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Carta aos editores

CARTA AOS EDITORES

A participação do aparelho auditivo nas doenças autoimunes

Em primeiro lugar, deve ser ressaltada a dificuldade encontrada para um completo levantamento deste tema, pois as fontes disponíveis se referem mais às explicações físico-patológicas do que ao enfoque sobre os achados clínicos.1

É interessante que este tema seja examinado sob dois enfoques. O primeiro é quando os sintomas auditivos aparecem antes da consolidação do diagnóstico da doença autoimune e serão a base para a sua confirmação. Um exemplo evidente é a caracterização de uma condrite aguda unilateral. O segundo é quando o diagnóstico da doença principal já é evidente, o acometimento da orelha será registrado como uma manifestação rara ou incerta e que ainda não está no rol dos achados mais característicos da doença. É um exemplo o aparecimento súbito de surdez ou secreção expelida pelo conduto.

É nossa ideia que a Sociedade Brasileira de Reumatologia possa ampliar e atualizar um antigo trabalho que visava a estabelecer melhores dados a respeito do aparelho auditivo. Mesmo os tratados sobre lúpus eritematoso sistêmico (LES), condição na qual mais frequentemente se observam essas alterações, não acrescentam dados seguros sobre o problema. Abaixo, estão referidas as principais condições autoimunes com manifestações otológicas.

No tocante à artrite reumatoide, pouco se pode extrair da literatura, que informa mais sobre a ação deletéria dos medicamentos como anti-inflamatórios e antipalúdicos, frequentes causas de problemas nos ouvidos dos pacientes. Há registros superficiais de maior frequência de uma surdez leve ou moderada nos que apresentam a doença por muitos anos.

A doença imunomediada da orelha interna (IMIED) produz uma surdez neurossensorial. Nesses casos, os pacientes se queixam de diminuição da acuidade acústica ou diminuição da discriminação do som. Geralmente é bilateral, rapidamente progressiva. Pode estar associada a sintomas vestibulares. O mecanismo da síndrome não é completamente elucidado, mas se aceita ser de natureza imunológica. Sabe-se que o saco endolinfático é um órgão imunocompetente e que anticorpos circulantes, contra antígenos da orelha interna, bem como antígenos virais da endolinfa, são encontrados nessa condição. Mas a especificidade, a sensibilidade e o papel desses autoanticorpos no processo patológico são pobremente explicados. Geralmente, o uso precoce e em doses altas da corticoterapia soluciona ou reduz muito o problema. No caso da persistência de manifestações resistentes à corticoterapia, uma opção seria o metotrexato, com um bom, regular e, às vezes, ineficiente resultado, de acordo com vários trabalhos publicados.

O diagnóstico diferencial para os pacientes com IMIED inclui: doença de Meniérie, doença de Lyme, perda progressiva hereditária, surdez degenerativa, trauma acústico, neurinoma acústico, outras lesões da fossa posterior, esclerose múltipla, neurossífilis, ototoxicidade, hipercoagulabilidade, doença hematológica, síndrome de anticorpos antifosfolípides, além de outras doenças autoimunes.

Casos de surdez neurossensorial têm sido descritos frequentemente em pacientes com lúpus. Esse tipo de surdez é uma forma limitada, uni ou bilateral da IMIED, que afeta a orelha média. Essa manifestação pode estar associada a títulos altos de anticorpos anticardiolipina. Alguns autores registram a possibilidade desse achado clínico em até 22% dos casos, os quais geralmente passam despercebidos devido à gravidade do restante dos sintomas do LES.

Devemos lembrar que algumas medicações usadas no LES, como a cloroquina e derivados e alguns diuréticos, podem ser responsáveis por um quadro similar. Por vezes, esses sintomas auditivos podem estar associados à insuficiência aórtica aguda. Esses achados não têm correlação com a presença ou a elevação dos títulos de fator antinuclear ou antiDNA.

Na policondrite recidivante, constata-se a existência de uma surdez que pode variar de leve a grave. Deve-se à extensão do processo inflamatório para a orelha média e a trompa de Eustáquio. Existem também manifestações audiovestibulares por causa de hidropsia endolinfática. Ela é uma doença autoimune, episódica, e consta de recorrente inflamação das estruturas cartilaginosas. Pode estar associada a outras doenças autoimunes, e o clínico não deve esquecer, no momento do aparecimento desses sintomas incomuns, a necessidade da pesquisa da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). A condrite recorrente auricular está presente em 85% dos pacientes e é um achado muito sugestivo da doença. Outras manifestações no aparelho auditivo podem ser: otite externa, meningite crônica, disfunção da trompa de Eustáquio, surdez condutiva, tinitus e surdez sensorioneural. Todos melhoram com corticoterapia. Estudos laboratoriais e biópsias podem contribuir para o diagnóstico. Deve-se sempre exigir uma ação conjunta do otorrinolaringologista e do reumatologista para um correto manejo.

Na esclerose sistêmica, pode haver surdez neurossensorial predominando na orelha média, mas também existe alta incidência de surdez do tipo misto.

Em algumas vasculites, pode ocorrer uma sensação dolorosa no ouvido interno, vermelhidão do conduto (hiperemia do conduto), otite média serosa etc. Curiosamente, existe uma associação entre anticorpos antimieloperoxidase e surdez nos pacientes com poliarterite nodosa ou poliangeíte microscópica, sendo por vezes a manifestação inicial da doença.

O tratamento com corticoterapia deve ser iniciado prontamente, bem como a terapêutica para a síndrome de Meniére, caso necessário. Após duas semanas, deve ser realizado um audiograma. Se o resultado não for satisfatório, indicam-se mais duas semanas de altas doses de corticoide. Alternativamente, pode-se indicar a injeção de dexametasona intratimpânica, tendo-se em mente, entretanto, que esse procedimento pode causar infecção ou perfuração persistente do tímpano. Mesmo que a corticoterapia agressiva mostre uma resposta insuficiente, o paciente deve ser mantido com pequenas doses (5 a 10 mg de prednisona/dia). Quando a corticoterapia falha, pode-se utilizar a ciclofosfamida oral na dose de 2 mg/kg/dia. A plasmaferese tem mostrado algum resultado. Recentemente, tem-se usado o agente biológico etanercepte 25 mg duas vezes por semana, via subcutânea, por um período de 5 a 10 meses. Haverá uma melhora em 58% dos casos e estabilização em 33%. O tinitus melhorará em 90%, além de combater a vertigem.

A síndrome de Cogan é uma rara doença sistêmica de causa desconhecida que se associa a um padrão característico de inflamação nos olhos e na orelha interna. É uma vasculite com participação de vasos sanguíneos de vários tamanhos, inclusive grandes artérias. Os sintomas audiovestibulares foram corretamente identificados em 1940. Tipicamente, o início é unilateral e gradualmente se torna bilateral. Progressivamente, pode levar à surdez em 50% dos pacientes. A surdez pode se apresentar inicialmente. Alguns pacientes têm sintomas parecidos com a doença de Meniére, sem surdez, porém com vertigem, náuseas e ataxia. A aorta deve ser cuidadosamente examinada.

Na granulomatose de Wegener, pode haver uma surdez de condução resultante da participação granulomatosa da nasofaringe. Há também disfunção da trompa de Eustáquio, otite média grave que pode ser purulenta, perfuração central do tímpano e surdez neurossensorial.

Algumas condições infecciosas como a otossífilis devem ser lembradas numa anamnese cuidadosa. Deve-se levar em conta que a neurossífilis e a sífilis da orelha interna não são a mesma condição. Nessa manifestação, é obrigatória a verificação de aids.

Em relação a dados brasileiros, existem poucas publicações. Em 1983, Atra et al.2 publicaram na Revista Brasileira de Reumatologia o artigo "Estudo da audição no LES", Gomides et al.3 publicaram outro artigo sobre surdez no LES, no qual verificam que o problema afeta uma significativa proporção de pacientes.

Dr. Acir Rachid

Professor-titular aposentado do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná na área de Reumatologia. Livre-docente de Reumatologia pela Universidade Federal do Paraná. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Membro da Academia Brasileira de Reumatologia.

  • 1
    Papadimitraki ED, Kyrmizakis DE, Kritikos I, Boumpas DT. Ear-nose-throat manifestations of autoimmune rheumatic diseases. Clin Exp Rheumatol 2004;22(4):485-94.
  • 2
    Atra EE, Pontes PAL, Goldenberg J, Nóbrega J. Estudo da audição no lúpus eritematoso sistêmico. Rev Bras Reumatol 1983;23:203-207. Ref Type: Generic
  • 3
    Gomides AP, do Rosario EJ, Borges HM, Gomides HH, de Padua PM, Sampaio-Barros PD. Sensorineural dysacusis in patients with systemic lupus erythematosus. Lupus 2007;16(12):987-90.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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