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Psiquiatria forense e direitos humanos nos pólos da vida: crianças, adolescentes e idosos

Resumos

OBJETIVO: Crianças/adolescentes e idosos são alvo fácil para atos de violência, seja por sua fragilidade e dependência, seja por não serem considerados testemunhas confiáveis para denunciar os casos de abuso e maus-tratos. Temas como violência, capacidade civil e responsabilidade penal de crianças, adolescentes e idosos guardam correlações interessantes de serem avaliadas. Esse artigo faz uma revisão crítica do tema, compara e discute os Estatutos da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso no Brasil. DISCUSSÃO: Os abusos ou maus-tratos podem ser examinados a partir de dois aspectos: 1) fatores preditivos para sua ocorrência (perfil do abusado e do abusador) e 2) agravos à saúde física e mental. CONCLUSÃO: O Brasil conta hoje com legislação avançada para proteção dessas populações vulneráveis e o tema de violência e maus tratos contra crianças e idosos deve ser parte da preocupação de clínicos e psiquiatras que tratam desses pacientes.

Maus-tratos infantis; Maus-tratos ao idoso; Violência; Direitos humanos; Psiquiatria legal


OBJECTIVE: Children/adolescents and elderly are frequent victims of violent acts either because of their frailty and dependency or because they are not considered as reliable subjects to present cases of abuse against the perpetrators. There is an interesting relationship between civil capacities and legal responsibilities of minors and elderly. This is a critical review of minor and elder abuse that also presents and compares the Brazilian laws regarding the rights and responsibilities of elderly and minor subjects. DISCUSSION: Abuse may be examined regarding two aspects: 1) predictive factors of their occurrence (a profile of the abused and of the abuser), and 2) consequences for mental and physical health. CONCLUSION: This legislation is modern and protective of these vulnerable populations. Examining and diagnosing violence and abuse against children and elderly subjects must be part of the clinical and forensic practice of doctors and especially of psychiatrists.

Child abuse; Elder abuse; Violence; Human rights; Forensic psychiatry


ARTIGOS

Psiquiatria forense e direitos humanos nos pólos da vida: crianças, adolescentes e idosos

Jerson LaksI, II; Jairo WernerIII, IV, V, VI; Luiz Salvador de Miranda-Sá Jr.VII, VIII, IX

IFaculdade de Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IICentro para Doença de Alzheimer e Outros Transtornos Mentais na Velhice, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIIFaculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IVÁrea de Psiquiatria da Criança e do Adolescente, Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VPsiquiatra Forense, Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

VIProfessor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

VIIUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande (MS), Brasil

VIIIServiço de Psiquiatria, Santa Casa de Campo Grande, Campo Grande (MS), Brasil

IXConselheiro do Conselho Federal de Medicina (CFM)

Correspondência Correspondência Jerson Laks Av. N. S. Copacabana, 749/802 - Copacabana 22050-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil Email: jlaks@centroin.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Crianças/adolescentes e idosos são alvo fácil para atos de violência, seja por sua fragilidade e dependência, seja por não serem considerados testemunhas confiáveis para denunciar os casos de abuso e maus-tratos. Temas como violência, capacidade civil e responsabilidade penal de crianças, adolescentes e idosos guardam correlações interessantes de serem avaliadas. Esse artigo faz uma revisão crítica do tema, compara e discute os Estatutos da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso no Brasil.

DISCUSSÃO: Os abusos ou maus-tratos podem ser examinados a partir de dois aspectos: 1) fatores preditivos para sua ocorrência (perfil do abusado e do abusador) e 2) agravos à saúde física e mental.

CONCLUSÃO: O Brasil conta hoje com legislação avançada para proteção dessas populações vulneráveis e o tema de violência e maus tratos contra crianças e idosos deve ser parte da preocupação de clínicos e psiquiatras que tratam desses pacientes.

Descritores: Maus-tratos infantis; Maus-tratos ao idoso; Violência; Direitos humanos; Psiquiatria legal

Introdução

A forma como são tratados os dois pólos etários da vida, por si só, revela o grau de civilidade de qualquer sociedade. As crianças e os idosos representam faixas da população que merecem atenção especial, tanto do ponto de vista médico como dos jurídico e social. Esses dois segmentos necessitam, por suas características, de medidas para o desenvolvimento de políticas públicas específicas de cuidados que assegurem seus direitos. Nesse contexto, podem ser vistas como populações vulneráveis.

Crianças, adolescentes e idosos são alvos fáceis para atos de violência de todos os tipos, seja por sua fragilidade e dependência, seja por não serem considerados testemunhas confiáveis para denunciar os casos de abuso e maus-tratos, ou por conta da cultura excludente a que são submetidos. Tanto é assim que houve necessidade, no Brasil, de se estabelecer legislação específica para proteger estas faixas etárias, criando-se, para tanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei Federal 8.069/90)1 e o Estatuto do Idoso (EI) (Lei Federal 10.741/03).2

Encarados por este prisma, verifica-se que os dispositivos legais do ECA e do EI apresentam vários pontos em comum, sobretudo quanto à salvaguarda dos direitos civis e proteção social dessas pessoas mais vulneráveis, embora apresentem especificidades no que diz respeito às capacidades civil e penal. Aos idosos, salvo melhor juízo, é atribuída plena capacidade civil e responsabilidade penal, enquanto que as crianças/adolescentes não exercem pessoalmente os atos da vida civil (absolutamente até os 16 anos, relativamente até os 18 anos), como disposto no Código Civil, artigos 3º e 4º.3 Os menores, por sua vez, são penalmente inimputáveis e estão sob a guarda dos pais ou de tutores no caso de perda ou suspensão do poder familiar dos pais (artigos 33, 34, 35 e 36 do ECA).1

É importante avaliar o conjunto das situações sociais, médicas e jurídicas às quais estão submetidos idosos e crianças para a compreensão sistêmica dos problemas que atingem o cidadão ao longo de toda a sua vida. Temas como violência, capacidade civil e responsabilidade penal guardam correlações interessantes de serem avaliadas. A partir daí, pode-se ensejar estudos integrados e intervenções comuns que diminuam o risco de exposição à violência e protejam os direitos ao longo da vida, ainda que diversas manifestações da violência individual e social se exerçam diferentemente sobre as crianças, os adolescentes e os idosos.

Este trabalho tem por objetivo descrever as situações de violência contra a criança e contra o idoso, analisando seus pontos comuns e especificidades. A partir disso, pretendemos traçar uma correlação entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso.

Abuso e maus-tratos de crianças e idosos

O fenômeno psicossocial da violência se exerce sobre estes segmentos da população por meio de condutas denominadas abuso e maus-tratos. Estas são definidas como atos em que um sujeito em condição de superioridade - por idade, situação de poder, discernimento, posição social ou econômica - produz dano físico, emocional ou sexual contra a vontade do indivíduo ou mesmo com o consentimento deste. Esse consentimento é obtido, porém, a partir de indução, sedução ou engodo.4 O problema se mostra maior na relação de poder (individual ou social) resultante da capacidade ofensiva do agente e da incapacidade de defesa da vítima. À falha do cuidador em prover os cuidados básicos, satisfazer as necessidades e proteger de danos criança ou idoso sob sua responsabilidade, também se aplica esta definição.

Os atos de violência podem ser classificados em duas grandes categorias: a violência institucional e a doméstica (intrafamiliar/interpessoal).

A violência institucional é aquela na qual a violação dos direitos e os agravos à saúde física e mental são perpetrados - por ação ou omissão - em instituições sociais que têm por responsabilidade precípua a proteção dos direitos dos indivíduos, tais como creches, escolas, hospitais, instituições de ensino e judiciárias, asilos ou lares protegidos. Nessas instituições, a violência pode se apresentar sob a forma de humilhação, ameaças ou agressão física e sexual por parte dos coetâneos ou professores, monitores, inspetores e funcionários. Algumas crianças ou adolescentes correm maiores riscos em função de apresentar características físicas distintas, como obesidade, orelha de abano, malformações e traços psicológicos pouco aceitos por seus pares e pessoas da convivência cotidiana, como timidez e isolamento. A condição sociodemográfica também pode ser determinante para que alguns sejam naturalmente mais expostos à violência, o que pode suceder com indivíduos oriundos de determinados grupos sociais e/ou moradores de localidades dominadas por facções do narcotráfico.

A violência intrafamiliar é sub-relatada. Não é incomum que ocorra concomitantemente contra os menores e os mais idosos no mesmo contexto familiar. A prevalência geral na população varia em torno de 0,3% a 4% contra mulheres e 8% para os atos violentos como um todo. A prevalência ao longo da vida varia de 8% a 22% e o uso de drogas é uma associação encontrada, embora não se possa conferir a essa associação nenhum nexo de causalidade.5-6

É igualmente importante destacar a violência simbólica, que ocorre quando os indivíduos ou suas famílias são discriminados e responsabilizados por fenômenos determinados por mecanismos perversos de seletividade social, tais como fracasso escolar, evasão e repetência. Esses eventos são atribuídos a causas biológicas ou morais das vítimas, e não a outras variáveis sociais que podem estar mais fortemente associadas a esses desfechos.7 Aqui se inclui a violência estatal, representada pelas diversas formas com a qual o poder do Estado, macro-instituição que define e modela todas as outras, maltrata crianças, adolescentes e idosos, principalmente através da negação em atender às necessidades básicas que tem o dever constitucional de prover: educação, moradia, assistência à saúde, segurança e trabalho.

A Tabela 1 apresenta os principais tipos de abusos e maus-tratos contra crianças e idosos.

Aspectos clínicos e epidemiológicos do abuso e maus-tratos contra crianças, adolescentes e idosos

Os abusos ou maus-tratos podem ser examinados a partir de dois aspectos: 1) fatores preditivos para sua ocorrência (perfil do abusado e do abusador); e 2) agravos à saúde física e mental. Ao longo deste subitem descreveremos algumas das características dos tipos mais importantes de abuso.

Dentre as modalidades de abuso sexual, encontramos aquelas que 1) não envolvem contato físico, tais como o abuso verbal, telefonemas obscenos, exibicionismo, "voyeurismo" e exibições de pornografia; 2) as que envolvem contato físico: toque em áreas consideradas excitantes, como nádegas e coxas, manipulação de genitais, coito ou tentativa de coito (inclusive anal) e contato orogenital; e 3) os abusos sexuais com violência: estupro e brutalização.4

Alguns indicadores podem contribuir para traçar um perfil de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. França, em revisão da literatura, aponta que 3% a 16% dos meninos e 2% a 62% das meninas apresentam "risco de serem abusados".8 Nos Estados Unidos da América, o Comitê Nacional para prevenir o abuso contra a criança (1995), em estudo com 1 milhão de casos confirmados, identificou 45% das ocorrências como negligência, 26% como abuso físico, 11% como abuso sexual, 3% como abuso emocional e 16% como tipos diversos ou não especificados.9

No Brasil, ainda são poucos os estudos abrangentes sobre o tema. Em pesquisa realizada por Ferreira em serviço de atendimento pediátrico na cidade do Rio de Janeiro, as vítimas de abuso sexual eram predominantemente do sexo feminino (70,5%) e situadas na faixa etária entre 2 e 10 anos de idade (81,7%).10 O abuso intrafamiliar foi responsável por 47,3% das situações, sendo a manipulação da genitália da vítima o tipo de contato sexual mais freqüente (31%). Segundo a Associação Brasileira de Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA), em 1.547 denúncias de abuso contra crianças e adolescentes, 52% dos casos envolviam a faixa etária de 7 a 14 anos, 37% menores de 6 anos e 11% foram registrados contra adolescentes de 15 a 18 anos.11 As vítimas eram do sexo feminino em 76% dos casos. Pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz mostra que os tipos de violência intrafamiliar mais comuns são a violência física e verbal, sendo que a resolução de conflitos intrafamiliares por meio da violência física tem como agressores os pais em 52,8% dos casos e, os irmãos, em 75,5 % dos casos.12-13 Outro estudo, realizado pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), de Campinas, com 3.644 casos, detectou 47,1% com agressão física, 20,2% com negligência/abandono, 6% com abuso sexual, 10,9% com maltrato psicológico e 15,8% de casos improcedentes.14 Essas cifras, no entanto, podem representar apenas a ponta do iceberg, pois há dificuldade de identificação da situação de violência devido ao medo e à incapacidade que as vítimas têm em relatá-la.

A prevalência de abuso contra idosos varia de 2% a 10%, dependendo do tipo de população estudada e dos locais de pesquisa, se em comunidade ou em lares protegidos. Para se ter uma idéia da magnitude do problema no cotidiano, um clínico que veja 20 a 40 idosos por dia examinará ao menos um idoso vítima de abuso.15

Nos idosos, os fatores de risco envolvidos nos casos de violência variam conforme o tipo de abuso ou maus-tratos perpetrado. Assim, o risco de abuso ou violência física é maior para os idosos que apresentam demência e que vivem com familiares devido às oportunidades aumentadas de contato interpessoal, gerando conflitos e tensões. O abuso econômico é mais freqüente contra idosos que moram sozinhos e que sofrem isolamento social; este, por si só, já é uma outra forma de violência.16

A principal psicopatologia do perpetrador está associada ao alcoolismo e à depressão, além de uma relação de dependência econômica com o idoso. Interessante notar que o idoso dependente de cuidados é quem detém, muitas vezes, o poder econômico-financeiro na família.

Embora a opinião pública em geral, e mesmo os profissionais da área da saúde, tendam a encarar o tema de abusos e maus-tratos como fatos atinentes à área jurídico-policial, esses são também problemas médicos, ao menos quanto às complicações. Do ponto de vista da identificação clínica, as vítimas de diferentes formas de violência podem apresentar várias reações e sintomas emocionais, comportamentais e somáticos que, mesmo sem serem específicos ou patognomônicos, podem ser encarados como marcadores biológicos forenses.17

Dentre os agravos à saúde física e mental decorrentes da violência, os traumas foram os mais estudados. Collin-Vezina e Hebert verificaram que a vitimização sexual de meninas em idade escolar aumentou em oito vezes a probabilidade de sintomas dissociativos e, em quatro vezes, a de síndrome do estresse pós-traumático.13 Além disso, as experiências traumáticas vividas na infância tendem a afetar o desenvolvimento global da criança.18 Há uma grande associação entre sintomas de estresse pós-traumático e eventos violentos, tais como violência na comunidade, desastres naturais, abuso e maus-tratos contra crianças, acidentes de trânsito, exposição às doenças e à morte.19 Também no Brasil, têm sido relatados casos de crianças com alterações comportamentais (hiperatividade, agressividade, depressão e ansiedade) em comunidades violentas, da mesma forma como ocorre em países em guerra ou sujeitos a atos freqüentes de terrorismo. Em resumo, crianças abusadas e maltratadas estão em risco para síndrome do estresse pós-traumático, comportamentos de auto-agressão, transtorno de humor, abuso de substâncias psicoativas, problemas sexuais, sintomas psicóticos positivos e quadros dissociativos.

Os casos de abuso nem sempre são facilmente reconhecidos, já que os perpetradores fazem de tudo para afastar as suspeitas dos crimes que cometem. Ao mesmo tempo, crianças e idosos também nem sempre relatam espontaneamente o que lhes acontece. Assim, é importante que os profissionais de saúde estejam sempre atentos a indícios de abuso contra esses indivíduos. Segue-se abaixo uma relação de indícios que podem levar o clínico a reconhecer ou suspeitar de problemas de abuso e maus-tratos:

1) Indícios de abuso sexual

Em crianças: comportamento de imitação e/ou de muito interesse em atividades sexualizadas incompatíveis com a idade e o grupo sociocultural; postura de evitar tudo que esteja relacionado à sexualidade; brincadeiras sexuais agressivas; presença de sinais de abuso em desenhos, jogos e brincadeiras; vergonha e retraimento excessivos; auto-agressão; alegação de abuso; idéias e tentativas de suicídio; agressividade incomum; manutenção de segredos; dizer que tem o corpo sujo ou danificado; medo de ter os órgãos sexuais atingidos por algo ruim; atitudes regressivas; desconfiança de pessoas adultas; fugas de casa. Em idosos, não há dados estatísticos confiáveis sobre o tema.20 Lesões da mucosa e da pele, sangramentos e infecções vesicais e vaginais podem ser sinais de abuso. Sinais comuns a crianças e idosos: pesadelos, terror noturno e dificuldades para dormir; ansiedade, tristeza, depressão e isolamento dos amigos e da família.

2) Indícios de abuso físico

Presença de dor, manchas e lesões físicas como queimaduras, cortes, hematomas, feridas e fraturas (incluindo fraturas antigas já consolidadas) não compatíveis com as causas alegadas; comportamento muito agressivo ou apático; problemas de indisciplina; sentimentos de baixa auto-estima e auto-imagem pobre; faltas freqüentes à creche ou pré-escola; relato de agressão dos pais, filhos, cuidadores e responsáveis em geral; passividade e comportamento retraído; sentimentos de tristeza; comportamento autodestrutivo e autolesivo; ansiedade e medos; revivescência das experiências de agressão; pesadelos; fuga de casa; dificuldade de confiar e demonstrar afeto pelos outros. As lesões de pele e contusões em idosos aparecem mais rapidamente que em crianças e também tendem a desaparecer mais vagarosamente, com duração de meses ao invés de uma ou duas semanas como em crianças, devido à menor vascularização, menor capacidade de regeneração e maior atrofia dos tecidos.8,17

3) Indícios de negligência

Padrão de crescimento deficiente em crianças e de desnutrição e desidratação em idosos; cansaço e falta de energia; necessidades não atendidas; enfermidades; vestimentas inadequadas ao clima. Como ocorrem em todas as classes sociais, é importante não confundir a negligência e o abandono com o grande número de situações extremamente difíceis geradas pela pobreza e pela miséria. Em idosos também é importante a avaliação de autonegligência, pois indivíduos que se opõem aos cuidados oferecidos podem não estar aptos a prover suas necessidades básicas diárias em matéria de higiene e nutrição, o que os levaria a apresentar problemas de saúde. Nesses casos, é necessário avaliar se essas pessoas já estariam com processos demenciais e cognitivos responsáveis pela autonegligência.17 O declínio na higiene pode ser um marcador forense de negligência.15

Problemas clínicos, como infecções, também não são raros em idosos. A negligência pode, por exemplo, fazer com que medicamentos para o controle de doenças metabólicas sejam dados em doses insuficientes, ou em excesso, a ponto de causar intoxicações graves. A queda ao solo, cuja principal complicação é a fratura de colo de fêmur, pode também ser favorecida por desatenção com a segurança do idoso frágil. Entretanto, a averiguação desses casos é feita em muito poucas ocasiões. Assim, as mesmas causas que levaram a esta complicação, quais sejam, a violência ou a negligência, podem continuar a funcionar e a aumentar a morbidade e mortalidade nesses casos. A mortalidade nos idosos vítimas de maus-tratos é três vezes maior do que nos indivíduos com a mesma faixa etária e que não sofrem este problema.15 Perda de peso, desnutrição e abuso de medicamentos podem ser alguns dos fatos clínicos que devem chamar a atenção quanto à possibilidade de abuso ou maus-tratos nos menores e nos idosos. A não aderência às prescrições, o descontrole do diabetes e da hipertensão em idosos pode estar na mesma linha de suspeita de maus-tratos, quando o seguimento da prescrição depende dos cuidadores ou familiares.

Em suma, baseados nos fatores de risco e nos casos mais freqüentes de abuso e maus-tratos, pode-se traçar um perfil do menor e do idoso mais vulneráveis a sofrer violência. O perfil de crianças vítimas de abuso pode ser resumido assim: menina, pertencente a família com alto nível de conflito conjugal, com pouca ligação parental, com alcoolismo dos pais, vivendo com padrastos e com problemas de atrasos ou deficiências. Em relação ao perfil do abusador, o maior número de casos é atribuído a homens que pertencem à família da vítima, mais especificamente pai (33%), padrasto (35%), avô (10%), tio (7,5%), mãe (5%) e irmão (3%).11 O protótipo de idoso vítima é aquele com comprometimento cognitivo, isolado socialmente, vivendo com pessoas com problemas mentais, especialmente alcoolismo e depressão.15,21 Não convém esquecer que a possibilidade de abuso e maus-tratos pode ser maior, tanto em termos de freqüência como de gravidade, se o médico parecer desatento ou negligente.

Avaliação forense da criança, do adolescente e do idoso nos casos de violência

O psiquiatra deve definir e explicitar para os envolvidos o seu papel na avaliação das situações de abuso e maus-tratos. Ele pode estar na função de psiquiatra forense ou como psiquiatra clínico e terapeuta. No primeiro caso, terá a tarefa de elaborar e apresentar laudos e pareceres voltados a avaliar a capacidade da criança e do idoso em testemunhar os indícios da ocorrência de abuso, as repercussões sobre a saúde mental do suposto abusado e os riscos de que mantenha contato com o suposto agressor. Como clínico, a preocupação maior é intervir junto à criança e ao idoso e seus responsáveis. Para tanto, precisará identificar as necessidades e os possíveis comprometimentos psicopatológicos apresentados pelo examinado. A avaliação psiquiátrica, em princípio, em um e em outro caso, realiza-se da mesma forma: anamnese e coleta de informações as mais completas possíveis e o exame do estado mental do paciente e seus responsáveis. Além dos responsáveis diretos, todos os informantes significativos devem ser ouvidos e os documentos existentes analisados. A história deve valorizar a forma e o conteúdo das alegações da vítima, atento à possibilidade de influência ou contaminação. Os sintomas físicos e comportamentais são indícios ou evidências que podem sugerir ou reforçar o diagnóstico clínico (sinais de trauma, estresse pós-traumático, ansiedade, depressão, dissociação, mudanças de padrões da sexualidade, desorientação espacial e temporal, dentre outros). A forma de entrevistar deve ser cuidadosa, de modo a evitar perguntas indutoras e não vitimizar novamente a criança ou o idoso. No caso das crianças, o uso de técnicas gráficas, testes e bonecos anatômicos podem ser úteis, mas apresentam limitações e só devem ser utilizados por profissionais experientes. O exame físico completo e acurado deve ser feito por pediatra, nas suas diferentes subespecialidades. Em idosos, o exame físico deve procurar lesões e contusões, escaras, sinais de subnutrição e desidratação, bem como indícios de descuido com a higiene quando os idosos necessitam de auxílio para suas atividades de vida diária.

O relatório forense deve conter identificação e qualificação do avaliador, a identificação do avaliado, as informações obtidas, descrição dos exames, resultados dos procedimentos realizados, o diagnóstico com sua codificação pelo DSM-IV22 ou CID-10,23 e, finalmente, incluir as conclusões, recomendações e respostas aos quesitos formulados.

Os direitos das crianças, adolescentes e idosos no Brasil: pontos comuns e complementares em ambos os estatutos

A Lei Federal 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), objetiva detalhar e regulamentar os direitos outorgados pela Constituição Federal (art. 227) a crianças e adolescentes e criar instrumentos legais que os assegurem. O ECA foi promulgado em 13 de julho de 1990 e substituiu a antiga visão menorista, pela qual a criança e o adolescente eram vistos como objeto. Assim, inaugurou nova etapa do Direito Brasileiro ao adotar a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente. Após 13 anos, na mesma perspectiva de proteção integral e com o objetivo de regulamentar os direitos fundamentais do idoso (art. 229 e 230 da Constituição Federal), foi promulgado o Estatuto do Idoso (EI) através da Lei Federal 10.741/03, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2004.1-2 Nesse sentido, o EI, em muitos artigos, é uma cópia do ECA, alterando-se as designações "criança e adolescente" por "idoso", com as necessárias adaptações. Tratam igualmente da política de atendimento e das entidades que lidam com esses segmentos da população, das infrações administrativas e das medidas judiciais pertinentes, regulando ainda o acesso à justiça e o papel do Ministério Público.

A Tabela 2 resume os principais pontos em comum e as especificidades de cada um desses documentos.

Assim como o ECA foi um ponto fundamental para o progresso da sociedade civil em direção a implementar os direitos da criança e do adolescente no Brasil, o mesmo se pode dizer sobre o EI, embora ainda recente a sua promulgação e entrada em vigor. Ambos legislam sobre os cuidados que a sociedade, a família e o Estado devem ter para com essas duas faixas etárias, estabelecem sanções para os que promovam a privação desses direitos e criam dispositivos institucionais em todos os níveis de funcionamento do Estado, seja municipal, estadual ou federal, no executivo, legislativo ou judiciário, para que todas as suas normas sejam atendidas. Trata-se de leis extremamente avançadas e suas aplicações in totum; no entanto, ainda se encontram muito incipientes, na medida em que dificuldades sociais, culturais, econômicas e de aparelhamento técnico do Estado ainda não permitam que sejam cumpridas como seria de se desejar.

Conclusão

A ética e o respeito aos direitos humanos devem ser os elementos norteadores das ações médicas e das políticas públicas. A violência contra crianças, adolescentes e idosos é mais comum do que aquela percebida pelos agentes de saúde e necessita ser ativamente pesquisada, tanto no contexto clínico como no âmbito social. Os médicos, especialmente os psiquiatras, assim como os demais profissionais de Saúde Mental, devem estar sensibilizados e capacitados para prevenir, identificar, diagnosticar e tratar os casos de maus-tratos e negligência nos dois pólos da vida, assim como para notificar as autoridades competentes, realizar perícias e elaborar laudos e pareceres solicitados.

O conhecimento do ECA e do EI são fundamentais para que os profisisonais de saúde que tratam de crianças e idosos identifiquem situações de risco, saibam como tomar as devidas providências e, assim, possam praticar uma medicina de mais qualidade e defensiva do direito de todos, incluindo os dos próprios médicos.

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  • Correspondência

    Jerson Laks
    Av. N. S. Copacabana, 749/802 - Copacabana
    22050-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006
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