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Uso do infliximabe e aparecimento sequencial de autoanticorpos e neoplasia em paciente com espondiloartrite

Resumos

O aparecimento de anticorpos antinucleares tem sido relatado após o uso prolongado de anti-TNFs. A emergência de neoplasias linfoproliferativas também tem sido descrita e, com menor frequência, os tumores sólidos. Nós descrevemos o aparecimento simultâneo dessas duas condições clínicas em uma paciente com espondiloartrite na vigência de infliximabe. Uma revisão da literatura é apresentada e a possível correlação com o aparecimento de tumor sólido é discutida

infliximabe; anticorpos antinucleares; neoplasia; espondiloartrite


The development of antinuclear antibodies after long-term use of anti-TNF therapy has been reported by several authors. The occurrence of lymphoproliferative neoplasms and, less commonly, solid tumors has also been reported. We present a case ofsimultaneous development of antinuclear antibodies and solid tumor in a patient with spondyloarthritis while on infliximab therapy. The implications and possible correlations with a solid tumor occurrence are reviewed and discussed

infliximab; antinuclear antibodies; neoplasia; spondyloarthritis


RELATO DE CASO

Uso do infliximabe e aparecimento sequencial de autoanticorpos e neoplasia em paciente com espondiloartrite

Ricardo GolmiaI; Morton ScheinbergII

IReumatologista do Hospital Abreu Sodré-AACD e Hospital Israelita Albert Einstein

IIClínico Reumatologista do Hospital Israelita Albert Einstein, Diretor Científico e Coordenador de Pesquisas Clínicas do Hospital Abreu Sodré-AACD

Correspondência para Correspondência para: Ricardo Golmia Av. prof. Ascendino Reis, 724, Bloco C - Pesquisa Clínica - 1º Subsolo São Paulo, SP. CEP: 04027-000 E-mail: ricardogolmia@brturbo.com.br

RESUMO

O aparecimento de anticorpos antinucleares tem sido relatado após o uso prolongado de anti-TNFs. A emergência de neoplasias linfoproliferativas também tem sido descrita e, com menor frequência, os tumores sólidos. Nós descrevemos o aparecimento simultâneo dessas duas condições clínicas em uma paciente com espondiloartrite na vigência de infliximabe. Uma revisão da literatura é apresentada e a possível correlação com o aparecimento de tumor sólido é discutida.

Palavras-chave: infliximabe, anticorpos antinucleares, neoplasia, espondiloartrite.

INTRODUÇÃO

Medicamentos com ação contra fator de necrose tumoral (anti-TNF) têm sido usados em escala cada vez maior em enfermidades reumáticas e autoimunes.

Após uma década de uso, uma série de efeitos adversos foi descrita e respostas variáveis de eficácia relatadas após o seu uso em períodos prolongados.1

Recentemente, tratamos uma paciente do sexo feminino com espondiloartrite com infliximabe pelo período consecutivo de dois anos.

Após um ano de uso da medicação, houve o aparecimento de neoplasia folicular da tireoide e posteriormente anticorpos antinucleares. A associação do uso de infliximabe com anticorpos antinucleares e o aparecimento de neoplasias são aqui revistos e discutidos.

RELATO DE CASO

SL, 26 anos, sexo feminino, raça branca foi por nós avaliada há dois anos com quadro de lombalgia sem ciatalgia. Esse quadro iniciou-se há mais ou menos cinco anos. Ela foi examinada por ortopedistas que diagnosticaram hérnia de disco em L4-L5, sendo tratada com anti-inflamatórios não hormonais (AINHs) e hormonais sem resposta terapêutica. Posteriormente, foi avaliada por um neurocirurgião que recomendou neurólise, e não obteve sucesso. Em nossa avaliação, queixava-se de dores noturnas que aliviavam ao interromper o sono e caminhar por alguns minutos.

Uma nova imagem por ressonância magnética evidenciou presença de sacroileíte bilateral e nos exames laboratoriais apresentava velocidade de hemossedimentação (VHS) = 55 mm, proteína C reativa (PCR) =18 mg/L, pesquisa de HLA B27 positivo, fator reumatoide, anti-CCP e anticorpos antinucleares foram negativos.

Paciente passou a receber infliximabe 3 mg por kg de peso a partir de agosto de 2006. Logo após a primeira administração, houve melhora total da dor. Manteve-se, então, o uso a cada oito semanas da medicação.

Em abril de 2008, ao procurar um endocrinologista para perda de peso, foi constatado um nódulo na tireoide que em avaliação subsequente mostrou ser um carcinoma papilífero. A paciente foi submetida à tireoidectomia e estadiamento. Passou a receber suplementação de hormônios tireoidianos e não recebeu mais infusões de anti-TNF.

Em agosto de 2008, houve o ressurgimento do quadro doloroso desta vez associado com quadro periférico de dores articulares. Vista por um colega que solicitou nova pesquisa laboratorial pôde-se constatar elevação das provas de fase aguda e agora com títulos elevados de fator antinuclear (1/ 640) e anticorpos anti-DNA em títulos bastante elevados pela técnica de enzima-imuno-ensaio 190U (valores normais inferiores a 40U).

Após exposição dos benefícios e possíveis riscos da continuidade do uso do infliximabe, foi reinstituída a terapia anti-TNF, passando a receber bimensalmente doses dessa medicação, obtendo regressão completa do quadro articular e axial. Tentou-se novamente o uso de analgésicos e AINHs naquela oportunidade sem sucesso. Aproximadamente seis meses após o seu reinício, a paciente encontra-se clinicamente bem sem nenhuma queixa de natureza reumática.

DISCUSSÃO

Fator de necrose tumoral é uma citocina com papel importante nas doenças inflamatórias de fundo reumático. Com o uso crescente desses agentes, uma série de eventos adversos de natureza infecciosa, cardiovascular, linfomas e doenças desmielinizantes foram descritos.2

Manifestações autoimunes indo de alterações laboratoriais de natureza assintomática à presença de doenças autoimunes de natureza sistêmica também foram relatados.3,4

O sumário das manifestações autoimunes e autoanticorpos em registros internacionais encontra-se apresentado na Tabela 1.

Nossa paciente aparentemente desenvolveu anticorpos antinucleares e anticorpos anti-DNA depois de repetidas infusões de infliximabe. Não preenchia critérios de classificação de lúpus eritematoso sistêmico, pertencendo ao grupo de alterações laboratoriais de natureza assintomática.

A maioria dos casos de lúpus descritos após o uso de anti-TNFs lembra os quadros de lúpus induzido por drogas com presença de artrite, manifestações cutâneas e sintomas constitucionais, onde nenhum desses sintomas estava presente em nosso caso.5 Suspender o uso da medicação por esse motivo não seria, a nosso ver, apropriado e também não apresenta respaldo na literatura. Nos casos em que o diagnóstico de lúpus foi possível ser estabelecido, aproximadamente 90% deles foram positivos para fator antinuclear e 60 % para anti-DNA.6

A indução de autoanticorpos em pacientes com artrite reumatoide tratados com anti-TNF está bem documentada na literatura. Eriksson et al.7 encontraram em 53 pacientes uma prevalência de anticorpos antinucleares de 24% no baseline, aumentando para 77% em 30 semanas e 69% em 54 semanas. Outros estudos confirmam as observações de Eriksson et al.8,9

Neste tópico dois elementos devem ser mencionados; o primeiro refere-se à possibilidade de que alguns casos sejam um tipo de "rhupus", com componentes mistos de artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico, e o segundo refere-se ao fato de que vários casos não tinham documentação prévia de natureza imunológica.

O mecanismo responsável pelo aparecimento desses anticorpos ainda não está bem estabelecido, um elemento possível é o papel do anti-TNF como fator adjuvante semelhante ao que pode ocorrer com exposição à luz solar e gravidez.

A relação entre o uso contínuo de anti-TNF e neoplasia tem sido ainda motivo de controvérsia, talvez menos na emergência de linfomas com frequência estatisticamente não significativa e com menor relevância nos tumores sólidos. No caso de linfomas é possível que exista um risco maior. No entanto, em pacientes com artrite reumatoide podem-se estabelecer associações com elementos virais que por isso poderiam levar a emergência de linfomas, como é o caso do Epstein Barr vírus. Outro elemento é a gravidade da doença que pode levar a uma expansão oligoclonal de linfócitos em fase pré-maligna. No caso de tumores sólidos, a possível associação com o seu aparecimento ainda é incerta. Estudo recente mostra que em 3.688 pacientes que receberam terapia anti-TNF ocorreram 30 casos de neoplasia e, dentre esses, dois casos de linfoma, quatro de neoplasia de pulmão, quatro de mama, três de intestino, um de próstata e nenhum de tireoide. Embora não possa ser excluído totalmente, é improvável que o aparecimento de câncer da tireoide esteja relacionado ao uso do infliximabe.10,11,12

Adicionalmente, a história natural dessa neoplasia é peculiar com baixo grau de invasão e disseminação e elementos de cura total são associados na maioria dos casos após tireoidectomia. Eventuais decisões sobre a continuidade ou não de tratamento em casos semelhantes ao nosso deverão surgir a partir de análise individual.

Entendemos que, tendo a paciente FAN e anti-DNA negativos antes do TNF e o seu aparecimento após o uso do infliximabe, o risco potencial do desenvolvimento de lúpus eritematoso sistêmico poderia existir, no entanto, após um ano de seguimento não ocorreram sintomas do tipo rash, artrite, serosite e hipocomplementemia em acompanhamento clínico-laboratorial. A resposta excelente de natureza clínica no caso da artrite inflamatória, e ausência de opções com outros biológicos com distintos mecanismos de ação para essa enfermidade fez com que a nossa opção para o caso fosse a manutenção do infliximabe.

Em suma, apresentamos um caso de uso contínuo de infliximabe com aparecimento de autoanticorpos (sem repercussão clínica) e neoplasia da tireoide. Procedeu-se à suspensão do fármaco após aparecimento de autoanticorpos e neoplasia da tireoide e reintrodução após aparente cura da doença tumoral.

Recebido em 07/05/2009.

Aprovado, após revisão, em 12/10/2010.

Declaramos a inexistência de conflito de interesse.

Hospital Abreu Sodré-AACD e Hospital Israelita Albert Einstein.

  • 1
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  • 3
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  • Correspondência para:

    Ricardo Golmia
    Av. prof. Ascendino Reis, 724, Bloco C - Pesquisa Clínica - 1º Subsolo
    São Paulo, SP. CEP: 04027-000
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      07 Maio 2009
    • Aceito
      12 Out 2010
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