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O renascimento da psiquiatria forense

EDITORIAL

O renascimento da psiquiatria forense

Dentre todas as especialidades médicas, a Psiquiatria é a que mais se depara com problemas legais e éticos.1 A razão para que isso ocorra é simples: nenhuma outra se dedica tão intensamente a questões relacionadas ao comportamento humano. Na verdade, é tal a riqueza de interações da Psiquiatria com o Direito, por exemplo, que a melhor denominação para a subespecialidade psiquiátrica que se dedica ao estudo das relações entre esses dois campos seria psiquiatria legal. Manteve-se, entretanto, neste Suplemento, a expressão "psiquiatria forense", em respeito à sua larga tradição entre nós.

O campo da psiquiatria forense abrange desde a prática forense em si, de natureza estritamente pericial, a prática penitenciária, em que se estabelece uma relação médico-paciente com pessoas privadas da liberdade, passa pelo tema dos direitos do paciente e da nova legislação em atenção à saúde mental e se completa com as questões de erro médico e de sua avaliação e prevenção.

De um ponto de vista histórico, o fenômeno que Piccinini2 logrou observar entre nós - o "renascimento" da Psiquiatria Forense - constata-se também em outros países ocidentais.3 No Brasil, essa sub-especialidade surgiu em meados do século XIX e experimentou grande desenvolvimento na primeira metade do século XX. A partir da década de 60, entrou em declínio. Dentre os fatores responsáveis para isso, podem ser arrolados os seguintes: pequena abrangência do campo, à época relacionada apenas a questões periciais e de clínica em ambiente prisional; pouca valorização de aspectos éticos e bioéticos na prática médica e psiquiátrica; estigma vinculado à prática da especialidade, uma vez que o país atravessava um período de autoritarismo político e melhores possibilidades de ganhos com a clínica psiquiátrica.

As mudanças nos cenários internacional e nacional acarretaram profundas alterações no exercício da Psiquiatria, com a valorização da prática forense e sua rápida expansão nas duas últimas décadas, pois os fatores inibidores de seu desenvolvimento foram rapidamente superados.4 Assim, enquanto no Brasil assistia-se ao fim do regime militar e iniciava-se o processo de abertura política, no plano internacional havia intenso movimento de revalorização dos direitos humanos e, dentre estes, dos direitos civis dos doentes mentais. Simultaneamente a isso, a bioética ocupava um espaço definitivo na assistência à saúde, trazendo novos parâmetros para a relação médico-paciente e despertando a consciência moral dos profissionais médicos.

Nesse contexto, atuar em ambientes prisionais deixou de representar um estigma e passou a receber especial valorização social, por tratar-se de atividade desenvolvida com um grupo humano especialmente vulnerável sob a perspectiva bioética.5 Além disso, a exigência de respeito aos direitos dos doentes mentais tornou necessária a presença, no cenário clínico, de especialistas capazes de atuar na interface Psiquiatria-Lei. Dentre esses especialistas, destacam-se os psiquiatras forenses.

Outro fator que merece especial referência é a proletarização da prática médica, hoje vitimizada por estratégias mercadológicas dos mais diversos matizes, como se vê em relação aos planos e seguros de saúde, cuja característica mais marcante é a exploração em larga escala do trabalho médico. Tais entidades, por sua ação danosa à atuação médica (remuneração irrisória, excesso de carga de trabalho e conseqüente insuficiência de atenção aos pacientes), acabam por favorecer a ocorrência de erros médicos. Neste cenário, a prática forense da medicina acabou por se tornar um refúgio relativamente seguro e à margem da ação dos seguros de saúde, com os honorários periciais fixados de acordo com as leis de um mercado em visível expansão.

É, pois, com imensa satisfação, que apresentamos aos leitores da Revista Brasileira de Psiquiatria este Suplemento de Psiquiatria Forense. A idéia nasceu há vários anos, com o objetivo de atender a pedidos de colegas residentes em regiões mais distantes dos grandes centros nacionais. Com poucas oportunidades de participarem de forma constante de eventos científicos de maior porte e ressentidos do reduzido número de publicações na área forense, traziam um pedido de ajuda. Os residentes em psiquiatria compuseram, também, um outro universo de colegas que percebeu a carência do ensino de Psiquiatria Forense em sua formação. A imensa maioria dos Programas de Residência Médica em Psiquiatria não se detém na área forense. Alguns incluem em seu conteúdo programático ralas noções teóricas, sem a prática necessária à formação de sólida base no campo.

Os temas foram escolhidos com base em sua importância na prática diária, não só do ponto de vista técnico, como também sob o prisma ético. Foram convidados autores com ampla experiência nos assuntos que abordam, a quem agradecemos pela generosa colaboração.

Desejamos, finalmente, registrar uma ausência que causa profundo sentimento de pesar. Trata-se de nosso querido amigo e parceiro de larga data, Cláudio Duque, que nos deixou durante a execução deste projeto. A ele estava cometida a co-autoria de artigo sobre transtornos da personalidade e psicopatia, tendo sido substituído por um dos organizadores (EAF). Sem dúvida, este Suplemento teria mais brilho se pudesse contar com sua inteligência, talento e experiência nas lides forenses. Com o falecimento de Cláudio Duque, vitimado por seu generoso coração, abre-se inestimável lacuna na psiquiatria forense brasileira.

Elias Abdalla-Filho; José G V Taborda

Referências

1. Taborda JGV, Chalub M, Abdalla-Filho E. Apresentação. In: Taborda JGV, Chalub M, Abdalla-Filho E. Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed; 2004.

2. Piccinini W. Apontamentos históricos sobre a psiquiatria forense no Brasil. In: Taborda JGV, Chalub M, Abdalla-Filho E. Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed; 2004.

3. Bursztajn HJ, Scherr AE, Brodsky A. The rebirth of forensic psychiatry in light of recent historical trends in criminal responsibility. Psychiatr Clin North Am. 1994;17(3):611-35.

4. Jager AD. Forensic psychiatry: a developing subspecialty. World Psychiatry. 2006;5(2):92.

5. Filho EA, Garrafa V. Psychiatric examinations on handcuffed convicts in Brazil: ethical concerns. Developing World Bioeth. 2002;2(1):28-37.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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