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Micofenolato mofetil na síndrome de Sjögren primária: uma opção para o tratamento da agranulocitose

Resumos

A síndrome de Sjögren (SS) é uma doença autoimune caracterizada pela presença de infiltrado linfocítico nas glândulas salivares e lacrimais. Manifestações hematológicas da síndrome de Sjögren primária (SSp) geralmente consistem em anemia leve, trombocitopenia, neutropenia moderada e linfopenia. Agranulocitose é raramente descrita e, em geral, responde bem ao tratamento de imunossupressão. Neste trabalho, descrevemos o caso de uma paciente portadora de SSp que apresentou quadro de agranulocitose refratária ao tratamento. A biópsia de medula revelou medula óssea hipocelular com maturação normal da série granulocítica. A paciente foi sucessivamente tratada com prednisona em altas doses, fator estimulador de colônia de macrófagos e ciclosporina, todos sem resposta hematológica. Micofenolato mofetil (MMF) foi iniciado, e após dois meses houve aumento na contagem das células brancas. Após um ano de seguimento a paciente não apresentou novos episódios de neutropenia, nem complicações infecciosas. Concluímos que, na agranulocitose refratária associada à SSp, o tratamento com MMF pode ser uma opção eficaz e bem tolerada.

neutropenia; agranulocitose; resultado de tratamento; imunossupressores; síndrome de Sjögren


The Sjögren's syndrome (SS) is an autoimmune disease characterized by a lymphocytic infiltration of salivary and lacrimal glands. Hematological manifestations of primary SS (pSS) usually consist of mild anemia, thrombocytopenia, moderate neutropenia, and lymphopenia. Agranulocytosis is rarely reported and usually responds to immunosuppression. We report the case of a pSS patient who presented with refractory agranulocytosis. Bone marrow biopsy disclosed a hypocellular bone marrow with normal maturation of the granulocytic series. The patient was successively treated with high-dose prednisone, granulocyte-macrophage colony stimulation factor, and cyclosporine, with no hematological response. Mycophenolate mofetil (MMF) was initiated and after two months there was a rise on the white blood cell count. After one year of follow-up, she had neither further neutropenia episodes, nor infectious complications. We conclude that, in pSS refractory agranulocytosis, MMF can be an effective and well-tolerated treatment option.

neutropenia; agranulocytosis; treatment outcome; immunosuppressive agents; Sjögren's syndrome


RELATO DE CASO

Micofenolato mofetil na síndrome de Sjögren primária: uma opção para o tratamento da agranulocitose

Sonia Cristina de Magalhães Souza FialhoI; Samuel BergamaschiII; Fabrício Souza NevesIII; Adriana Fontes ZimmermannIV; Gláucio Ricardo Werner de CastroIV; Ivânio Alves PereiraV

IDoutora em Reumatologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP; Médica-Assistente dos Serviços de Reumatologia e Clínica Médica, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Médica-Assistente do Serviço de Reumatologia do Hospital Governador Celso Ramos

IIAluno do curso de Graduação em Medicina, UFSC

IIIDoutor em Ciências Médicas, FMUSP; Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica, UFSC

IVPós-graduando em Ciências, UFSC; Médico-Assistente do Núcleo de Reumatologia, UFSC

VDoutor em Reumatologia, FMUSP; Chefe do Núcleo de Reumatologia do Hospital Universitário, UFSC

Correspondência para Correspondência para: Sonia Cristina de Magalhães Souza Fialho Rodovia Virgílio Várzea, 1510 - Bloco H-101 - Saco Grande CEP: 88032-001. Florianópolis, SC, Brasil E-mail: fialhoson@gmail.com

RESUMO

A síndrome de Sjögren (SS) é uma doença autoimune caracterizada pela presença de infiltrado linfocítico nas glândulas salivares e lacrimais. Manifestações hematológicas da síndrome de Sjögren primária (SSp) geralmente consistem em anemia leve, trombocitopenia, neutropenia moderada e linfopenia. Agranulocitose é raramente descrita e, em geral, responde bem ao tratamento de imunossupressão. Neste trabalho, descrevemos o caso de uma paciente portadora de SSp que apresentou quadro de agranulocitose refratária ao tratamento. A biópsia de medula revelou medula óssea hipocelular com maturação normal da série granulocítica. A paciente foi sucessivamente tratada com prednisona em altas doses, fator estimulador de colônia de macrófagos e ciclosporina, todos sem resposta hematológica. Micofenolato mofetil (MMF) foi iniciado, e após dois meses houve aumento na contagem das células brancas. Após um ano de seguimento a paciente não apresentou novos episódios de neutropenia, nem complicações infecciosas. Concluímos que, na agranulocitose refratária associada à SSp, o tratamento com MMF pode ser uma opção eficaz e bem tolerada.

Palavras-chave: neutropenia, agranulocitose, resultado de tratamento, imunossupressores, síndrome de Sjögren.

INTRODUÇÃO

A síndrome de Sjögren (SS) é uma doença crônica autoimune caracterizada por infiltração linfocítica das glândulas salivares e lacrimais, que leva à progressiva destruição dessas glândulas.1 Pode ocorrer como uma síndrome localizada, que causa primariamente secura de boca e olhos (síndrome sica), ou como uma doença sistêmica, afetando múltiplos órgãos. Pode ainda ocorrer como um distúrbio primário ou secundário. No distúrbio primário, um paciente sem doença conhecida do tecido conjuntivo desenvolve os sintomas clássicos da síndrome sica.

Em geral, as manifestações hematológicas da SS primária (SSp) consistem em anemia e trombocitopenia leves, além de neutropenia e linfopenia moderadas.1 Há relatos de agranulocitose inexplicada em pacientes com SSp.2-4 A produção de neutrófilos na medula óssea pode estar afetada, ou os neutrófilos podem ser destruídos na circulação por mecanismos imunes tanto humorais quanto celulares. A agranulocitose associada à SSp em geral responde aos esteroides usados isolados ou associados a imunossupressores.2,4,5 De modo diferente, um estudo relatou que esteroides isolados não foram eficazes e sua associação com metotrexato resultou apenas em resposta parcial e transitória.6

Relatamos o caso de uma paciente com SSp que desenvolveu agranulocitose refratária, tendo sido tratada com sucesso com micofenolato mofetil (MMF).

RELATO DE CASO

A paciente é uma mulher de 69 anos com xerostomia e xeroftalmia crônicas, admitida em nosso hospital devido a pneumonia comunitária. Ela já havia apresentado pancitopenia, e fora submetida em outro centro médico a esfregaço e biópsia de medula óssea, que resultaram normais. Na admissão, os exames sanguíneos mostraram hemoglobina 11,4 g/dL, hematócrito 34,3% e plaquetas 317.000. A contagem de leucócitos foi de 2.800, com 392 neutrófilos (14%). A velocidade de hemossedimentação foi de 19 mm/h, o nível de proteína C-reativa foi de 2 mg/L, e o nível de creatinina, 1 mg/L. A eletroforese de proteínas séricas mostrou hipergamaglobulinemia policlonal. As pesquisas dos fatores reumatoide e antinuclear (1:320) foram positivas, mas a pesquisa de anti-SSA/SSB foi negativa. A avaliação oftalmológica confirmou ceratoconjuntivite seca e úlcera de córnea. A biópsia de medula óssea revelou hipocelularidade com maturação normal da série granulocítica e imunofenotipagem normal.

A paciente foi inicialmente tratada com 1 g de ceftazidima endovenosa a cada 8 horas, prednisona 60 mg/dia e fator estimulador de colônias de macrófagos e granulócitos (GM-CSF). Após estabilização clínica, a paciente teve alta e foi encaminhada para acompanhamento ambulatorial, mas foi readmitida três outras vezes com agranulocitose, sendo novamente tratada com altas doses de corticosteroides e GM-CSF. A despeito disso, ela ainda apresentava contagem de leucócitos de 5.130, com 0 neutrófilos. O tratamento com ciclosporina até 100 mg duas vezes ao dia por oito meses não teve resposta hematológica (contagem de leucócitos de 3.180, com 60 neutrófilos). Decidimos finalmente iniciar 2 g/dia de MMF, e após dois meses a contagem de leucócitos foi de 3.510, com 2.200 neutrófilos. A dose de prednisona foi progressivamente reduzida para 2,5 mg/dia. Depois de oito meses, a contagem de leucócitos foi de 4.620, com 2.543 neutrófilos. Após acompanhamento de um ano, embora a paciente não tivesse apresentado melhora da secura ocular e oral, já não apresentou episódios de neutropenia nem complicações infecciosas.

A paciente assinou termo de consentimento livre e informado, de acordo com a declaração de Helsinque. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.

DISCUSSÃO

O ácido micofenólico (MPA) é um inibidor seletivo da inosina monofosfato desidrogenase, que leva à inibição da via "de novo" da síntese de nucleotídeos. O efeito antiproliferativo do MPA afeta principalmente linfócitos T e B ativados, pois a proliferação dessas células depende da síntese de purina "de novo", em comparação a outras células eucariontes.7 Uma vez sugerido que esses linfócitos desempenham papel importante na imunopatogênese de SSp,8 o MPA pode ser um agente promissor no tratamento dessa síndrome.

Ainda são necessários estudos sobre a eficácia e a segurança do MMF na SSp em um maior número pacientes. Entretanto, o MMF tem sido usado como terapia de manutenção após o tratamento com rituximabe (anticorpo anti-CD20)9 e no tratamento da vasculite associada à SSp.10 Tais observações e o efeito imunossupressor do MPA em outras doenças autoimunes levaram Willeke et al.10 a avaliar (em um ensaio piloto controlado aberto) a eficácia e a segurança do tratamento com MMF em pacientes com SSp refratária aos outros agentes imunossupressores. Em geral, o tratamento com MMF resultou em melhora subjetiva da secura ocular na escala visual analógica e em redução da demanda por suplementação com lágrima artificial. No entanto, não houve alteração significativa dos parâmetros objetivos de secura de olhos e boca. O tratamento com MMF resultou ainda em uma redução significativa da hipergamaglobulinemia e do fator reumatoide, além de um aumento nos níveis do complemento e na contagem de leucócitos/neutrófilos, sugerindo que o MMF também possa ser eficaz para o tratamento da leucopenia associada à SSp.

Em resumo, a associação de agranulocitose com SSp é rara, mas bem conhecida. Em geral, a agranulocitose responde aos esteroides usados isoladamente ou em associação com imunossupressores. Entretanto, em um estudo e no caso aqui relatado, os esteroides usados isoladamente não foram eficazes, tendo a associação com imunossupressores resultado apenas em resposta parcial e transitória. Nesses casos, o MMF pode ser uma opção de tratamento eficaz.

Recebido em 28/12/2010.

Aprovado, após revisão, em 14/12/2011.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

  • 1
    Fox RI, Howell FV, Bone RC, Michelson P. Primary Sjögren syndrome: clinical and immunopathologic features. Semin Arthritis Rheum 1984;14(2):77-105.
  • 2
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  • 9
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  • 10
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  • Correspondência para:
    Sonia Cristina de Magalhães Souza Fialho
    Rodovia Virgílio Várzea, 1510 - Bloco H-101 - Saco Grande
    CEP: 88032-001. Florianópolis, SC, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Dez 2010
    • Aceito
      14 Dez 2011
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