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Miopatia necrosante paraneoplásica – relato de caso

Introdução

A miopatia necrosante imunomediada é forma rara e recentemente descrita de miopatia inflamatória idiopática, sendo caracterizada como miopatia necrosante com infiltrado inflamatório mínimo ou ausente à biópsia do músculo. O quadro clínico de fraqueza muscular proximal simétrica e início agudo ou subagudo pode ser confundido com polimiosite ou dermatomiosite. Essa afecção tem ampla variedade de desfechos publicados, desde a progressão rápida sem remissão até a recuperação completa. Até onde saibamos, no momento, não há caso publicado de miopatia necrosante imunomediada no Brasil e nenhum na América Latina relacionado com câncer. Aqui, descrevemos um caso de miopatia necrosante paraneoplásica secundária a um adenocarcinoma tubo-ovariano.

Relato de caso

Mulher de 61 anos, casada, branca foi internada com um quadro de quatro semanas de duração cuja queixa principal era de dor e fraqueza progressiva nas extremidades inferiores, com ascensão para os membros superiores, associando-se a disfagia e disfonia. Ela também relatava perda de peso de 10 quilogramas naquele período. Como antecedentes pessoais, apresentava hipertensão e hipotireoidismo. Havia sido submetida, 21 anos antes, a uma histerectomia total em consequência de leiomiomatose uterina. Nove anos antes, havia sido submetida a cirurgia bariátrica, abdominoplastia e mamoplastia. Não havia história de alcoolismo, tabagismo ou uso de drogas recreacionais. Os antecedentes familiares eram positivos para infarto agudo do miocárdio e AVE.

Ao exame físico, a pacientes estava afebril e parecia bem. O pulso era de 68 bpm, a pressão arterial de 130 x 85 mm Hg, a frequência respiratória de 20 incursões por minuto. Pulmões e coração estavam normais. Notava-se a presença de uma cicatriz mediana no abdome. Não se encontrou edema das extremidades inferiores nem pseudo-hipertrofia das panturrilhas. O exame neurológico mostrou fraqueza dos músculos proximais graduada em 2 e fraqueza dos músculos distais graduada em 4 em uma escala de 0 a 5. Os reflexos tendíneos foram graduados em 1 numa escala de 0 a 4. O reflexo cutâneo plantar era em flexão bilateralmente. Não foram encontradas outras anormalidades no exame neurológico.

A avaliação laboratorial complementar mostrou creatina fosfoquinase de 7874 U/L (faixa da normalidade: 26-192), desidrogenase lática de 1350 U/L (referência: < 50), aspartato aminotransferase de 452 U/L (< 32), alanina aminotransferase de 679 (< 33). A sorologia para hepatite B, C e o HIV foi negativa. Quanto aos parâmetros imunológicos, o fator antinuclear era positivo com um padrão salpicado, título de 1/160, mas o anticorpo anti-JO, bem como o anticorpo anti-DNA nativo, a antirribonucleoproteína, anti-Ro, anti-La e anti-SCL70 eram negativos. A análise do líquido cerebrospinal foi positiva para células neoplásicas. O nível de CA125 estava aumentado: 601,3 U/mL (referência: < 35).

A eletromiografia mostrou um padrão predominante de miopatia proximal e potenciais de unidade motora polifásicos com redução da amplitude e duração. A biópsia do músculo deltoide revelou atrofia das fibras musculares com necrose homogênea e presença de macrofagia com ausência de infiltrado inflamatório (fig. 1). A pesquisa de malignidades do trato gastrointestinal por endoscopia gastrointestinal alta e colonoscopia resultou negativa. A triagem para câncer de mama com mamografia e a pesquisa do marcador tumoral CA 15.3 foram negativas. A tomografia computadorizada (TC) do tórax mostrou tromboembolismo pulmonar bilateral, reforçando a ideia de neoplasia maligna subjacente (fig. 2). A TC do abdome e da pelve mostrou linfadenopatia retroperitoneal envolvendo a cadeia interaortocaval, linfadenopatia pélvica e linfonodos em torno da bexiga. A RM do abdome e da pelve mostrou a presença de linfonodo retroperitoneal de 6 cm no maior diâmetro e a presença de nódulo sólido vascularizado no ovário direito. A ressonância magnética do crânio e da coluna não mostrou foco neoplásico. A substância branca dos hemisférios cerebrais tinha focos de isquemia, enquanto a coluna mostrava alterações degenerativas, bem como atrofia dos grupos musculares paraespinais posteriores, com substituição das fibras musculares por gordura, especialmente na coluna lombar.

Figura 1
Necrose com macrofagia (asterisco), centralização nuclear (ponta de seta), fibras em regeneração (setas) e fibra atrófica (círculo) na ausência de infiltrado inflamatório. HE X 250. Dada pelo Dr. Beny Schmidt, professor associado de anatomia patológica, chefe do Laboratório Neuromuscular – Unifesp.
Figura 2
Falhas de enchimento dos ramos segmentares do lobo inferior direito e lobo inferior esquerdo em consequência do tromboembolismo pulmonar.

A biópsia da massa retroperitoneal mostrou infiltração de adenocarcinoma. A paciente foi então submetida a uma laparotomia exploradora com ooforectomia bilateral, ressecção da massa para-aórtica, omentectomia e linfadenectomia pélvica. O estudo por imuno-histoquímica concluiu que se tratava de um carcinoma tubo-ovariano seroso de alto grau à direita, com metástase para o ovário esquerdo, linfonodos periaórticos e omento. A paciente foi a óbito duas semanas depois da cirurgia, em consequência de sepse depois de intensa pancitopenia, possivelmente causada por infiltração neoplásica da medula óssea, embora não tenha sido realizada biópsia da medula óssea para confirmação.

Discussão

A miopatia necrosante imunomediada agora é reconhecida como parte do grupo das Miopatias Inflamatórias Idiopáticas, que incluem a polimiosite, a dermatomiosite, a miosite de corpúsculos de inclusão esporádica, a dermatomiosite juvenil e a dermatomiosite amiopática e hipomiopática. Essa afecção incomum é frequentemente confundida com polimiosite por seus sintomas de fraqueza dos músculos proximais e altos níveis de creatina fosfoquinase.11 Ernst FC, Reed AM. Idiopathic inflammatory myopathies: current trends in pathogenesis, clinical features, and up-to-date treatment recommendations. Mayo Clin Proc. 2013;88:83-105. Pode ocorrer em vários contextos, incluindo vírus, doenças do tecido conjuntivo, associada ao uso de certos medicamentos, incluindo as estatinas, e como transtorno paraneoplásico.

A miopatia necrosante imunomediada que ocorre associada ao uso de estatinas persiste apesar da descontinuação do medicamento, diferentemente da miopatia relacionada com estatinas mais típica, que se resolve depois da descontinuação do medicamento. Em comparação com a miopatia tóxica, a evolução de uma miopatia necrosante pode ser autolimitada, e a recuperação pode ocorrer depois que o agente agressor é descontinuado, ocasionalmente ao longo de semanas a meses. Como a polimiosite e a dermatomiosite, pode preceder a identificação de um tumor. Os cânceres mais comuns são os tumores gastrointestinais, o câncer de pulmão de pequenas células e o câncer de mama.22 Wegener S, Bremer J, Komminoth P, Jung HH, Weller M. Paraneoplastic necrotizing myopathy with a mild inflammatory component: a case report and review of the literature. Oncology. 2010;3:88-92.

Esses pacientes podem ter grandes elevações dos níveis de creatina fosfoquinase, acima de 10 vezes o limite superior da normalidade, com o início agudo ou subagudo dos sintomas, embora também possa ocorrer uma evolução de doença crônica. Ao exame físico, foi encontrada fraqueza dos músculos proximais.11 Ernst FC, Reed AM. Idiopathic inflammatory myopathies: current trends in pathogenesis, clinical features, and up-to-date treatment recommendations. Mayo Clin Proc. 2013;88:83-105. Como com outras miopatias inflamatórias idiopáticas, deve ser realizada eletromiografia, para confirmar um processo miopático caracterizado por potenciais de ação da unidade motora polifásicos de curta duração e baixa amplitude, com aumento da atividade insercional e espontânea com potenciais de fibrilação, ondas sharp ou descargas repetitivas, e para encontrar um músculo-alvo para biópsia. Recomenda-se que o mesmo músculo do lado oposto seja escolhido para biópsia.11 Ernst FC, Reed AM. Idiopathic inflammatory myopathies: current trends in pathogenesis, clinical features, and up-to-date treatment recommendations. Mayo Clin Proc. 2013;88:83-105.

A fisiopatologia desta doença ainda não foi inteiramente entendida. A miopatia necrosante induzida por estatinas se associa a um anticorpo contra a proteína hidroxi-3-metilglutaril-coenzima A redutase (HMGCR), que está regulada para cima nas fibras musculares em regeneração.11 Ernst FC, Reed AM. Idiopathic inflammatory myopathies: current trends in pathogenesis, clinical features, and up-to-date treatment recommendations. Mayo Clin Proc. 2013;88:83-105. Podem estar envolvidas respostas imunes celulares, bem como os fatores humorais. O pequeno número de células inflamatórias nos espécimes musculares de pacientes com miopatia necrosante levanta a possibilidade de uma molécula tóxica que medeie a síndrome, mas a resposta aos esteroides ou imunoglobulinas é mais compatível com um processo imunomediado.33 Bronner IM, Hoogendijk JE, Wintzen AR, Van der Meulen MF, Linssen WH, Wokke JH, et al. Necrotising myopathy, an unusual presentation of a steroid-responsive myopathy. J Neurol. 2003;250:480-5.

Histopatologicamente, nas miopatias necrosantes paraneoplásicas, encontra-se um padrão heterogêneo de necrose, variando de lesões necróticas esparsas segmentares à necrose maciça.22 Wegener S, Bremer J, Komminoth P, Jung HH, Weller M. Paraneoplastic necrotizing myopathy with a mild inflammatory component: a case report and review of the literature. Oncology. 2010;3:88-92.,44 Smith B. Skeletal muscle necrosis associated with carcinoma. J Pathol. 1969;97:207-10.,55 Urich H, Wilkinson M. Necrosis of muscle with carcinoma: myositis or myopathy? J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1970;33:398-407. Macrófagos são encontrados em torno das fibras musculares necróticas e estão presentes fibras atróficas e em regeneração. A imunocoloração revela linfócitos T (CD3) e macrófagos (CD68) em torno das fibras musculares necróticas e em regeneração.11 Ernst FC, Reed AM. Idiopathic inflammatory myopathies: current trends in pathogenesis, clinical features, and up-to-date treatment recommendations. Mayo Clin Proc. 2013;88:83-105.

Apesar de novas evidências, recentemente se mostrou como reumatologistas e neurologistas diferem na classificação das miopatias. Enquanto os neurologistas são especializados em diagnosticar usando eletromiografia e interpretação da biópsia muscular, os reumatologistas, ao contrário, são tipicamente treinados para fazer um diagnóstico clínico, entendendo o papel da associação a autoanticorpos.66 Christopher-Stine L. Neurologists are from Mars Rheumatologists are from Venus: differences in approach to classifying the idiopathic inflammatory myopathies. Curr Opin Rheumatol. 2010;22:623-6. Todavia, a comunicação efetiva e a sinergia entre subespecialistas, usando ambas as estratégias para fazer o diagnóstico e classificar, são atualmente necessárias para melhorar a comunicação e obter conclusão consistente nos ensaios clínicos.

Conclusão

A miopatia necrosante imunomediada secundária às estatinas já foi publicada na América Latina por Opazo et al.,77 Opazo DE, Quiroga ON. Miopatía necrotizante autoinmune (NAM): a propósito de un caso clínico. Ver Chil Reumato. 2012;28:160-3. mas, até onde saibamos, este é o primeiro caso de miopatia necrosante imunomediada publicado no Brasil, e o primeiro relacionado com neoplasia na América Latina.

Este relato de caso enfatiza a necessidade de ter suspeita clínica de câncer em pacientes com miopatias inflamatórias idiopáticas, e destaca a miopatia necrosante imunomediada, uma de suas formas clínicas mais recentemente descrita. O caso mostrou boa correlação com o que se encontra na literatura referentemente às manifestações clínicas. O câncer de ovário não é a neoplasia mais comumente encontrada nas miopatias necrosantes paraneoplásicas. Portanto, este caso demonstra a necessidade de investigar outros locais além do trato gastrointestinal, pulmão e mama. A recuperação dos sintomas de fraqueza muscular depois do tratamento do câncer subjacente não pôde ser avaliada em consequência do estádio avançado de câncer da paciente.

REFERENCES

  • 1
    Ernst FC, Reed AM. Idiopathic inflammatory myopathies: current trends in pathogenesis, clinical features, and up-to-date treatment recommendations. Mayo Clin Proc. 2013;88:83-105.
  • 2
    Wegener S, Bremer J, Komminoth P, Jung HH, Weller M. Paraneoplastic necrotizing myopathy with a mild inflammatory component: a case report and review of the literature. Oncology. 2010;3:88-92.
  • 3
    Bronner IM, Hoogendijk JE, Wintzen AR, Van der Meulen MF, Linssen WH, Wokke JH, et al. Necrotising myopathy, an unusual presentation of a steroid-responsive myopathy. J Neurol. 2003;250:480-5.
  • 4
    Smith B. Skeletal muscle necrosis associated with carcinoma. J Pathol. 1969;97:207-10.
  • 5
    Urich H, Wilkinson M. Necrosis of muscle with carcinoma: myositis or myopathy? J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1970;33:398-407.
  • 6
    Christopher-Stine L. Neurologists are from Mars Rheumatologists are from Venus: differences in approach to classifying the idiopathic inflammatory myopathies. Curr Opin Rheumatol. 2010;22:623-6.
  • 7
    Opazo DE, Quiroga ON. Miopatía necrotizante autoinmune (NAM): a propósito de un caso clínico. Ver Chil Reumato. 2012;28:160-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2013
  • Aceito
    16 Out 2013
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