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Transtornos do controle do impulso: o retorno da monomania instintiva de Esquirol

EDITORIAL

Transtornos do controle do impulso: o retorno da monomania instintiva de Esquirol

Hermano Tavares

Ambulatório de Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso (AMJO), Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

O estudo dos transtornos do controle do impulso (TCI) tem seguido os passos do seu membro mais reconhecido: o jogo patológico (JP). Como categoria diagnóstica, o JP foi incluído na sessão denominada "Transtornos do Controle do Impulso Não Classificados em Outro Lugar" na terceira edição do DSM. 1 Sete anos depois, foi publicado o primeiro instrumento de reconhecimento de JP no American Journal of Psychiatry.2 A estrutura simples da South Oaks Gambling Screen (SOGS), traduzida para muitas línguas, ajudou a popularizar o diagnóstico. Desse ponto em diante, jogadores compulsivos puderam ser identificados por um conjunto de critérios objetivos, através de um instrumento confiável. O fim dos anos 80 testemunhou uma explosão geométrica de contribuições científicas originais em jogo.

A pesquisa com outros TCIs tem ficado atrás das investigações em JP, mas não por muito tempo. Uma rápida busca na PubMed mostra que o número de contribuições em TCIs dobrou nos últimos cinco anos quando comparado aos cinco anos anteriores. Atualmente, existe um grande interesse no reconhecimento, neurobiologia, psicopatologia e interface clínica da impulsividade, que é alimentada em parte pelas transformações sócio-econômicas deste princípio do terceiro milênio. Nunca antes na história da humanidade houve acesso maior a produtos, serviços e crédito. Além disso, fontes de informação na sociedade inundam as pessoas com notícias sobre novas oportunidades potencialmente relevantes e gratificantes, encurtando o tempo para se ponderar e decidir adequadamente. Assim, o autocontrole se tornou ao mesmo tempo um desafio e um objetivo para homens e mulheres da pós-modernidade, sendo a sua perda representada pelos TCIs, o seu antagonista natural.

Porém, preocupações a respeito das manifestações clínicas da impulsividade seguem a Psiquiatria moderna desde seus primeiros dias. Esquirol3 foi, provavelmente, o primeiro autor a providenciar um enquadre nosológico para TCIs. Ele criou o termo Monomania para descrever pacientes que apresentavam um transtorno focal da mente, que em todos os outros aspectos encontrava-se intacta. A síndrome era subdividida em três tipos: delirante, raciocinante e instintiva. As duas primeiras são referências clássicas de dois diagnósticos atuais, respectivamente transtorno delirante não esquizofrênico e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Mas o conceito de Monomania era muito abrangente, reunindo ao mesmo tempo síndromes psicóticas e não psicóticas, e por isso foi abandonado. Mesmo assim, outros precursores da Psiquiatria moderna se referiam à perda de controle em termos semelhantes. Kraepelin4 nomeou o comprar excessivo em mulheres de oniomania (do grego oné = compras e mania = loucura, frenesi) e comparou-o ao comportamento de jogar descontrolado identificado em homens. Bleuler5 incluiu oniomania entre os "impulsos reativos" juntamente com piromania e cleptomania.

Cleptomania (do grego kléptein = roubar), descrita pela primeira vez em 1816, foi o único TCI que reteve sua designação clássica. 6 Alguns poucos autores de origem hispânica se referem ao JP como ludomania e, embora oniomania soe mais preciso, por evitaruma associação apenas presumida com TOC, o termo compras compulsivas é usado mais frequentemente por ambos leigos e profissionais de saúde mental. Contudo, cleptomania, ludomania e oniomania trazem a monomania instintiva de Esquirol de volta para o debate científico nos ombros de uma crescente demanda por atenção clínica.

Este número especial da Revista Brasileira de Psiquiatria conseguiu reunir um grupo de autores líderes internacionais em TCI e áreas relacionadas. O artigo sobre jogo patológico de Weinstock et al. tem Nancy Petry como autora sênior e traz uma compilação útil tanto para quem busca os fatos essenciais sobre o diagnóstico, bem como uma boa atualização. É louvável também o esforço dos autores em estabelecer comparações entre estudos conduzidos em localidades distintas, incluindo o Brasil. Grant e Odlaug apresentam uma revisão abrangente sobre cleptomania associada a uma descrição de caso que integra muito bem teoria e prática. O texto sobre oniomania foi um interessante trabalho de cooperação entre autores nacionais e o professor Donald Black, nome de destaque em transtornos do impulso e particularmente em compras compulsivas. Neste artigo, o leitor poderá apreciar ambas as experiências internacional e nacional retratadas em um relato de caso e diretrizes hierarquizadas para o tratamento. O artigo de Williams e Potenza foca os aspectos neurobiológicos dos transtornos do impulso. Embora nesta área as perguntas ainda excedam as repostas, os autores organizaram uma revisão sistematizada dividida de forma didática em estudos de neuroquímica, neuroimagem e genética. Igualmente instrutivo é o artigo de Hodgins e Peden sobre as técnicas cognitivo-comportamentais, que inclui tabela e texto explicativos sobre como formular e executar estratégias terapêuticas individualizadas por caso. Por último, mas não menos importante, Richard Rosenthal apresenta uma investigação criteriosa das contribuições da teoria psicodinâmica no tratamento do jogo patológico, demonstrando que técnicas psicodinâmicas estão presentes em diferentes programas multi-modais eficazes. Um fato que reforça a necessidade urgente de mais estudos que investiguem a contribuição específica da abordagem psicodinâmica nos transtornos do impulso. Apesar de o escopo dos artigos apresentados ser em parte limitado aos três principais transtornos mencionados acima, o leitor notará que os princípios contidos neles são facilmente generalizáveis para outras psicopatologias do impulso, tornando este suplemento uma ferramenta clínica certeira.

Financiamento: Inexistente Conflito de interesses: o Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso recebeu apoio das seguintes companhias farmacêuticas: Lundbeck, Servier, Janssen-Cilag e Roche. Prof. Tavares foi palestrante da Janssen-Cilag.

  • 1
    American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, third edition. Washington (DC); 1980.
  • 2. Lesieur HR, Blume SB. The South Oaks Gambling Screen (SOGS): a new instrument for the identification of pathological gamblers. Am J Psychiatry 1987;144(9):1184-8.
  • 3. Esquirol JE. Des maladies mentales Paris: Baillière; 1838.
  • 4. Kraepelin E. Psychiatrie 8th ed. Leipzig: Verlag Von Johann Ambrosius; 1915. p. 409.
  • 5. Bleuler E. Textbook of Psychiatry New York (NY): McMillan; 1924.
  • 6. Grant JE. Kleptomania. In: Hollander E, Stein DJ. Clinical Manual of Impulse Control Disorders American Psychiatric Publishing, Inc; 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2008
  • Data do Fascículo
    Maio 2008
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