Pears KC, Capaldi DM. Intergenerational transmission of abuse: a two-generational prospective study of an at-risk sample. Child Abuse Negl. 2001;25(11):1439-61.

3. Figueira I, Mendlowicz M. Diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático. Rev Bras Psiquiatr. 2003;25(Suppl 1):12-6.

4. Famularo R, Fenton T, Kinscherff R, Ayoub C, Barnum R. Maternal and child posttraumatic stress disorder in cases of child maltreatment. Child Abuse Negl. 1994;18(1):27-36.

5. De Bellis MD, Broussard ER, Herring DJ, Wexler S, Moritz G, Benitez JG. Psychiatric co-morbidity in caregivers and children involved in maltreatment: a pilot research study with policy implications. Child Abuse Negl. 2001;25(7):923-44.

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Mar 2007
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