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Achados ultrassonográficos osteomusculares na paracoccidioidomicose

Resumo

A paracoccidioidomicose é uma infecção fúngica endêmica na América do Sul. A infecção geralmente é assintomática e afeta principalmente os tratos respiratórios superior e inferior, com dissociação clínico-radiológica. O envolvimento articular é raro, sem um padrão ou lesão radiológica específica. Apresenta-se um relato de caso de paracoccidioidomicose em que os sintomas iniciais do paciente foram rouquidão e artrite. Depois de um exame de ultrassonografia, foram feitos o diagnóstico diferencial de outras artropatias não infecciosas e a análise do material coletado, que revelou infecção pelo fungo Paracoccidioides brasiliensis.

Palavras-chave:
Paracoccidioidomicose; Ultrassonografia; Artrite; Tenossinovite; Sinovite

Abstract

Paracoccidioidomycosis is a fungal infection endemic to South America. The infection is usually asymptomatic and mostly affects the upper and lower respiratory tracts with clinical–radiological dissociation. Joint involvement is rare with no specific pattern or radiological injury. We report a case of paracoccidioidomycosis in which the patient's initial symptoms were hoarseness and arthritis. After an ultrasound examination, we performed the differential diagnosis of other noninfectious arthropathies and analysis of the material collected, which revealed infection with the fungus Paracoccidioides brasiliensis.

Keywords:
Parcoccidioidomycosis; Ultrasound; Arthritis; Tenosynovitis; Synovitis

Introdução

A paracoccidioidomicose é uma infecção fúngica endêmica na América do Sul causada pelo fungo termodimórfico Paracoccidioides sp.11 Queiroz-Telles F. Escuissato DL. Pulmonary paracoccidioidomycosis. Semin Respir Crit Care Med. 2011;32:764-74. O fungo tem uma distribuição espacial heterogênea, com áreas de baixa e alta endemicidade. A doença é adquirida pela inalação do ar ou por meio de lesões na pele e mucosas. A infecção geralmente é assintomática e afeta principalmente os tratos respiratórios superior e inferior, com dissociação clínico-radiológica. Embora raras, foram descritas várias manifestações extrapulmonares na genitália, no trato gastrointestinal, na região intraespinal e no sistema nervoso central. Tem sido sugerida uma associação entre a paracoccidioidomicose e o câncer e HIV. O envolvimento articular é raro, sem um padrão ou lesão radiológica específica.22 Mendes RP. Bone and joint lesions. Paracoccidioidomycosis. 2 nd ed. Boca Raton: CRC Press; 1994. p. 331-8.

Este trabalho relata um caso de paracoccidioidomicose em que os sintomas iniciais do paciente foram rouquidão e oligoartrite. Foi feita uma ultrassonografia (US) como uma extensão do exame físico para o possível diagnóstico diferencial de outras doenças que podem produzir alterações articulares semelhantes. As manifestações articulares da paracoccidioidomicose incluem a síndrome do túnel do carpo, a associação com artrite gotosa na falange proximal do hálux e a pioartrite mesmo na ausência de fatores de risco para imunossupressão.33 Bonilla-Abadía F, Vélez JD, Zárate-Correa LC, Carrascal E, Guarín N, Castaneda-Ramírez CR, et al. Over infection by Paracoccidioides brasiliensis in gouty crystal arthritis. Case Reports in Medicine. 2012:1-3.,44 Saccente M, Woods GL. Clinical and laboratory update on blastomycosis. Clin Microbiology Rev. 2010;23:367-81.

O envolvimento osteoarticular na paracoccidioidomicose é variável. Há envolvimento de 2,2 a 4% dos ossos e articulações na forma aguda/subaguda da doença, que é responsável por 20 a 26,4% dos casos de paracoccidioidomicose.55 Trad HS, Trad CS, Elias J Jr, Muglia VF. Radiological review of 173 consecutive cases of paracoccidioidomycosis. Radiol Bras. 2006;39:175-9.,66 Bellissimo-Rodrigues F, Bollela VR, Da Fonseca BA, Martinez R. Endemic paracoccidioidomycosis: relationship between clinical presentation and patients' demographic features. Med Mycol. 2013;51:313-8. O envolvimento da pele se manifesta histologicamente como uma papilomatose, com proliferação epidérmica e formação de microabscessos.77 Costa MAB, Carvalho TN, Araújo Júnior CR, Borba AOC, Veloso GA, Teixeira KS. Extra-pulmonary manifestations of paracoccidioidomycosis. Radiol Bras. 2005;38:45-52.

Curiosamente, neste caso clínico, fez-se uma coleta de material articular guiada por ultrassonografia, o que resultou em um diagnóstico mais preciso e na detecção de alterações ecotexturais não relatadas previamente e manifestações cutâneas, como microabscessos.

Relato de caso

O paciente era um homem de 55 anos, residente na zona rural do estado de São Paulo, Brasil, com uma história de dor articular havia seis meses.

Ele manifestou dor inflamatória assimétrica no punho esquerdo e nos dedos das mãos, principalmente na primeira articulação interfalângica distal (IFD) direita e terceira articulação interfalângica proximal (IFP) associada a rouquidão, que começou concomitantemente aos outros sintomas. Além disso, relatou ter perdido 3 kg desde o início dos sintomas. O paciente negava febre ou contato com pessoas com doenças contagiosas.

Ao exame físico, apresentava rouquidão, aumento do volume e da temperatura à palpação, além de hiperemia na palma da mão e eminência tenar do punho esquerdo e primeira articulação interfalângica distal direita.

Como procedimento normal em nossa prática clínica, fez-se uma ultrassonografia osteomuscular como uma extensão do exame físico. A ultrassonografia mostrou coleção heterogênea hipoecoica nos planos subcutâneos, que se estendia até os tendões flexores do punho esquerdo e primeira articulação IFD direita e caracterizava tenossinovite e sinovite no recesso dorsal da primeira articulação IFD direita e terceira articulação metacarpofalângica (MCF) direita, com atividade inflamatória importante, evidenciada pela presença de sinal Power Doppler (PD) intenso (figs. 1 e 2).

Figura 1
(A) Imagem ultrassonográfica longitudinal do recesso palmar da primeira articulação interfalângica distal (IFD) direita, que mostra coleção hipoecoica subcutânea que envolve o tendão do músculo flexor profundo dos dedos e a (B) US transversal com sinal PD positivo. Imagem ultrassonográfica que mostra recesso dorsal com sinovite com sinal PD positivo da (C) primeira articulação interfalângica distal (IFD) direita e (D) terceira articulação metacarpofalângica (MCF) direita.
Figura 2
A, Aspecto palmar do punho esquerdo, que mostra uma protuberância flutuante. B, Imagem ultrassonográfica do recesso palmar, com coleção hipoecoica subcutânea que invade os tendões flexores e presença de sinal PD. C, Aspecto palmar do punho esquerdo depois do tratamento. D, Imagem ultrassonográfica do recesso palmar do punho esquerdo que não evidencia alterações nos tendões flexores depois do tratamento.

Foi feita uma punção guiada por US da coleção e o material foi enviado para o laboratório para testes de bacilos, fungos e culturas bacterianas e exame micológico direto. Os resultados foram devolvidos rapidamente, e o exame micológico direto foi positivo para Paracoccidioides brasiliensis. Os testes sorológicos para Paracoccidioides spp. não foram feitos e as culturas do sangue e da secreção do punho foram negativas para Mycobacterium spp. e fungos.

Em uma investigação mais aprofundada, a laringoscopia revelou fenda glótica, radiografia de tórax com padrão reticular espesso que afetava ambos os pulmões e tomografia computadorizada de tórax (TC) que mostrou cavitação (fig. 3). O paciente se recusou a fazer o teste de HIV.

Figura 3
TC de tórax de alta resolução (512 × 512 pixels) em um homem de 55 anos, branco, residente em zona rural e com dor articular que mostra cavitações em ambos os pulmões, indicadas pelas setas.

O paciente passou a receber sulfametoxazol 400 mg/trimetoprim 80 mg, dois comprimidos, três vezes ao dia.

Três meses após o tratamento, as imagens ultrassonográficas mostraram melhoria na tenossinovite do tendão flexor do punho esquerdo e na coleção subcutânea, sem sinal PD (fig. 2).

As culturas para bacilo de Koch e bactérias foram negativas. O paciente está em acompanhamento permanente nesta instituição.

Discussão

A paracoccidioidomicose mais comumente se manifesta como uma micose sistêmica crônica em adultos e afeta os pulmões e o trato respiratório superior.88 Sant'Anna GD, Mauri M, Arrarte JL, Camargo H Jr. Laryngeal manifestations of paracoccidioidomycosis (South American blastomycosis). Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1999;125:1375-8. Além disso, as lesões osteoarticulares ocorrem em todas as faixas etárias, mas são mais frequentes em indivíduos jovens. Como em outras manifestações clínicas da doença, os homens são mais frequentemente afetados. Não há fatores de risco conhecidos para esse tipo de envolvimento, mas se acredita que traumas locais facilitem o estabelecimento do fungo no sistema osteoarticular durante a fungemia.22 Mendes RP. Bone and joint lesions. Paracoccidioidomycosis. 2 nd ed. Boca Raton: CRC Press; 1994. p. 331-8.

Muitos pacientes são portadores da doença em razão de um desequilíbrio entre a produção de linfócitos Th1 e Th2, com uma predominância desse último, e citocinas, como a IL-4, IL-5, IL-10 e IL-18, que promovem a ruptura do granuloma.99 Fortes MR, Miot HA, Kurokawa CS, Marques ME, Marques SA. Immunology of paracoccidioidomycosis. An Bras Dermatol. 2011;86:516-24.

10 Benard G. An overview of the immunopathology of human paracoccidioidomycosis. Mycopathologia. 2008;165:209-21.

11 de Brito T, Franco MF. Granulomatous inflammation. Rev Inst Med Trop Sao Paulo. 1994;36:185-92.
-1212 Corvino CL, Mamoni RL, Fagundes GZ, Blotta MH. Serum interleukin-18 and soluble tumour necrosis factor receptor 2 are associated with disease severity in patients with paracoccidioidomycosis. Clin and Exp Immunol. 2007;147:483-90.

O sinal do halo invertido com pneumonite e a reorganização na tomografia computadorizada de tórax são altamente sugestivos de infecção pulmonar por paracoccidioidomicose, embora outras infecções fúngicas e granulomatosas possam ter sintomas semelhantes.1313 Marchiori E, Zanetti G, Hochhegger B, Irion KL, Carvalho AC, Godoy MC. Reversed halo sign on computed tomography: state-of-the-art review. Lung. 2012;190:389-94. O exame micológico direto é o diagnóstico laboratorial mais simples e menos dispendioso, mas os resultados negativos devem ser acompanhados por cultura de fungos e testes mais específicos, como PCR e Elisa.1414 Teles FR, Martins ML. Laboratorial diagnosis of paracoccidioidomycosis and new insights for the future of fungal diagnosis. Talanta. 2011;85:2254-64.

O tratamento é prescrito de acordo com as condições econômicas do paciente e com a disponibilidade de medicamentos na rede de atenção primária. No entanto, a duração e a escolha do fármaco para o tratamento ainda são pouco claras. Indicam-se tanto o itraconazol, 200 mg/dia por seis a nove meses em formas leves e por 12 a 18 meses em formas moderadas, quanto o sulfametoxazol, 800 a 1.200 mg + trimetoprima 160 a 240 mg a cada 12 horas durante 12 meses nas formas leves e por 18 a 24 meses nas formas moderadas.1515 Menezes VM, Soares BGO, Fontes CJF. Drugs for treating paracoccidioidomycosis. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2011:CD004967, http://dx.doi.org/10.1002/14651858.
https://doi.org/10.1002/14651858...

No exame clínico, foram observados alguns sintomas: rouquidão, um pequeno abscesso no aspecto palmar do punho esquerdo, o fato de o paciente morar em uma área rural e a ausência de sintomas do trato respiratório inferior, que puderam ser detectados somente em exames complementares. A análise do líquido drenado do abscesso de punho ajudou a completar o diagnóstico. As alterações articulares detectadas pela ultrassonografia de alta resolução mostraram grande comprometimento sinovial e envolvimento subcutâneo. No entanto, não foi detectado dano ósseo, a manifestação osteoarticular mais frequente, nem ulcerações na pele ou mucosas causadas pela disseminação do fungo, provavelmente em razão do diagnóstico precoce.

Em conclusão, os exames de ultrassonografia devem ser parte da rotina de cuidados médicos como uma extensão do exame físico reumatológico para ajudar a formular diagnósticos diferenciais mais precisos em pacientes com mono ou oligoartrite, principalmente em artropatias infecciosas, como a tuberculose, a hanseníase, a artrite séptica, as espondiloartropatias e também a paracoccidioidomicose.

Este manuscrito foi revisado por um editor profissional especializado na área da saúde e por um revisor cuja língua nativa era o inglês, a fim de melhorar a legibilidade.

Referências

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    » https://doi.org/10.1002/14651858

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2016

Histórico

  • Recebido
    8 Nov 2013
  • Aceito
    21 Fev 2014
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