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Síndrome de De Clèrambault: uma revisão bibliográfica

The De Clèrambault's syndrome: a bibliographic revision

Resumos

A síndrome de De Clèrambault (ou erotomania) consiste na convicção delirante, por parte do paciente, de que alguém de posição social mais elevada o ama. Acredita-se que privação sexual seja um fator psicodinâmico importante no desenvolvimento dessa condição, mas fatores orgânicos relacionados com sua etiologia continuam sendo investigados. Pretende-se, com este estudo, revisar o que a literatura médica traz de mais relevante sobre essa doença e suas causas. Para tanto, foram consultadas as bases de dados MEDLINE e LILACS, e os trabalhos mais adequados ao propósito da revisão foram examinados. Constata-se que a erotomania é pouco divulgada na literatura científica, podendo não ser tão rara quanto atualmente se propõe. A maior parte de sua explicação etiológica é pautada em bases psicodinâmicas pertinentes, sem, contudo, relações comprovadas de causalidade com seu quadro clínico. O avanço nas pesquisas neurobiológicas poderá trazer maior precisão ao diagnóstico e ao tratamento dos pacientes erotomaníacos.

Classificação; Delírio; Transtornos psicóticos; Psicopatologia; Síndrome; Comportamento sexual; Psicotrópicos


De Clèrambault's syndrome (or erotomania) consists in a delusional conviction, by the patient, in which someone of higher social status has fallen in love with him or her. Sexual privation can be an important psychodinamic factor on the development of this condition, but organic factors related to its genesis continue on investigation. This study revises the most important aspects that the literature brings us about this disease and its causes. The databases MEDLINE and LILACS have been consulted, and the most appropriate articles were examined. It is established that erotomania is not much found in the scientific literature, and, probably, it isn't as rare as it has been proposed. The major part of its etiologic explanation is based on psychodinamic factors, without, however, confirmed relation of cause with its clinic presentation. The progress in the neurobiologic researches will improve, perhaps, the accuracy of diagnose and treatment of these patients.

Classification; Delirium; Psychotic Disorders; Psychopathology; Syndrome; Sexual Behavior; Psychotropic drug


ATUALIZAÇÃO

Síndrome de De Clèrambault: uma revisão bibliográfica

The De Clèrambault's syndrome: a bibliographic revision

Luís Carlos Calil; João Ricardo Terra

Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Luís Carlos Calil Rua Doutor Paulo Pontes, 64 - Centro 38010-180 Uberaba, MG, Brasil Tel./Fax: (34) 3312-7142 E-mail: lc.calil@terra.com.br

RESUMO

A síndrome de De Clèrambault (ou erotomania) consiste na convicção delirante, por parte do paciente, de que alguém de posição social mais elevada o ama. Acredita-se que privação sexual seja um fator psicodinâmico importante no desenvolvimento dessa condição, mas fatores orgânicos relacionados com sua etiologia continuam sendo investigados. Pretende-se, com este estudo, revisar o que a literatura médica traz de mais relevante sobre essa doença e suas causas. Para tanto, foram consultadas as bases de dados MEDLINE e LILACS, e os trabalhos mais adequados ao propósito da revisão foram examinados. Constata-se que a erotomania é pouco divulgada na literatura científica, podendo não ser tão rara quanto atualmente se propõe. A maior parte de sua explicação etiológica é pautada em bases psicodinâmicas pertinentes, sem, contudo, relações comprovadas de causalidade com seu quadro clínico. O avanço nas pesquisas neurobiológicas poderá trazer maior precisão ao diagnóstico e ao tratamento dos pacientes erotomaníacos.

Descritores: Classificação; Delírio; Transtornos psicóticos; Psicopatologia; Síndrome; Comportamento sexual; Psicotrópicos/uso terapêutico

ABSTRACT

De Clèrambault's syndrome (or erotomania) consists in a delusional conviction, by the patient, in which someone of higher social status has fallen in love with him or her. Sexual privation can be an important psychodinamic factor on the development of this condition, but organic factors related to its genesis continue on investigation. This study revises the most important aspects that the literature brings us about this disease and its causes. The databases MEDLINE and LILACS have been consulted, and the most appropriate articles were examined. It is established that erotomania is not much found in the scientific literature, and, probably, it isn't as rare as it has been proposed. The major part of its etiologic explanation is based on psychodinamic factors, without, however, confirmed relation of cause with its clinic presentation. The progress in the neurobiologic researches will improve, perhaps, the accuracy of diagnose and treatment of these patients.

Keywords: Classification; Delirium; Psychotic Disorders; Psychopathology; Syndrome; Sexual Behavior; Psychotropic drug/therapeutic use

Introdução

A idéia de que amor e loucura possam manter alguma relação tem uma história bastante longa, com casos relatados nos escritos de Hipócrates, Plutarco e Galeno; diversos médicos dos séculos XVII e XVIII descreveram variantes patológicas do amor, como a ninfomania (furor uterinus), a melancolia erótica e a erotomania (amor insanus).1

A constatação de delírios eróticos, na ausência de uma anormalidade psiquiátrica evidente, tem sido associada ao nome de De Clèrambault,2 psiquiatra francês que, em 1921, descreveu cinco casos de erotomania (as terminologias "síndrome de De Clérambault" e "síndrome de Clérambault" também estão registradas na literatura). Um ano antes ele apresentou sua classificação das psicoses passionais, identificando muita semelhança entre elas, como "o mesmo afeto exaltado, a mesma predominância de sentimentos, o mesmo poder emocional e o mesmo tipo de paixão mórbida".3

Mais recentemente, boa parte da atenção dirigida à erotomania tem sido focada em sua existência como entidade psiquiátrica em separado da esquizofrenia ou de outras psicoses clássicas.1 Diversos autores advogam que a erotomania deva ser considerada como uma forma particular de esquizofrenia ou de outro transtorno psiquiátrico.

Revisão bibliográfica

Uma busca informatizada nas bases de dados MEDLINE e LILACS, sem limite de tempo, com os termos "síndrome and Clèrambault and erotomania", forneceu 106 trabalhos. Foram incluídos apenas artigos nos idiomas português, espanhol, inglês e francês, sendo excluídos 41. Outros 34 artigos foram excluídos por fugirem ao tema ora proposto - referiam-se à síndrome de Kandinsky-Clèrambault, a alterações psiquiátricas gerais em condições clínicas de fundo orgânico e a desfechos de casos psiquiátrico-forenses. Das 31 referências restantes, excluiu-se cartas e editoriais, sendo selecionadas 21 e obtidos 16 artigos (cinco não foram localizados em bibliotecas nacionais). Foram acrescidas mais sete referências por busca ativa.

A procura por revisões de literatura nas fontes MEDLINE e LILACS, com a estratégia "erotomania and delusion", resultou nas referências de apenas três trabalhos, sendo um deles em russo, de 2001 (na verdade, um estudo de 10 casos) e os outros dois em inglês, de 1989 e 2000. Esse transtorno, que não atinge 200 casos relatados na literatura médica, já foi referido em vários idiomas,4 sendo esta, porém, a primeira revisão bibliográfica produzida em literatura científica de língua portuguesa. Nesta revisão, a abordagem se estendeu do diagnóstico à terapêutica.

Epidemiologia

A incidência da erotomania é desconhecida, mas parece não ser exclusiva de uma única cultura ou sociedade.4 É variável no que se refere à idade, raça ou estado socioeconômico. Os pacientes do sexo feminino predominam nas amostras clínicas gerais; porém, em amostras forenses, a maioria dos pacientes é do sexo masculino. Comumente, não é detectada como uma síndrome específica, sendo anexada a categorias psiquiátricas maiores.

Apesar de ter sido observada uma significante história familiar da doença em pacientes erotomaníacos, os estudos realizados até o momento não demonstraram nenhuma causa genética para ela.5 A ocorrência de erotomania em deficientes mentais parece ser muito rara, com poucos casos descritos na literatura,6 mas acredita-se que a erotomania não deva ter uma ocorrência tão rara na população geral quanto atualmente se propõe.7

Etiologia

Na exploração dos aspectos etiológicos da erotomania, Segal observou que muitos pacientes eram pouco atraentes, solitários e que buscavam compensações psicológicas por meio de construções delirantes narcísicas projetadas em pessoas admitidas como mais valorizadas socialmente,1,6 ou, nas palavras de Kraepelin, buscavam "uma compensação psicológica para os desapontamentos da vida (real)."5 De Clèrambault sugeriu que, estimulados por uma falta de real aprovação sexual, os delírios erotomaníacos desenvolver-se-iam como meio de satisfazer essa demanda, provendo o paciente de uma gratificação narcísica que a realidade, até então, não lhe havia proporcionado.1

Seeman propôs que, em alguns pacientes, delírios erotomaníacos fixos serviriam como defesa contra impulsos heterossexuais agressivos (os pacientes inconscientemente saberiam da impossibilidade de ocorrer uma relação sexual real). Em outro grupo de pacientes, agora com delírios recorrentes, ela reutilizou a interpretação freudiana da erotomania como defesa contra desejos homossexuais e como tentativa de incorporar poder e sucesso à própria imagem,8 corroborando a crença de Freud de que a erotomania seria uma das diversas permutações do centro de conflito de paranóia numa pessoa.

Foi observado que os pacientes que desenvolvem esses sintomas paranóides nunca tiveram uma relação satisfatória de confiança com suas próprias mães.3 De acordo com Erikson, o senso de confiança seria derivado de experiências infantis precoces e muito das relações de confiança na vida adulta dependeriam da qualidade dessas relações entre mãe e filho. Um fator comum entre a erotomania e os ciúmes patológicos, por exemplo, poderia ser a falha nessa confiança básica entre mãe e filho, na infância. Isso poderia resultar em dificuldades para outros tipos de relacionamentos íntimos, como o da vida conjugal.9

Também já foi proposto que a erotomania poderia se desenvolver a partir da busca por uma figura paterna segura, erotizada e inatingível, bem como da necessidade de o paciente afastar de si impulsos homossexuais.4 Embora muitos autores tenham notado tendências homossexuais em alguns de seus pacientes, elas não apareceram de forma clara em todos, ou mesmo na maioria dos casos relatados. A hipótese de a erotomania advir de amor próprio negado, por um paciente narcisista, e projetado noutra pessoa foi levantada, mas à maioria dos autores pareceu duvidoso que um indivíduo narcisista negaria amor a si mesmo para projetá-lo nos outros.4

Raskin e Sullivan entenderam a erotomania como uma adaptação que afastaria tristeza e solidão do paciente, fornecendo-lhe uma fonte extra de proteção e de controle em seqüência a períodos de perda ou iminente ameaça de perda.10

Como se vê, não há consenso quanto a uma única explanação psicodinâmica para a erotomania. Apesar de ainda existir considerável controvérsia quanto aos exatos aspectos fenomenológicos e etiológicos da doença, casos de pacientes com antecedentes orgânicos poderão, talvez, elucidar algumas questões.11

Testes neurofisiológicos, por exemplo, sugeriram que a erotomania poderia estar associada a déficits na flexibilidade cognitiva e na leitura associativa, mediadas pelo sistema frontal subcortical, e a déficits nas habilidades verbal e de visão espacial. Déficits no funcionamento da visão espacial ou lesões no sistema límbico, particularmente nos lobos temporais, em combinação com experiências amorosas ambivalentes e de isolamento afetivo, poderiam contribuir com as interpretações delirantes na erotomania. Déficits na flexibilidade cognitiva poderiam contribuir com a manutenção de crenças delirantes.

O sistema límbico medeia a interpretação do ambiente ao acrescentar uma resposta afetiva aos estímulos externos.12 Assim, interpretações inadequadas do meio poderiam ser causadas por anormalidades límbicas. O conteúdo específico do delírio, entretanto, seria determinado pela cultura e pelas experiências pessoais de cada paciente. O desenvolvimento dos delírios pode originar-se de percepção ou interpretação anormais do meio, mas a manutenção de uma crença delirante, em face de informações distorcidas, tem sido atribuída a um funcionamento deficiente do sistema frontal. O lobo pré-frontal desempenha um importante papel no automonitoramento e nos testes de realidade. A integridade dessas funções é crítica para o reconhecimento das interpretações delirantes,12 que ocorrem, com maior probabilidade, em pacientes privados de relacionamentos íntimos, porém altamente motivados a tais experiências. Esse desejo por relacionamento pode ser contrabalançado por temores de rejeição e de intimidade.13 Somado ao isolamento e à forte ambivalência emocional, é provável que esses pacientes tenham dificuldade em compreender as comunicações não verbais que ocorrem nas relações afetivas, podendo distorcê-las.

Alguns autores propõem dois subtipos de pacientes com erotomania: aqueles com déficits viso-espaciais e aqueles com disfunções límbicas, particularmente nos lobos temporais.12 Um fator que pode contribuir para a manutenção dos delírios erotomaníacos é a rigidez cognitiva, surgida de disfunção frontal subcortical, a qual pode resultar em inabilidade de alterar um sistema de crenças. Disfunções nessas mesmas áreas têm sido associadas a outros transtornos delirantes.

Em outros estudos, embora fossem observadas anormalidades em ambos os hemisférios cerebrais por meio de eletroencefalograma, ficou constatado que o comprometimento no hemisfério cerebral direito era maior, o que estava de acordo com as observações feitas em outros casos de erotomania.14 Acredita-se que, com exames mais apropriados e maior investigação, mais pacientes erotomaníacos poderão mostrar anormalidades orgânicas passíveis de tratamentos mais específicos.15

Características clínicas

De Clèrambault descreveu a erotomania como uma síndrome de emoções patológicas que segue uma evolução ordenada, passando pelos estágios de esperança, despeito e rancor.16-18 Essa evolução foi considerada por ele como invariável, sendo a fase de rancor a mais importante delas e, na verdade, o que mais bem caracteriza toda a síndrome, ao invés do estágio de amor. Quando o paciente erotomaníaco alcança o estágio de rancor, depois de repetidas rejeições que sofre, não raro exerce retaliações contra seu objeto de amor ou contra terceiros. Embora atos físicos ou sexuais sejam incomuns, esses pacientes podem trazer significativo impacto psicológico e social à vida de suas vítimas, em conseqüência de perseguições por períodos prolongados, que variam de chamadas telefônicas a declarações de amor em ambientes públicos e movimentados. O paciente pode desejar ter relações sexuais com o objeto de seu amor delirante, pode tentar seduzi-lo para esse fim ou passar a acreditar, inclusive, que está gestando um filho dele.19 Os homens tendem mais à perseguição de seus objetos que as mulheres.5

Embora Kraepelin soubesse que o sistema erótico delirante fosse construído vagarosamente, atentava à possibilidade de desencadeamento do quadro frente a um único e específico incidente, suficiente para convencer o paciente do amor de seu objeto.1

Nas descrições clássicas, o surgimento dos delírios é abrupto, o que nem sempre é observado na prática clínica. O objeto é o primeiro a supostamente "declarar" seu amor, que pode ser ou não correspondido pelo sujeito. Uma observação marcante é a de que o típico paciente, homem ou mulher, leva uma vida reservada, socialmente inexpressiva; poucos são casados, muitos são privados de contato sexual por anos, a maioria ocupa cargos subalternos, e alguns são muito pouco atraentes. Esse comportamento pode resultar de traços de personalidade hipersensível, desconfiança acentuada ou assumida superioridade em relação às outras pessoas. Por outro lado, os objetos de amor delirante, na realidade ou em fantasia, são sempre superiores em inteligência, posição social, aparência física, autoridade ou uma combinação destes atributos. Quase sempre, o paciente sente-se como que livrado de sua solidão pelo amor que o objeto supostamente lhe dedica.

O paciente pode até rejeitar com aversão o objeto de amor, porém, no mais das vezes, o aceita, e se apaixona por ele de maneira obsessiva. A despeito de vigorosas negações de interesse por parte do objeto, o delírio de estar sendo amado persiste, usualmente por anos, algumas vezes havendo necessidade de hospitalizações ou de ações legais que impeçam a perseguição da vítima pelo paciente. O paciente crê no intenso amor que a outra pessoa tem por ele, ao mesmo tempo em que preserva certo senso de inocência ao considerar que o objeto de seu amor jamais será feliz sem a sua companhia.

Também compõe o quadro clínico a crença de que o objeto de amor iniciou o caso amoroso através de mensagens cifradas, olhares significativos, mensagens de jornal, de televisão ou mesmo telepáticas.17 O paciente mantém uma contínua vigilância sobre o objeto de seu amor e uma simpatia quase universal é causada entre os circunstantes pelo romance em curso. O paciente pode racionalizar a conduta paradoxal do objeto de amor, interpretando as rejeições que sofre como afirmações secretas de amor, testes de fidelidade ou tentativas de despistar outras pessoas de seu "romance". De Clèrambault afirmava que essas manifestações raramente estão todas presentes num mesmo paciente, mas a conduta paradoxal nunca falta, e é o dado mais importante a ser considerado.4

Ainda segundo De Clèrambault, a erotomania tanto pode ser uma síndrome clínica transitória e sobreposta a transtornos paranóides, como pode ser um dos pródromos da esquizofrenia, ou mesmo uma entidade clínica autônoma.2 Alucinações tácteis de toques ou carícias feitas pelo objeto de amor delirante foram relatadas por Kraepellin.5

Classificação

Além de descrever a síndrome, De Clèrambault a subdividiu numa forma pura, na qual a erotomania constitui, por si só, toda a psicose, e numa forma secundária, na qual é evidente a associação da erotomania com outras psicoses delirantes.4

A forma pura teria um início súbito e intempestivo, em claro estado de consciência. A origem dos delírios seria passional e eles seriam o desenvolvimento da idéia de que o objeto de amor é quem ama mais ou quem ama sozinho. Na conceprioridade e quase sempre escolhem um amante de posição social ou profissional mais próxima à delas. Essas pacientes são usualmente diagnosticadas como esquizofrênicas.

Na forma recorrente, os pacientes são mais sadios do ponto de vista psiquiátrico, mais ativos sexualmente, porém são mais impulsivos. Embora seus delírios sejam, em geral, de curta duração, são intensos e recorrentes. Esses pacientes tendem a escolher amantes que lhes representem maior proeminência social ou poder. Pensam que são amados por um bom tempo, quando então renunciam a esse amor para reiniciar seus delírios com uma outra pessoa.

Hollender e Callahan subdividiram a erotomania em uma forma primária, na qual o delírio erotomaníaco se apresenta isolado de outras manifestações psiquiátricas, e uma forma secundária, na qual o delírio é parte de um distúrbio psiquiátrico mais amplo.20 A erotomania secundária tem sido associada à esquizofrenia, ao transtorno esquizoafetivo, ao transtorno bipolar de humor e a síndromes orgânicas agudas ou crônicas.13

Diagnóstico

Esta condição está incluída na Classificação Internacional de Doenças, em sua décima revisão (CID-10), como um tipo especial de Transtorno Delirante Persistente (F22.0). Esta categoria reúne transtornos caracterizados pela presença de idéias delirantes persistentes e que não podem ser classificados entre os transtornos orgânicos, esquizofrênicos ou afetivos. São caracterizados pela ocorrência de uma idéia delirante única ou de um conjunto de idéias delirantes aparentadas, em geral persistentes, e que, por vezes, permanecem por toda a vida do paciente. A presença de alucinações auditivas e a evidêninvés de atração sexual.22 Os critérios diagnósticos para transtornos delirantes no DSM-IV são: delírios de conteúdo lógico, com duração mínima de um mês; não preencher critérios para o diagnóstico de esquizofrenia (alucinações tácteis ou olfativas podem estar presentes nos transtornos delirantes, desde que relacionadas ao tema dos delírios); exceto pelo impacto dos delírios ou de suas ramificações, o funcionamento mental do paciente não está acentuadamente prejudicado, seu comportamento não é visivelmente bizarro; se episódios de humor ocorrerem durante os delírios, sua duração será breve; a perturbação observada não se deve aos efeitos diretos de uma substância ou de uma condição médica geral.

Ellis e Mellsop sugeriram os seguintes critérios operacionais para o diagnóstico de erotomania:23 convicção delirante de comunicação amorosa; objeto de muito alta posição (social); o objeto do amor delirante é o primeiro a se "apaixonar; o objeto do amor delirante é o primeiro a tentar avanços amorosos; início súbito dos delírios (em até sete dias); objeto fixo do amor delirante (se outros surgirem, terão significado apenas transitório); o paciente racionaliza o comportamento paradoxal do objeto de seu amor; curso crônico do quadro; ausência de alucinações (se presentes, devem ser tácteis e claramente relacionadas com a erotomania).

Para a diferenciação entre erotomania recorrente ou fixa, como foi sugerido por Seeman, são também utilizados os seguintes critérios:8 objeto fixo ou variável do amor delirante; curso crônico ou recorrente da doença; objeto do amor delirante tomado como de posição social ou profissional mais próximas às do paciente, ou que represente para ele maior proeminência social e poder; contato prévio ou não com o objeto do amor delirante; sujeito psicologicamente dependente ou independente.

Alguns autores sugerem que o diagnóstico de erotomania possa ser feito, simplesmente, pela presença de uma convicção delirante de comunicação amorosa (é um, mas não o único critério para Ellis e Mellsop), após se excluírem outras desordens psiquiátricas ou orgânicas.2

Curso e prognóstico

De Clèrambault, Kraepelin e quase todos os autores modernos têm ressaltado a persistência dos delírios eróticos (embora algumas vezes de reduzida intensidade) a despeito das confrontações com a realidade ou das tentativas médicas e legais de dissuadir o paciente de suas crenças delirantes. A erotomania é uma doença crônica, relativamente refratária ao tratamento, tanto farmacológico, quanto psicoterápico.7 O próprio De Clèrambault descreveu um caso em que os delírios de uma paciente sua persistiram por 37 anos.1 Em alguns casos, a doença chega a ser incapacitante.

A contínua busca do paciente pelo objeto de seu amor delirante, com intrusões que se intensificam no decorrer do tempo, pode culminar com ameaças ou retaliações em resposta às repetidas rejeições que sofre. Há um caso relatado de um profissional de saúde que foi processado por sua paciente (erotomaníaca), sob a acusação de tê-la molestado sexualmente.19 Existe um potencial para comportamento violento e vingativo em pacientes erotomaníacos, com taxas de comportamento agressivo chegando a 57% em amostras de pacientes do sexo masculino extraídas de arquivos da prática forense.19

Segal salientou que a vida de uma vítima de um paciente erotomaníaco pode ser desestruturada por anos de perseguição e, em casos extremos, por violência, sobretudo se o paciente for do sexo masculino.5

Tratamento

Dos medicamentos disponíveis, os neurolépticos são os mais utilizados para o tratamento de pacientes erotomaníacos, embora seus efeitos sejam modestos, com pouca ação sobre o núcleo delirante. Quando agem, servem para diminuir a intensidade dos delírios e das idéias de referência que os acompanham;1 a minoria dos pacientes alcança completa remissão de seus sintomas.5

Ocasionalmente, eletroconvulsoterapia pode ser usada como tratamento, mas raramente produz uma melhora significativa nos quadros, algumas vezes levando a uma mudança moderada no curso da doença. Não há evidências de que psicoterapia individual possa ajudar os pacientes erotomaníacos; alguns deles têm de ser afastados de seus objetos de amor, ao menos temporariamente, por meio de hospitalizações, mandados judiciais ou prisão. Alguns autores acreditam que separações forçadas sejam tão efetivas no tratamento dos delírios quanto o são os medicamentos.1

Há relatos de rápida resolução de delírios erotomaníacos com hospitalização e tratamento com risperidona.13 O sucesso de pimozide no alívio dos sintomas de alguns pacientes, nos quais foi observada associação de delírios erótico-paranóides com alucinações sexuais somáticas, dá maior suporte à possibilidade desse uso em casos com apresentação semelhante.6

A maioria dos casos publicados de erotomania secundária ao transtorno de humor bipolar mostrou uma melhora dos sintomas simultâneos de mania e erotomania quando se empregam estabilizadores de humor como lítio, carbamazepina e valproato de sódio.5 Grande parte das descrições indica cronicidade e reduzida resposta ao tratamento para pacientes erotomaníacos com esquizofrenia, mesmo quando em uso de neurolépticos. Entretanto, o tratamento incisivo às desordens subjacentes parece oferecer os melhores resultados no alívio dos sintomas da erotomania secundária.5

Discussão

Cabe a discussão de validade de construto na nosologia psiquiátrica, que se baseia em síndromes clínicas de validade e reprodutibilidade incertas. Validade de construto é a demonstração de que, com os critérios utilizados, diagnostica-se realmente aquilo que se quer diagnosticar. Na relação com a classificação de doenças, é um processo que possibilita a compreensão dos mecanismos fisiopatológicos dos transtornos, onde são utilizados os seguintes critérios: quadro clínico distinto, achados laboratoriais, ocorrência familiar e consistência no tempo. Com isso, podemos distinguir, por exemplo, síndromes de Cushing de etiologias diferentes: uma causada por uso prolongado de altas doses de corticóides, outra causada por tumores de supra-renal, e uma terceira causada por secreção excessiva de hormônios por estímulos hipofisários ou de outros tumores secretores, como o de pequenas células do pulmão. Podem ter bastante semelhança clínica, mas a etiologia, o prognóstico e o tratamento são distintos. Em psiquiatria, os construtos diagnósticos são hipotéticos - daí se encontrar uma grande variedade de quadros clínicos com o mesmo diagnóstico - e já se observou, até meados do século XX, uma excessiva disseminação de síndromes com os nomes de seus autores, sem fundamentos para serem classificadas como categorias diagnósticas. Daí a pertinência da questão: erotomania é uma doença em si ou um sintoma presente em diferentes doenças? Espera-se que o aprimoramento dos meios diagnósticos venha elucidar, como o fez com a síndrome de Cushing, pontos sobre a erotomania que até o momento permanecem incertos.

A ocorrência de erotomania é pouco divulgada na literatura médica (em língua portuguesa existe apenas um caso relatado17) e parece ser subdiagnosticada, o que pode contribuir ainda mais para a cronicidade que a condição já detém por natureza. Apesar dos escassos estudos realizados a seu respeito e dos dados epidemiológicos pouco concretos disponíveis na atualidade, alguns autores sugerem que a sua freqüência não deva ser considerada tão baixa quanto se acredita. Trata-se, pois, de um tema relevante no que concerne às repercussões que a doença pode ter tanto sobre a vida do paciente quanto sobre a vida de terceiros, com impacto psicológico e social considerável. Apesar disso, não se pode ignorar que a transferência erótica também pode ter um efeito integrador. Ela pode ser vista como um meio de proteger o sujeito contra um profundo e doloroso estado de solidão, no qual o seu ego se sentiria ameaçado.4,24

Outro dado a ser considerado é o de que a evolução clínica da erotomania pode não ser tão uniforme quanto a literatura sugere. Mesmo em relação ao surgimento abrupto dos delírios, classicamente descrito, não existe consenso, o que nos leva a questionar sobre algum funcionamento patológico desses pacientes tempos antes de seus sintomas mais graves aflorarem. Numa amostra da literatura analisada por nós, por exemplo, uma das pacientes mais crônicas (seus delírios, até então, duravam 24 anos) era muito bem sucedida profissionalmente. Com isso, é plausível a idéia de que somente a presença dos sintomas erotomaníacos não seja suficiente para predizer o curso clínico da doença,7 embora algumas vezes ela possa ser incapacitante.

Um dos pontos de concordância entre os diversos artigos foi a observação de que o típico paciente tem uma vida socialmente reservada, é privado de contato sexual por períodos prolongados, ocupa, em geral, cargos subalternos, além de ser muito pouco atraente. A nosso ver, esses dados devem ser levados em consideração como elementos de investigação epidemiológica orientada ao diagnóstico.

Apesar de vários critérios terem sido propostos para o diagnóstico de erotomania, alguns autores vêm sugerindo que ela possa ser diagnosticada, simplesmente, pela presença de convicção delirante de comunicação amorosa,2 o que poderia trazer, em nosso entendimento, ainda mais dificuldades à diferenciação nosológica entre erotomania e outras entidades psiquiátricas ou orgânicas.

Conclusão

Em razão dos escassos achados neurobiológicos, constata-se que a maior parte das explicações etiológicas são feitas em bases psicodinâmicas. São lógicas e pertinentes, contudo, com os dados disponíveis até o momento, e não há evidências suficientemente robustas para que se estabeleça uma relação de causalidade entre elas e os sintomas da doença. Podem ser proveitosas pesquisas na área de neuroimagem funcional, avaliando o metabolismo cerebral, bem como na área de pesquisa genética, para melhor delinear o diagnóstico e trazer resultados mais homogêneos e eficazes à terapêutica.

Recebido: 12.03.2004

Aceito: 03.01.2005

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

Versão original aceita em Português

Este trabalho foi realizado na Disciplina de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      12 Mar 2004
    • Aceito
      03 Jan 2005
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