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Vasculite cutânea induzida por propiltiouracil

Propylthiouracil-induced cutaneous vasculitis

Resumos

O uso do propiltiouracil (PTU) está associado ao desenvolvimento de diferentes auto-anticorpos, entre eles anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA), que estão envolvidos na patogênese das vasculites sistêmicas ANCA-associadas (VSAA). Será relatado o caso de um paciente do sexo feminino, de 46 anos, que apresentou vasculite cutânea durante o uso de PTU como terapêutica para doença de Graves. O ANCA com padrão perinuclear (p-ANCA) foi positivo em títulos > 1/320, porém anticorpos antimielo-peroxidase (MPO) não foram detectados. A biópsia de pele revelou uma vasculite leucocitoclástica. Houve melhora clínica em dez dias após a retirada do PTU e optou-se pelo iodo radioativo (I131) para o tratamento do hipertireoidismo. O p-ANCA manteve-se positivo em títulos > 1/320 em duas medidas, realizadas oito meses e quatro anos após a suspensão do PTU.

anticorpos anticitoplasma de neutrófilos; vasculite; propiltiouracil; hipertireoidismo


The use of propylthiouracil (PTU) is associated with the development of different auto-antibodies, amongst them are antineutrophil cytoplasmic antibodies (ANCA) that are involved in the pathogenesis of ANCA associated systemic vasculitis. The case of a 46-years old woman who presented cutaneous vasculitis when taking PTU for Graves' disease is reported. Perinuclear ANCA (p-ANCA) was positive with titer > 1/320, but anti-myeloperoxidase antibodies were not detected. Skin biopsy showed leucocytoclastic vasculitis. The patient improved within ten days after withdrawing PTU and the resolution of hyperthyroidism was achieved with radioiodine (131I). The p-ANCA test remained positive > 1/320 eight months and four years after PTU withdrawal.

antineutrophil cytoplasmic antibodies; vasculitis; propylthiouracil; hyperthyroidism


RELATO DE CASO CASE REPORT

Vasculite cutânea induzida por propiltiouracil

Propylthiouracil-induced cutaneous vasculitis

Fernanda Manente MilanezI; Leonardo Atem Gonçalves A. CostaI; Fábio Freire JoséII; Milvia M. S. S. EnokiharaIII; Alexandre Wagner Silva de SouzaIV

IResidente de clínica médica do Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de Oliveira (HSPE-FMO)

IIMédico-assistente da disciplina de Clínica Médica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM)

IIIAssistente doutora da disciplina de Patologia da Unifesp/EPM

IVAssistente doutor da disciplina de Reumatologia da Unifesp/EPM

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alexandre W. S. Souza Rua Botucatu, 740, disciplina de reumatologia CEP 04023-900, São Paulo, SP e-mail: alexandre_wagner@uol.com.br

RESUMO

O uso do propiltiouracil (PTU) está associado ao desenvolvimento de diferentes auto-anticorpos, entre eles anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA), que estão envolvidos na patogênese das vasculites sistêmicas ANCA-associadas (VSAA). Será relatado o caso de um paciente do sexo feminino, de 46 anos, que apresentou vasculite cutânea durante o uso de PTU como terapêutica para doença de Graves. O ANCA com padrão perinuclear (p-ANCA) foi positivo em títulos > 1/320, porém anticorpos antimielo-peroxidase (MPO) não foram detectados. A biópsia de pele revelou uma vasculite leucocitoclástica. Houve melhora clínica em dez dias após a retirada do PTU e optou-se pelo iodo radioativo (I131) para o tratamento do hipertireoidismo. O p-ANCA manteve-se positivo em títulos > 1/320 em duas medidas, realizadas oito meses e quatro anos após a suspensão do PTU.

Palavras-chave: anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, vasculite, propiltiouracil, hipertireoidismo.

ABSTRACT

The use of propylthiouracil (PTU) is associated with the development of different auto-antibodies, amongst them are antineutrophil cytoplasmic antibodies (ANCA) that are involved in the pathogenesis of ANCA associated systemic vasculitis. The case of a 46-years old woman who presented cutaneous vasculitis when taking PTU for Graves' disease is reported. Perinuclear ANCA (p-ANCA) was positive with titer > 1/320, but anti-myeloperoxidase antibodies were not detected. Skin biopsy showed leucocytoclastic vasculitis. The patient improved within ten days after withdrawing PTU and the resolution of hyperthyroidism was achieved with radioiodine (131I). The p-ANCA test remained positive > 1/320 eight months and four years after PTU withdrawal.

Keywords: antineutrophil cytoplasmic antibodies, vasculitis, propylthiouracil, hyperthyroidism.

INTRODUÇÃO

O hipertireoidismo é uma doença endócrina auto-imune bastante prevalente, e as medicações de escolha para o tratamento são, com muita freqüência, o propiltiouracil (PTU) e o metimazol. O tratamento com PTU geralmente tem duração prolongada e diversos efeitos colaterais são descritos, entre os quais agranulocitose, anemia aplástica e pneumonia intersticial(1,2).

O uso do PTU tem sido relacionado ainda à formação de auto-anticorpos, como anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA), e às manifestações de doenças auto-imunes, que incluem vasculite cutânea e lúpus induzido por drogas (LID). A vasculite induzida por PTU geralmente cursa com a presença de p-ANCA e com manifestações musculoesqueléticas e vasculite cutânea, que freqüentemente regridem após a suspensão do medicamento(1-3).

Outras medicações como hidralazina, penicilamina, procainamida e alopurinol também podem estar relacionadas a quadros de vasculites ANCA-associadas, porém com freqüência bem menor da relatada com o uso das medicações antitireoidianas, em especial o PTU(1).

A associação entre a positividade dos ANCAs e as vasculites é conhecida, porém sua fisiopatologia ainda não é totalmente compreendida(3). Neste artigo, será descrito o caso de uma paciente que apresentou manifestações de vasculite cutânea com a presença de ANCA relacionada ao uso de PTU.

RELATO DE CASO

Paciente feminina, 46 anos, passou a apresentar lesões inicialmente em coxa direita que evoluíram, em três dias, para abdômen e membros. Ao mesmo tempo, relatou dor intensa no lobo da orelha direita seguida do surgimento de placa eritêmato-violácea com necrose central. A paciente referia lesões cutâneas similares recorrentes, além de artralgias de grandes articulações nos últimos seis meses. As lesões melhoravam espontaneamente em média três dias após o início. Ela recebera o diagnóstico de doença de Graves há três anos e estava em uso de PTU, 300 mg por dia desde então. A paciente utilizava ainda enalapril para hipertensão e ciclobenzaprina para fibromialgia. Negava histórico de atopia. Ao exame físico, apresentava múltiplas placas eritêmato-violáceas nos membros inferiores (Figura 1) e no lobo da orelha direita. Algumas dessas placas apresentavam centro necrótico. Não foram observados bócio, artrite ou outras anormalidades ao exame físico.


O hemograma, a urina tipo I e a creatinina foram normais à admissão, a velocidade de hemossedimentação (VHS) foi de 35 mm na primeira hora, proteína C reativa (PCR) de 2,1 mg/dL (referência < 0,8 mg/dL) e a dosagem de hormônios tireoidianos (TSH e tiroxina livre) foi normal. Anticorpos antitireoglobulina e antitireoperoxidase foram positivos. Fator antinuclear (FAN) e sorologias para hepatite B e C foram negativos. A pesquisa de ANCA foi positiva, com padrão perinuclear e um título > 1/320, mas não foram detectados anticorpos anti-MPO, pelo método ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay). Biópsia de pele em uma lesão ativa demonstrou vasculite leucocitoclástica (Figura 2).


O PTU foi suspenso, e a paciente apresentou melhora das lesões cutâneas e das dores articulares em dez dias. Na evolução, a paciente apresentou sinais de hipertireoidismo e diminuição dos níveis de TSH. Três meses após a retirada da medicação, foi submetida ao tratamento com iodo radioativo I131 e evoluiu com hipotireoidismo, necessitando utilizar levotiroxina. Foram realizadas duas novas pesquisas de ANCA: uma após oito meses e outra após quatro anos da retirada do PTU. Ambas foram positivas com padrão perinuclear em títulos > 1/320. A paciente não apresentou novas manifestações de vasculite durante o seguimento de quatro anos.

DISCUSSÃO

A paciente relatada apresentou uma vasculite cutânea, artralgias e p-ANCA positivo (1/320) após uso prolongado de PTU. A relação causal entre as manifestações clínicas e o uso do PTU é sugerida pela melhora do quadro logo após a retirada da droga(1-3). Além disso, o acometimento do lobo da orelha é freqüentemente descrito em séries de casos de vasculites relacionadas ao PTU, e essa característica pode ajudar na suspeita dessa associação(4-6).

O ANCA é um importante marcador sorológico de vasculites sistêmicas como a granulomatose de Wegener, síndrome de Churg-Strauss e poliangiíte microscópica(7). Os padrões perinuclear (p-ANCA) e citoplasmático (c-ANCA) são observados por meio de imunofluorescência indireta. MPO e proteinase-3 (PR3) são os principais antígenos para p-ANCA e c-ANCA, respectivamente, e sua detecção é usualmente feita por intermédio do ELISA(2,8). Outros antígenos como catepsina-G, lactoferrina e elastase humana leucocitária são também associados ao p-ANCA(2,9,10).

Propiltiouracil é uma medicação antitireoidiana comumente prescrita que tem sido associada à indução de ANCA e à vasculite ANCA-associada após uso prolongado(10-12). A prevalência de ANCA em pacientes que tomam PTU varia de 4% a 46%. Por sua vez, a incidência de vasculite é bem menor, chegando até 1,4%(3,10,11). Anticorpos anti-MPO têm sido classicamente associados às manifestações de vasculites induzidas pelo PTU(3,11,13). Contudo, alguns estudos demonstraram a presença de múltiplos antígenos associados aos ANCAs, além da mieloperoxidase(9,11). A presença de anticorpos contra múltiplos antígenos foi encontrada em 92,6% dos pacientes com manifestações de vasculite em comparação com apenas 31,6% nos pacientes sem vasculite(1,9,12). Embora o anti-MPO tenha sido detectado em 67% a 92,6% dos pacientes com vasculite induzida por PTU, antilactoferrina e antielastase humana leucocitária foram também detectados em 81,5% e 55,6% dos casos, respectivamente(1,9). A ausência de anticorpos anti-MPO nesse caso indica que outros antígenos além da mieloperoxidase podem estar envolvidos na patogênese das manifestações apresentadas pela paciente. Infelizmente, a identificação desses antígenos não está disponível de forma rotineira, sendo utilizada normalmente apenas para fins científicos.

Neste caso relatado, o p-ANCA persistiu positivo e em altos títulos, mesmo quatro anos após a suspensão do PTU e apesar de a paciente ter se mantido assintomática. Não há no momento estudos longitudinais que tenham avaliado se essa persistência aumenta o risco de recaída do quadro de vasculite. Em algumas séries e relatos de casos, a maioria dos pacientes manteve-se assintomática, apesar de o p-ANCA ter-se mantido positivo por meses ou anos após a retirada do PTU(2,12-14).

A doença de Graves é uma enfermidade relacionada à produção de auto-anticorpos, e a superposição de fenômenos auto-imunes em um mesmo paciente é fato há muito conhecido. Muitos autores questionam se a ocorrência de quadros auto-imunes induzidos pelo PTU nesses pacientes seria mais freqüente em virtude desse fato. Não está bem esclarecido se isso poderia explicar a indução de ANCA em usuários de PTU(1,12). É sugerido que o acúmulo de metabólitos do PTU em neutrófilos possa tornar a mieloperoxidase imunogênica, como também outras enzimas presentes nos grânulos dos neutrófilos. A partir daí, ocorreria a ativação de outros neutrófilos, provocando a liberação de enzimas e produção de radicais livres e citocinas, resultando em dano vascular(1,15).

A retirada da medicação é a principal medida recomendada para os pacientes que desenvolvem vasculite cutânea com ANCA positivo, induzida pelo PTU, pois freqüentemente leva à resolução completa do quadro(1,2,4). O uso de corticóides e imunossupressores só é necessário em casos graves, quando há envolvimento de órgãos nobres, como os acometimentos renal ou pulmonar(2,8).

Em conclusão, o caso aqui descrito é útil para alertar clínicos e reumatologistas sobre esse evento adverso que pode ocorrer a partir do uso prolongado do PTU. O reconhecimento imediato das manifestações e a retirada da droga são essenciais para a boa evolução dessa enfermidade.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Silene Keusseyan por sua ajuda na realização de exames laboratoriais.

Recebido em 20/8/2007

Aprovado, após revisão, em 13/9/2008

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

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  • Endereço para correspondência:
    Alexandre W. S. Souza
    Rua Botucatu, 740, disciplina de reumatologia
    CEP 04023-900, São Paulo, SP
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008

    Histórico

    • Aceito
      13 Set 2008
    • Recebido
      20 Ago 2007
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