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Hanseníase que simula esclerose sistêmica: relato de caso Trabalho desenvolvido na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Hospital de Clínicas, Serviço de Reumatologia, Curitiba, PR, Brasil.

Introdução

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa crônica, causada pelo Mycobacterium leprae, altamente contagiosa, mas com baixa morbidade devido à resistência de grande parte da população a essa doença. Sua prevalência mundial tem diminuído desde a introdução da poliquimioterapia, mas, apesar disso, o Brasil não alcançou a meta de eliminação da doença, ganha apenas da Índia em número absoluto de casos.11 Lastória JC, de Abreu MAMM. Leprosy: review of the epidemiological, clinical, and etiopathogenic aspects. Part 1. An Bras Dermatol. 2014;89:205-218. A hanseníase apresenta um amplo espectro de manifestações clínicas, pode ser um desafio diagnóstico principalmente nos primeiros anos da doença. Algumas dessas manifestações assemelham-se a quadros de doenças reumatológicas.22 Lee JY, Park SE, Shin SJ, Kim CW, Kim SS. Case of lepromatous leprosy misdiagnosed as systemic sclerosis. J Dermatol. 2014;41:343-345.,33 Ribeiro SLE, Guedes EL, Pereira HLA, Souza LS. Manifestações sistêmicas e ulcerações cutâneas da hanseníase: diagnóstico diferencial com outras doenças reumáticas. Rev Bras Reumatol. 2009;49:623-626. Relatamos um caso de hanseníase com espessamento cutâneo, reabsorção de falange distal e telangectasias em face que simula esclerose sistêmica.

Relato de caso

Paciente masculino de 69 anos, com quadro iniciado havia quatro anos de esclerodactilia associado a cianose e palidez de extremidades não relacionadas ao frio. Sem história de ulcerações digitais, mas com progressiva reabsorção de falanges distais evidenciada na evolução clínica. Apresentava ainda sintomas de polineuropatia sensitiva em mãos e pés e telangiectasias em face. Um ano antes do diagnóstico houve o aparecimento de lesões cutâneas em cotovelos, com redução de sensibilidade local. Não apresentava queixa articular, dispneia ou disfagia. Havia história de contato íntimo com parente portador de hanseníase seis anos antes do início dos sintomas. A investigação prévia para hanseníase com biópsia de pele resultou negativa.

Na avaliação atual foram evidenciados espessamento cutâneo distal e de nervo ulnar bilateral, reabsorção das falanges distais (fig. 1), telangiectasias em face, além de lesões hipoestésicas, infiltradas e eritematosas em ambos os cotovelos. Exames laboratoriais foram normais e a radiografia de mãos demonstrou a reabsorção das falanges distais (fig. 2). A capilaroscopia não foi feita. O paciente foi submetido a nova biópsia, que confirmou o diagnóstico de hanseníase tuberculoide. Paciente foi orientado sobre o tratamento e a avaliação dos contatos íntimos e mantém seguimento com a dermatologia.

Figura 1
Espessamento cutâneo e reabsorção das falanges distais.

Figura 2
Radiografia de mãos que evidencia acrosteólise.

Discussão

A hanseníase apresenta diversas manifestações clínicas, que dependem da resposta imunológica do hospedeiro. Na forma tuberculoide, há uma resposta eficiente mediada por células, enquanto a forma virchowiana se caracteriza por imunidade humoral. Encontram-se, entre esses dois extremos, as formas intermediárias, que refletem variações graduais da resistência ao bacilo.44 Pereira HLA, Ribeiro SLE, Sato EI. Manifestações reumáticas da hanseníase. Acta Reumatol Port. 2008;33:407-414.

Nas fase iniciais, o paciente pode apresentar somente sintomas cutâneos e neurológicos, sem demonstrar sinais de envolvimento de outros órgãos.22 Lee JY, Park SE, Shin SJ, Kim CW, Kim SS. Case of lepromatous leprosy misdiagnosed as systemic sclerosis. J Dermatol. 2014;41:343-345. O acometimento musculoesquelético é o terceiro mais frequente.55 Chauhan S, Wakhlu A, Agarwal V. Arthritis in leprosy. Rheumatology. 2010;49:2237-2242. Em estudo com 70 pacientes com hanseníase, Vengadakrishnan et al. mostraram que 61,42% apresentaram manifestação reumatológica, a artrite é a mais comum.66 Vengadakrishnan K, Saraswat PK, Mathur PC. A study of rheumatological manifestations of leprosy. Indian J Dermatol Venereol Leprol. 2004;7:6-8. Um estudo brasileiro, por outro lado, mostrou que apenas 6,1% de 1.257 pacientes hansênicos apresentaram acometimento articular.77 Pereira HLA, Ribeiro SLE, Pennini SN, Sato EI. Leprosy-related joint involvement. Clin Rheumatol. 2009;28:79-84.

Podem ocorrer, também, sintomas sistêmicos e a presença de autoanticorpos.22 Lee JY, Park SE, Shin SJ, Kim CW, Kim SS. Case of lepromatous leprosy misdiagnosed as systemic sclerosis. J Dermatol. 2014;41:343-345. Ribeiro et al. determinaram o perfil de anticorpos de 158 pacientes com hanseníase, com e sem comprometimento articular. A frequência de anticorpos anticardiolipina e anti beta-2 glicoproteína I foi significativamente maior nos pacientes com hanseníase do que nos controles saudáveis.88 Ribeiro SLE, Pereira HLA, Silva NP, Sato EI. Autoanticorpos em pacientes com hanseníase, com e sem comprometimento articular, no Estado do Amazonas. Rev Bras Reumatol. 2009;49:547-561. Elbeialy et al. demonstraram que a presença de anticorpos anticardiolipina foi associada a presença do fenômeno de Raynaud em pacientes hansênicos.99 Elbeialy A, Strassburger-Lorna K, Atsumi T, Bertolaccini ML, Amengual O, Hanafi M, et al. Antiphospholipid anti-bodies in leprotic patients: a correlation with disease manifestations. Clin Exp Rheumatol. 2000;18:492-494.

Já foram descritos na literatura casos de hanseníase erroneamente diagnosticados como lúpus eritematoso sistêmico, vasculite, artrite reumatoide33 Ribeiro SLE, Guedes EL, Pereira HLA, Souza LS. Manifestações sistêmicas e ulcerações cutâneas da hanseníase: diagnóstico diferencial com outras doenças reumáticas. Rev Bras Reumatol. 2009;49:623-626. e esclerose sistêmica. Essa última é uma doença autoimune que causa acúmulo excessivo de colágeno, leva a esclerose cutânea e fibrose de órgãos internos. Lee et al. também relataram um caso de hanseníase que simulava esclerose sistêmica. O paciente foi erroneamente diagnosticado como portador dessa doença devido à similaridade das lesões cutâneas, fenômeno de Raynaud e a positividade de alguns anticorpos. O espessamento cutâneo foi posteriormente interpretado como edema cutâneo de longa data secundário a placas hansênicas, e não como esclerodermia verdadeira.22 Lee JY, Park SE, Shin SJ, Kim CW, Kim SS. Case of lepromatous leprosy misdiagnosed as systemic sclerosis. J Dermatol. 2014;41:343-345.

O paciente do nosso relato foi inicialmente diagnosticado como portador de esclerose sistêmica por apresentar espessamento cutâneo nas mãos, fenômeno de Raynaud, telangectasias, reabsorção das falanges distais e devido ao fato de a biópsia de pele inicial não ter evidenciado a presença de BAAR. A reabsorção da falange distal ocorre em 20-25% dos pacientes com esclerose sistêmica e está fortemente associada com a isquemia digital grave, sugere que seja decorrente de atrofia isquêmica.1010 Johnstone EM, Hutchinson CE, Vail A, Chevance A, Herrick AL. Acro-osteolysis in systemic sclerosis is associated with digital ischaemia and severe calcinosis. Rheumatology. 2012;51:2234-2238. Na hanseníase, as alterações da falange distal podem ser de vários tipos, como defeito focal, irregularidades, destruição completa ou estreitamento concêntrico, ocorre em 19-45% dos pacientes.1111 Rothschild BM, Rothschild C. Skeletal manifestations of leprosy: analysis of 137 patients from different clinical settings in the pre- and post-modern treatment eras. J Clin Rheumatol. 2001;7:228-37.

Apesar de ter apresentado sintomas comuns a essas duas doenças, nosso paciente também apresentava anestesia em bota e luva e não foram observados sinais de acometimento de outros órgãos, demonstrados pela ausência de disfagia e dispneia e pelos testes de função pulmonar dentro dos padrões da normalidade. Dessa forma, a hanseníase se mostrou como o diagnóstico mais provável e se confirmou após nova biópsia de pele.

A hanseníase ainda tem uma prevalência considerável no Brasil e o atraso no diagnóstico e tratamento pode resultar em deformidades e perda funcional. Além da artrite, apresenta muitas outras semelhanças clínicas e laboratoriais com as doenças autoimunes. Assim, deve ser aventada pelo reumatologista como hipótese diagnóstica em pacientes com acometimento musculoesquelético, principalmente se apresentarem comprometimento de nervos periféricos.

  • Trabalho desenvolvido na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Hospital de Clínicas, Serviço de Reumatologia, Curitiba, PR, Brasil.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2016
  • Aceito
    11 Ago 2016
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