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O euro e os trabalhadores: uma visão latino-americana

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O euro e os trabalhadores: uma visão latino-americana

Carlos Eduardo Carvalho

Que efeitos o surgimento do euro poderá ter sobre os trabalhadores do Brasil e da América Latina? O que se pode esperar em termos de aumento de emprego e de melhoria das condições de trabalho e de vida? Muito pouco, infelizmente, ou quase nada, pelo menos a curto e médio prazos.

Esta resposta negativa talvez pareça algo desconcertante. Afinal, a criação da moeda européia reveste-se de grande significado histórico, e não apenas pelos seus prováveis impactos econômicos em todo o mundo. Como desdobramento de um longo processo de aproximação e convergência de interesses entre nações que escolheram a via da negociação e dos acordos, capaz de sobrepor-se a um passado de desconfianças mútuas e de guerras devastadoras, o euro tem estimulado as esperanças de aproximação entre os povos e de um futuro de paz para a humanidade.

Ainda assim, e como seria de se esperar, permanece em aberto um amplo leque de questões de grande relevância, inclusive no terreno monetário e cambial, foco das atenções nos primeiros meses da nova moeda. Não está claro, por exemplo, quais são as possibilidades de que o euro consiga rivalizar com o dólar como moeda de transação e como reserva de valor. Ainda mais controvertidas são as avaliações dos efeitos da nova ordem monetária sobre os trabalhadores da União Européia, em termos de oferta de emprego e de direitos trabalhistas e sociais.

No Brasil, o debate sobre o euro concentrou-se até agora nos seus impactos sobre os mercados financeiros internacionais, dedicando-se menor atenção aos efeitos sobre o nosso país e sobre a América Latina, mesmo em relação ao comércio externo e aos fluxos financeiros para a região. Esforço ainda menor têm merecido questões mais delimitadas, como os impactos do euro sobre os trabalhadores em nossos países.

Análises deste tipo encontram dificuldades importantes. Talvez por se tratar de indagações muito originais, formuladas em meio a um quadro internacional complexo e marcado por sucessivas ondas de instabilidade, não estão suficientemente delineados os parâmetros para a discussão. Ainda não se sabe, por exemplo, em que medida a unificação monetária marcará de fato uma mudança substancial no relacionamento entre a Europa e a América Latina, ou se irá se revestir muito mais de elementos de continuidade em um processo já bastante antigo e complexo. Há, ainda, as consideráveis diferenças que os países latino-americanos apresentam entre si e dentro de cada um deles, inclusive quanto à percepção de seus interesses externos e dos posicionamentos a adotar frente ao contexto internacional.

Feitas estas ressalvas, é possível afirmar que o surgimento do euro não deverá trazer mudanças relevantes para os trabalhadores em nossos países. O investimento europeu na América Latina tende a continuar crescendo, como vinha ocorrendo antes, sem que as filiais das empresas européias se afastem do atual modelo de tratamento do trabalho: corte de direitos e de remuneração, redução do emprego e subcontratação, flexibilização dos contratos de trabalho e aumento da insegurança. Parece igualmente pouco provável que os países europeus venham a modificar seu posicionamento nas grandes questões internacionais e a procurar uma efetiva aproximação com os países da periferia, o que poderia ampliar os espaços para políticas de defesa de nossos interesses. Na agenda diplomática, as dificuldades para ampliar nossas vendas para a Europa devem continuar ocupando boa parte das atenções, favorecendo os esforços dos EUA para avançar na integração do continente americano sob sua hegemonia.

O quadro internacional: precarização das relações de trabalho e "globalização"

As análises dos impactos do euro sobre os trabalhadores latino-americanos devem levar em conta a sua ocorrência simultânea com dois grandes processos que se desenrolam em escala mundial.

O primeiro deles é o amplo ataque aos direitos dos trabalhadores e aos direitos sociais em geral, tendo como um dos seus objetivos centrais a precarização das relações de trabalho. A flexibilização e a desmontagem dos direitos sociais e trabalhistas combinam-se com a crescente ameaça de desemprego para enfraquecer a capacidade dos trabalhadores de resistir ao corte de remunerações, ao aumento do ritmo e da duração da jornada e à piora das condições de trabalho. Promovida pelo grande capital e pelos governos dos países centrais, esta ofensiva afeta os trabalhadores de todo o mundo.

Em nossos países, além da atuação dos governos, o processo é conduzido ativamente pelas filiais das grandes empresas norte-americanas, japonesas e européias. Suas iniciativas de precarização das relações de trabalho espalham-se sobre o conjunto dos trabalhadores de cada país, inclusive os do setor informal. A desmontagem progressiva dos direitos nos contratos de trabalho nos setores mais modernos da indústria brasileira, dominados pelas filiais das empresas multinacionais, e o crescimento da subcontratação por estas empresas ampliam a insegurança dos trabalhadores de todo o setor formal e estimulam a crescente informalização das relações de trabalho em todo o país.

O outro grande processo a considerar é a crescente internacionalização econômica, a chamada "globalização", caracterizado como processo assimétrico, concentrador de vantagens para os países centrais e de restrições para os países da periferia. É o caso das pressões sobre nossos países para a abertura comercial, sem que haja contrapartidas equivalentes nos mercados protegidos dos países mais ricos, nos EUA, no Japão e na Europa. A abertura e a desregulamentação na área financeira e cambial amplificam os efeitos negativos das flutuações dos fluxos de capitais voláteis e dos movimentos especulativos, muitas vezes de dimensões muito superiores à capacidade de reação e de defesa dos países da periferia. A história recente das crises cambiais na América Latina e na Ásia infelizmente é rica em exemplos desta natureza.

A abertura e a desregulamentação são também assimétricas por não alcançarem o mercado de trabalho. O exemplo mais eloqüente aparece nas cercas de arame farpado e nos muros ao longo da fronteira do México com os EUA, apesar do NAFTA e de toda a integração entre os dois países. O México continua mantendo a exigência de visto de entrada para brasileiros, incomum na América Latina, ao que se sabe por exigência de Washington, para dificultar a migração de brasileiros para os EUA.

A desigualdade de direitos para trabalhadores nacionais e imigrantes contribui decisivamente para a precarização das relações de trabalho nos países centrais. A resistência à extensão dos direitos e da cidadania a seus próprios imigrantes fortalece em nossos países a convicção de que, para os governos e as empresas desses países, a exigência de "cláusula social" resume-se a um instrumento de defesa dos seus interesses comerciais.

A abertura comercial e a integração internacional poderiam ser benéficas para nós, apesar dos problemas, se fossem processos efetivamente de mão dupla, com distribuição proporcional dos ônus e das vantagens. Como parte mais frágil, defendemos que a abertura externa seja acompanhada pelo desenvolvimento de institucionalidade internacional adequada, com instâncias de representação e foros democráticos respeitados por todas as partes, e que, neles, possamos interferir e defender nossos interesses.

A liberalização da imigração e da circulação de pessoas e a garantia do direito dos imigrantes ao trabalho e à proteção social devem ser entendidas como elementos indispensáveis para o avanço da abertura e da integração em outros aspectos da vida econômica. Deve ser defendido com firmeza o princípio de igualdade de direitos em todas as relações de trabalho dentro de cada país e de aproximação progressiva entre os países em todo o campo dos direitos sociais e do trabalho.

Diante dos efeitos combinados destes dois processos, para nossos países e para nossas organizações sindicais e democráticas, é importante que se ampliem os espaços de negociação e a margem de manobra diante das pressões e restrições colocadas pelo quadro internacional e interno. A diferenciação de posições entre os países centrais tende a ser benéfica, ampliando nosso leque de opções e de negociação. A ampliação da hegemonia norte-americana é desfavorável, em especial para nós, incluídos que estamos no que se considera como sendo uma região de interesse dos EUA. O aumento das disputas comerciais, econômicas e políticas entre EUA, Europa e Ásia, em temas de nosso interesse, nos daria mais espaços para escolhas e para a construção de alternativas. Em todos estes aspectos, as esperanças trazidas pelo euro não se materializaram, pelo menos até aqui.

Os possíveis efeitos indiretos e diretos do euro

Impactos indiretos do euro sobre os trabalhadores de nossos países são aqueles que podem influenciar de modo significativo o ambiente econômico e político, interno e externo, afetando assim, de forma indireta, o emprego e as condições de trabalho. Há dois grupos de questões deste tipo.

O primeiro é o que se pode chamar de efeito imitação, ou demonstração: o exemplo de unificação monetária de países com a densidade econômica e política da Europa afeta o imaginário e o leque de políticas a serem consideradas em outras regiões do planeta.

O surgimento da proposta de moeda comum no Mercosul exemplifica este efeito. Mesmo durante a crise do início de 1999, a unificação monetária foi apontada como instrumento para estabilizar e estimular o comércio e o investimento dentro da região, de modo a ampliar vantagens comparativas frente aos mercados mundiais. Além disto, a moeda única poderia fortalecer a posição externa de economias médias e pequenas, reduzindo o custo de enfrentamento de situações adversas, típicas de um período de abertura financeira e de instabilidade dos fluxos de capitais internacionais.

Neste terreno, contudo, por conta do contexto político e ideológico dominante em nossos países, as propostas de unificação monetária até aqui apresentadas estão muito impregnadas por forte conteúdo deflacionista e de prevalência absoluta da estabilidade monetária sobre os demais componentes da política econômica. Resulta daí a vinculação das propostas de unidade monetária com políticas de corte de gasto público, flexibilização das relações de trabalho e eliminação de direitos sociais, liberalização da economia e confiança desmesurada na ação dos "mercados" como instrumento de crescimento econômico e como limite rígido para a autonomia dos governos.

O segundo grupo de questões em que o euro poderia provocar impactos indiretos sobre as condições de vida e de trabalho em nossos países compreende as expectativas de possíveis mudanças no posicionamento dos países europeus nas grandes questões internacionais, o que poderia aumentar os espaços para políticas de defesa dos interesses dos países de renda baixa e média.

As possibilidades de que o euro traga novidades relevantes nestes diferentes terrenos depende de como evoluirá a Eurolândia. Com o risco de simplificação excessiva, podem ser divisadas duas grandes linhas de evolução possíveis. Uma delas seria a tendência de a Eurolândia fechar-se e isolar-se, buscando agir como potência mundial por meio de padrões de relacionamento externo semelhantes aos do atual posicionamento dos EUA em relação à própria América Latina.

A segunda hipótese, desejável para nós, é a de a Eurolândia buscar aproximar-se efetivamente de outras regiões do mundo, com iniciativas comerciais e diplomáticas de níveis variados. Tais movimentos deveriam ser menos ambiciosos que os próprios acordos europeus, por certo, mas capazes de oferecer a nossos países alternativas e espaços de manobra mais amplos, diante da forte pressão dos EUA por um alinhamento em torno de suas propostas. Além de posicionamentos mais firmes no combate ao protecionismo e na regulação dos fluxos de capitais, poderiam estar aí incluídas iniciativas para ampliar o ordenamento político internacional, fortalecendo foros dotados de legitimidade e força para dificultar as ações isoladas e para gerar espaços de negociação efetivos entre as nações ricas e as demais.

Duas grandes decepções no período recente reforçaram o pessimismo nesta área. Uma delas foi a incapacidade dos países europeus de desenvolver alguma alternativa política na questão do Kosovo, prevalecendo, afinal, o alinhamento com as posições dos EUA e da Inglaterra. A guerra contra a Iugoslávia foi conduzida sem respeito aos foros legítimos, com base apenas no entendimento e na vontade das grandes potências, e com a passagem da OTAN à condição de foro político internacional, o que é inaceitável.

Não há dúvidas de que as ações do regime iugoslavo merecem o repúdio internacional, mas nada autoriza que as grandes potências decidam, a seu livre talante, e no âmbito de uma aliança militar, que este ou aquele governo é ilegítimo e que tais ou quais ações justificam que um país seja atacado e arrasado. Não deve ter sido por acaso que os EUA e a Inglaterra se empenharam em realizar uma guerra no continente europeu no ano do euro, aproveitando-se inclusive da preocupante incapacidade da Eurolândia de viabilizar um caminho independente.

A segunda grande decepção tem sido a indiferença dos países europeus diante dos problemas da América Latina desde o segundo semestre de 1998, na seqüência das ondas de instabilidade desencadeadas pelas crises da Ásia e da Rússia. A ausência de políticas independentes da Eurolândia para apoiar nossos países nos momentos mais delicados sinalizou o pouco interesse dos países europeus em criar alternativas diante das pressões dos EUA para acelerar a ALCA e esvaziar o Mercosul.

Não se trata de querer que os governos europeus venham a colocar nossos interesses acima daqueles que lhes são próprios. A questão é saber se, além da defesa de seus próprios interesses, a Eurolândia irá considerar também outras possibilidades de relacionamento externo. É o caso de uma abertura comercial bilateral efetiva, com acordos comerciais mais amplos com nossos países; de presença mais firme nos foros internacionais, em defesa de reivindicações dos países emergentes; da criação de fatos políticos em que possamos nos apoiar para enfrentar as pressões dos interesses locais desejosos de uma integração pura e simples com os EUA.

Passando às implicações diretas do euro para os trabalhadores, pode-se defini-las como sendo aquelas que afetam diretamente a oferta de emprego e as condições de trabalho, em especial no que se refere ao investimento das empresas européias nos países emergentes. Trata-se de avaliar se a implantação do euro trará mudanças na estratégia de atuação destas empresas em nossos países.

Uma possibilidade neste sentido seria de que o euro fortaleceria e ampliaria o espaço de atuação e de concorrência entre as matrizes, pela supressão de barreiras e restrições no ambiente europeu, além da redução de diversas despesas com o surgimento de um mercado de capitais, bancário e cambial comum. Haveria assim um processo de fusões e ganhos de escala que "selecionaria" as empresas mais fortes e as induziria a enfrentar com mais vigor as suas concorrentes norte-americanas e asiáticas, o que estimularia o aumento do investimento produtivo na América Latina.

Mesmo que isto ocorra, contudo, estas filiais deverão continuar reforçando as práticas de precarização do trabalho com que estão hoje comprometidas. Não parece haver motivos sólidos para se supor que as empresas européias e suas filiais procurem desenvolver uma prática distinta nas relações de trabalho ou no perfil de oferta de seus produtos. Um mau exemplo aparece na recente onda de aquisição de bancos brasileiros por instituições européias, atribuível, em boa medida, ao aumento da concorrência no setor financeiro na Europa. Na sua ofensiva latino-americana, as filiais dos bancos europeus têm intensificado o corte de postos de trabalho, o aumento do ritmo e da duração das jornadas e o desrespeito aos direitos dos bancários.

Ainda assim, poderia haver um efeito positivo caso as empresas européias decidissem investir mais pesadamente no Brasil e na América Latina em geral. Mesmo com os problemas citados, aumentos expressivos do investimento direto teriam efeitos positivos sobre a oferta de emprego e até mesmo sobre a qualidade dos postos de trabalho, pela ampliação da concorrência. Contudo, não há motivos para acreditar que apenas pelo fortalecimento do euro as empresas européias possam querer desafiar as filiais norte-americanas em escala global, à exceção dos setores e nichos em que já detêm posição de liderança.

Conclusões

O surgimento do euro poderá ter repercussões significativas para a economia e os mercados financeiros em escala mundial, especialmente se a nova moeda conseguir alcançar posição significativa como reserva de valor e como meio de pagamento nas transações mundiais. Poderá igualmente gerar efeitos substantivos na economia dos países europeus, sob diversos aspectos.

Para as economias latino-americanas, contudo, em especial aquelas que integram o Mercosul ou dele se aproximam, os efeitos até aqui têm sido de pouca relevância e nada indica que esta tendência possa mudar de forma substantiva. Não há sinais de que a União Européia pretenda agir de modo mais firme em busca de uma aproximação significativa com a América Latina, o que ampliaria nosso leque de opções diante das pressões norte-americanas. Ao contrário, os acontecimentos recentes sugerem mais a aceitação pelos países europeus da manutenção da liderança dos EUA nos termos atuais, sem espaço para disputas de influência nas regiões consideradas como áreas de interesse preferencial de Washington.

Os impactos mais diretos sobre os trabalhadores em nossos países devem ser muito reduzidos. A esperada expansão dos investimentos diretos das empresas européias pode gerar algum aumento de emprego, desejável, por certo, mas de pouca expressão. Quanto às condições de trabalho, as filiais das empresas européias deverão manter e intensificar o padrão vigente de corte de direitos e precarização das relações de trabalho.

Outubro de 1999

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 1999
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