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Lúpus eritematoso sistêmico juvenil em adolescente com síndrome da imunodeficiência adquirida

Resumos

O lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) é uma doença inflamatória crônica, multissistêmica e autoimune. Algumas manifestações clínicas dessa condição são semelhantes às encontradas na síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA). A coexistência da SIDA com o LESJ é rara, especialmente na população pediátrica, sendo descritos na literatura pesquisada apenas cinco casos de pacientes com infecção congênita por HIV que desenvolveram essa enfermidade reumatológica, tendo como manifestação inicial a nefrite lúpica. Relata-se o caso de uma paciente de 14 anos, com diagnóstico de infecção pelo HIV aos 8 meses de idade, na qual se realizou diagnóstico de LESJ com base nos critérios diagnósticos do Colégio Americano de Reumatologia. Este relato tem a finalidade de descrever uma paciente com SIDA que, embora tenha desenvolvido LESJ em sua forma clássica e grave, evoluiu satisfatoriamente

lúpus eritematoso sistêmico juvenil; síndrome da imunodeficiência adquirida; adolescente


Systemic lupus erythematosus juvenile (SLEJ) is a multi-systemic, chronic inflammatory disease, and with autoimmune features. Some clinical manifestations of this disease are similar to those found inAcquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS). Coexistence of AIDS with SLEJ is rare, especially in the pediatric population, being described in the literature just 5 patients with congenital HIV infection who developed this rheumatological condition, presenting lupus nephritis as the initial manifestation. We report the case of a 14 year old patient, diagnosed with HIV infection at 8 months of age, with signs and symptoms of SLEJ. This report aims to describe a female patient with AIDS who developed SLE in its classic and forms, but has evolved satisfactorily

juvenile systemic lupus erythematosus; acquired immunodeficiency syndrome; adolescent


RELATO DE CASO

Lúpus eritematoso sistêmico juvenil em adolescente com síndrome da imunodeficiência adquirida

Nathália de Carvalho SacilottoI; Cintia Yukimi YamashiroI; Teresa Maria Isaac NishimotoII

IAcadêmica de Medicina do Centro Universitário Lusíada

IIPediatra da Secretaria do Estado de São Paulo do Hospital Guilherme Álvaro e da Secretaria de Saúde de Santos

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Nathália de Carvalho Sacilotto Rua Banco das Palmas, 196, Santana CEP 02016-020. São Paulo, SP, Brasil Tel: 55 (11) 9671-6953 E-mail: nath-cs@uol.com.br

RESUMO

O lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) é uma doença inflamatória crônica, multissistêmica e autoimune. Algumas manifestações clínicas dessa condição são semelhantes às encontradas na síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA). A coexistência da SIDA com o LESJ é rara, especialmente na população pediátrica, sendo descritos na literatura pesquisada apenas cinco casos de pacientes com infecção congênita por HIV que desenvolveram essa enfermidade reumatológica, tendo como manifestação inicial a nefrite lúpica. Relata-se o caso de uma paciente de 14 anos, com diagnóstico de infecção pelo HIV aos 8 meses de idade, na qual se realizou diagnóstico de LESJ com base nos critérios diagnósticos do Colégio Americano de Reumatologia. Este relato tem a finalidade de descrever uma paciente com SIDA que, embora tenha desenvolvido LESJ em sua forma clássica e grave, evoluiu satisfatoriamente.

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico juvenil, síndrome da imunodeficiência adquirida, adolescente.

INTRODUÇÃO

O Lúpus Eritematoso Sistêmico Juvenil (LESJ) é uma doença inflamatória crônica, multissistêmica, de causa desconhecida e de natureza autoimune.1 Apresenta incidência anual estimada na população infanto-juvenil de 6-20 casos por 100 mil crianças, sendo maior em meninas e em não brancos.2 Nessa faixa etária, está associada a morbidade elevada e grande impacto financeiro e social, causando incapacidade física e funcional e afetando a qualidade de vida do paciente e de sua família.3

Algumas manifestações clínicas, como febre, artralgia, mialgia, linfadenopatia, emagrecimento, anemia, leucopenia4 e anormalidades imunológicas do LESJ, são semelhantes às encontradas em outras afecções como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA).5

A SIDA é um conjunto de sintomas e infecções resultantes do dano específico do sistema imunológico. O alvo principal são os linfócitos T CD4+, fundamentais para a coordenação das defesas do organismo.6

A coexistência da SIDA com o LESJ é extremamente rara, especialmente na população pediátrica. São descritos na literatura pesquisada apenas cinco casos de pacientes com infecção congênita por HIV que desenvolveram essa afecção reumatológica e iniciaram o quadro com nefrite ou vasculite cutânea.7

RELATO DE CASO

TGC, feminino, 14 anos, com diagnóstico de infecção pelo HIV aos 8 meses de idade adquirida por transmissão maternoinfantil, em tratamento antiretroviral, desde os 4 anos de idade. Refere que dois meses antes iniciou quadro de febre, artrite em joelhos e mãos, eritema malar e fotossensibilidade. Uma semana atrás, evoluíra com tosse seca, dor abdominal, náuseas e vômitos.

Admitida em uso de didanosina, lamivudina, lopinavir e ritonavir, apresentando carga viral indetectável, contagem de linfócitos T CD4 igual a 1.524 células/mm3 e linfócitos T CD8 de 996 células/mm3.

Ao exame físico, apresentava-se descorada 2+/4+, desidratada+/4+, anictérica, febril (39,5ºC), com frequência cardíaca de 127 bpm e respiratória de 28 ipm, pressão arterial de 110 x 60 mmHg, placa eritematopapulosa em face, fissuras labiais, lesões aftosas em mucosa jugal, retração de fúrcula, batimento de asa de nariz e estase jugular. Na ausculta, apresentava estertores crepitantes em terços inferiores, sibilos difusos e bulhas rítmicas e hiperfonéticas em dois tempos sem sopros. O abdôme encontrava-se distendido, doloroso à palpação, com ruídos hidroaéreos diminuídos. É importante ressaltar que, apesar do longo tempo da SIDA e do uso de antirretrovirais, a paciente não apresentava lipodistrofia.

Foram realizados os seguintes exames laboratoriais: Hemoglobina: 9,3 (12-16 g/dL), Hematócrito: 27,4 (35-47%); VCM: 85,9 (80-100fL); CHCM: 33,9 (32-37g/dL); Plaquetas: 223.000 (140-500.000/mm3); Leucócitos: 2.720 (3.500-11.000/ mm3), VHS: 115 (até 10 mm/1h); PCR: 26,80 (< 5,0 mg/L); CH50: 30 U/CAE (= 60 U/CAE); C3: 25 mg/dL (90-180 mg/ dL); C4: 6,0 mg/dL (10-40 mg/dL); FAN: reagente por imunofluorescência indireta em células HEp-2 (1/640; padrão nuclear homogêneo); Anti-DNA nativo (método: imunofluorescência indireta utilizando como substrato Crithidia lucilae), Anti-Sm, Anti-RNP (método: imunodifusão dupla de Ouchterlony): Reagentes e Anti-SSA/Ro, Anti-SSB/La (método: imunodifusão dupla de Ouchterlony): Não Reagentes. Raio X de tórax: opacificação em ambos os hemitóraces e proteinúria de 24 horas: 0,96 g (< 0,10 g/24 horas).

O diagnóstico de LESJ foi estabelecido utilizando-se os critérios de classificação propostos, em 1982, pelo American College of Rheumatology, revisados em 1997,8 tendo a paciente apresentado rash malar, fotossensibilidade, artrite não erosiva, FAN positivo, Anti-DNA positivo, serosite e leucopenia.

Evoluiu com os diagnósticos de broncopneumonia, síndrome do desconforto respiratório agudo, choque séptico e LESJ. Recebeu suporte clínico, antibioticoterapia de amplo espectro e pulsoterapia com metilprednisolona por quatro dias e, em seguida, prednisona 40 mg/dia, evoluindo com melhora clínica e controle de ambas as patologias.

DISCUSSÃO

Na população pediátrica, de acordo com a literatura pesquisada, há, diferentemente do que ocorreu no relato atual, quatro casos publicados de crianças com idade entre 7 e 37 meses, HIV soropositivas por transmissão congênita, que desenvolveram nefrite lúpica sem outras manifestações do LES, e um caso de um paciente com 42 meses que desenvolveu vasculite cutânea e que preenchia critérios para essa doença reumatológica.7 Há ainda publicado um caso de HIV congênito no qual um paciente de 9 anos apresentou inicialmente manifestações lúpicas para, anos mais tarde, desenvolver SIDA.7

Ambas as doenças se assemelham e se relacionam entre si, havendo diversas hipóteses na literatura que tentam explicar o mecanismo pelo qual isso ocorre.7

Além das manifestações clínicas, uma série de resultados laboratoriais pode ocorrer em ambas as doenças, incluindo leucopenia, linfopenia, hipergamaglobulinemia e a presença de anticorpos antifosfolípides.Anticorpos antinucleares e fator reumatoide estão presentes, embora com menor frequência, em indivíduos infectados por HIV, mas a existência de anti-DNA nativo não tem sido descrita em pacientes portadores desse vírus.9

Há evidências de que vírus podem desempenhar papel importante no desenvolvimento de doenças reumatológicas, como o vírus Epstein-Barr, parvovírus, vírus da hepatite e retrovírus.10 Isso ocorre de diferentes maneiras, entre elas está a glicoproteína de superfície gp 120, presente no HIV, que é um importante desregulador do sistema imune.5

A infecção por HIV pode melhorar clinicamente as manifestações do LES, mas, paralelamente há progressão de imunodeficiência por esse vírus. Uma classe dos medicamentos usados no tratamento da SIDA são os inibidores da protease, que podem favorecer a reativação do LES e agravar seu curso clínico por provocar aumento no número de células CD4+ circulantes e restaurar a função imune, mostrando que é preciso ter precaução com os fármacos que serão selecionados na terapia antiretroviral.4 Entretanto, nada é mencionado com relação ao surgimento da enfermidade reumatológica.

Em 1991, Wallace relatou que a produção de anticorpos no LES, que está aumentada, acaba sendo protetora contra a infecção pelo HIV, o que ocorre também através dos possíveis efeitos antiretrovirais encontrados nos agentes imunossupressores.4 Por outro lado, há relatos de que essa classe de fármacos pode diminuir esse benefício, implicando aumento subsequente da carga viral.4

Independentemente do órgão ou sistema afetado, o uso contínuo de antimaláricos como 4 mg/kg/dia de difosfato de cloroquina ou 6 mg/kg/dia de sulfato de hidroxicloroquina é indicado com a finalidade de reduzir a atividade da doença e tentar poupar o uso de corticoides. A manutenção da droga em pacientes controlados reduz a possibilidade de novo surto de atividade, melhora o perfil lipídico e reduz o risco de trombose.11

Este relato tem a finalidade de alertar a possibilidade de uma doença imunoestimuladora acometer, de forma grave, um paciente imunodeprimido, sendo de extrema importância o diagnóstico e o tratamento precoces.

Recebido em 11/03/2009.

Aprovado, após revisão, em 30/05/2010.

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Hospital Guilherme Álvaro - Centro Universitário Lusíada, Santos, SP, Brasil.

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  • Endereço para correspondência:

    Nathália de Carvalho Sacilotto
    Rua Banco das Palmas, 196, Santana
    CEP 02016-020. São Paulo, SP, Brasil
    Tel: 55 (11) 9671-6953
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      11 Mar 2009
    • Aceito
      30 Maio 2010
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