Acessibilidade / Reportar erro

Correlação entre a síndrome antifosfolipídica e a crioglobulinemia: série de quatro casos e revisão da literatura

Resumo

Introdução:

A crioglobulinemia é uma vasculite de pequenos vasos mediada por imunocomplexos que normalmente envolvem a pele, os rins e os nervos periféricos. A síndrome antifosfolipídica (SAF) é um transtorno da hipercoagulabilidade autoimune que provoca trombose dos vasos sanguíneos. Pode se manifestar como um distúrbio microtrombótico que afeta múltiplos órgãos, denominado SAF catastrófica.

Objetivo:

Esta série de casos objetiva descrever os desafios de diagnóstico e tratamento que surgem quando esses dois graves transtornos estão presentes simultaneamente no mesmo paciente.

Métodos:

Foram descritos quatro pacientes internados em nosso hospital em decorrência de danos graves a múltiplos órgãos mediados pela vasculite crioglobulinêmica com SAF concomitante.

Resultados:

As manifestações clínicas incluíram úlceras de perna, livedo reticular, insuficiência renal e neuropatia periférica. As etiologias sugeridas para a combinação de síndromes foram a hepatite C, o lúpus eritematoso sistêmico e a doença mieloproliferativa retal associada a linfoma de zona marginal tipo células B. Todos os pacientes foram tratados com anticoagulantes, altas doses de corticosteroides, rituximabe, gamaglobulinas intravenosas e troca de plasma.

Conclusão:

A rara associação entre a SAF grave ou catastrófica e a crioglobulinemia deve ser considerada por médicos que atendem pacientes com isquemia ou necrose de múltiplos órgãos.

Palavras-chave:
Crioglobulinemia; Síndrome antifosfolipídica; Vasculite

Abstract

Background:

Cryoglobulinemia is an immune-complex-mediated small vessel vasculitis that classically involves the skin, kidneys and peripheral nerves. Antiphospholipid syndrome (APS) is an autoimmune hypercoagulable disorder which causes blood vessel thrombosis. It can present as a multi-organ microthrombotic disorder which is called catastrophic APS.

Objective:

In this case series we aim to describe the diagnostic and management challenges that arise when these two severe disorders simultaneously present in the same patient.

Methods:

We describe four patients who were admitted to our hospital due to multi-organ life threatening damage mediated by cryoglobulinemic vasculitis with concurrent APS.

Results:

Clinical manifestations included leg ulcers, livedo reticularis, renal failure, and peripheral neuropathy. Suggested etiologies for the combined syndromes were hepatitis C, systemic lupus erythematosus and myeloproliferative disease rectal maltoma. All of our patients were treated with anticoagulation, high-dose corticosteroids, rituximab, intravenous gammaglobulins and plasma exchange.

Conclusion

The rare association of severe or catastrophic APS with cryoglobulinemia in patients should be considered by physicians who treat patients with multi-organ ischemia or necrosis.

Keywords:
Cryoglobulinemia; Antiphospholipid syndrome; Vasculitis

Introdução

As crioglobulinas (CG) são imunocomplexos formados por imunoglobulinas (Ig), tanto policlonais quanto monoclonais, que se ligam a outras Ig que se depositam em pequenos vasos sanguíneos e glomérulos depois da exposição a temperaturas baixas. A prevalência de crioglobulinemia clinicamente significativa foi estimada em cerca de um em 100 mil.11 Bonnet F, Pineau JJ, Taupin JL, Feyler A, Bonarek M, de Witte S, et al. Prevalence of cryoglobulinemia and serological markers of autoimmunity in human immunodeficiency virus infected individuals: a crosssectional study of 97 patients. J Rheumatol. 2003;30:2005.

2 Garcia-Carrasco M, Ramos-Casals M, Cervera R, Trejo O, Yagüe J, Siso A, et al. Cryoglobulinemia in systemic lupus erythematosus: prevalence and clinical characteristics in a series of 122 patients. Semin Arthritis Rheum. 2001;30:366.

3 Ramos-Casals M, Cervera R, Yagüe J, Garcia-Carrasco M, Trejo O, Jiménez S, et al. Cryoglobulinemia in primary Sjögren's syndrome: prevalence and clinical characteristics in a series of 115 patients. Semin Arthritis Rheum. 1998;28:200.
-44 Cicardi M, Cesana B, Del Ninno E, Pappalardo E, Silini E, Agostoni A, et al. Prevalence and risk factors for the presence of serum cryoglobulins in patients with chronic hepatitis C. J Viral Hepat. 2000;7:138. A presença de imunocomplexos que contêm CG muitas vezes resulta em vasculite de vasos de pequeno a médio porte.55 Jennette JC, Falk RJ, Andrassy K, Bacon PA, Churg J, Gross WL, et al. Nomenclature of systemic vasculitides proposal of and international consensus conference. Arthritis Rheum. 1994;37:187.

6 Dispenzieri A, Gorevic PD. Cryoglobulinemia. Hematol Oncol Clin North Am. 1999;13:1315.
-77 Lamprecht P, Gause A, Gross WL. Cryoglobulinemic vasculitis. Arthritis Rheum. 1999;42:2507. A classificação de Brouet para a crioglobulinemia se baseia na composição das CG:88 Brouet JC, Clauvel JP, Danon F, Klein M, Seligmann M. Biologic and clinical significance of cryoglobulins. A report of 86 cases. Am J Med. 1974;57:775. Tipo I – Ig monoclonais isoladas; tipo II – CG mistas – imunocomplexos formados por Ig monoclonais; esse é o tipo mais comum e está associado ao HCV e HIV; tipo III – CG mistas – imunocomplexos formados por Ig policlonais.

Embora a maior parte dos pacientes com crioglobulinemia permaneça assintomática, a doença pode envolver principalmente a pele, os rins e o sistema nervoso periférico. As manifestações da crioglobulinemia do tipo I geralmente são decorrentes da hiperviscosidade e/ou trombose e incluem fenômeno de Raynaud, isquemia e gangrena digital, livedo reticular, púrpura e sintomas neurológicos. Em contraste, os tipos II e III de crioglobulinemia causam artralgia, fadiga, mialgia, púrpura palpável, neuropatia periférica e glomerulonefrite membranoproliferativa.99 Monti G, Galli M, Invernizzi F, Pioltelli PSaccardo F, Monteverde A, et al. Cryoglobulinaemias: a multi-centre study of the early clinical and laboratory. manifestations of primary and secondary disease. GISC Italian Group for the Study of Cryoglobulinaemias QJM. 1995;88:115.

10 Montagnino G. Reappraisal of the clinical expression of mixed cryoglobulinemia. Springer Semin Immunopathol. 1988; 10:1.
-1111 Trejo O, Ramos-Casals M, Garcia-Carrasco M, Yagüe J, Jiménez S, de la Red G, et al. Cryoglobulinemia: study of etiologic factors and clinical and immunologic features in 443 patients from a single center. Medicine (Baltimore). 2001;80:252. A síndrome antifosfolipídica (SAF) é um distúrbio autoimune de hipercoagulabilidade caracterizado pela trombose arterial e/ou venosa, morbidade gestacional que inclui aborto recorrente e eclâmpsia na presença de níveis elevados de anticorpos anticardiolipina (ACL) (≥ 40 U) e/ou anticorpos β2-glicoproteína I IgG e/ou IgM (> percentil 99) e/ou anticoagulante lúpico (AcLu).

Anticorpos antifosfolipídeos (aPL). De acordo com os critérios laboratoriais revisados, o diagnóstico é feito em caso de anticorpos ACL IgG e/ou IgM, anticorpos anti-β2 glicoproteína I (β2GPI) IgG e/ou IgM (de acordo com o kit laboratorial usado, > 20 U) e/ou teste positivo para anticoagulante lúpico (AcLu) em duas ocasiões consecutivas, separadas por pelo menos 12 semanas de intervalo.1212 Miyakis S, Lockshine MD, Atsumi T, Branch DC, Brey RL, Cervera R, et al. International consensus statement on an update of the classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Thromb Haemost. 2006;4:295-306.

13 Nair S, Khamashta MA, Hughes GRV. Syndrome X and Hughes syndrome. Lupus. 2002;11:332-9.

14 Ruiz-Irastorza G, Crowther M, Branch W, Khamashta MA. Antiphospholipid syndrome. Lancet. 2010;376:1498-509.
-1515 Miyakis S, Lockshin MD, Atsumi T, Branch DW, Brey RL, Cervera R, et al. International consensus statement on an update of the classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Thromb Haemost. 2006;4:295-306. Estudos prévios relatam uma associação entre a crioglobulinemia e a SAF (tabela 1).1616 Hanly JG, Smith SA. Autoimmune antiphospholipid antibodies and. cryoglobulinemia. Lupus. 2000;9(4):264-70.

17 Yancey WB, Edwards NL, Williams RC. Cryoglobulins in a patient with SLE, livedo reticularis, and elevated level of anticardiolipin antibodies. Am J Med. 1990;88(6):699.

18 Andrejevic S, Bonaci-Nikolic B, Bukilica M, Milivojevic G, Basanovic J, Nikolic MM. Purpura and leg ulcers in a patient with cryoglobulinaemia, non-Hodgkin's lymphoma, and antiphospholipid syndrome. Clin Exp Dermatol. 2003;28(2):151-3.

19 Chang AD, Tachdjian R, Gallagher K, McCurdy DK, Lassman C, Stiehm ER, et al. Type III mixed cryoglobulinemia and antiphospholipid syndrome in a patient with partial DiGeorge's syndrome. Clin Dev Immunol. 2006;13(2-4):261-4.
-2020 Asherson RA, D'Cruz D, Hughes GR. Cryoglobulins, anticardiolipin antibodies and livedo reticularis. J Rheumatol. 1992;19(5):826. Neste estudo, descrevem-se quatro pacientes que apresentaram manifestações tanto de vasculite crioglobulinêmica I2121 Kamali S, Artim-Esen B, Erer B, Ozdener L, Gul A, Ocal L, et al. Re-evaluation of 129 patients with systemic necrotizing vasculitides by using classification algorithm according to consensus methodology. Clin Rheumatol. 2012;31(2):325-8. quanto de SAF.

Tabela 1
Características laboratoriais dos pacientes estudados

Apresentação dos casos

Caso 1

Paciente de 51 anos do sexo feminino, com diabetes mellitus do tipo 2 e hipertensão arterial. Em 1997, apresentou perda súbita da visão do olho direito. Em 2001, desenvolveu livedo reticular em ambos os membros inferiores. Os exames laboratoriais revelaram um nível de proteína na urina de 500 mg/dL, níveis de PCR de 54,85 mg/dL (limite superior do intervalo normal: 0,5 mg/dL) e sorologia positiva para aPL (dois testes feitos com 12 semanas de intervalo – os valores estão listados na tabela 2).

Tabela 2
Resumo dos estudos e séries de caso das características clínicas e laboratoriais de pacientes com síndrome antifosfolipídica e crioglobulinemia

Além disso, apresentou resultados positivos para anticorpo antinuclear (ANA) (1:160), criofibrinogênio associado a IgG e IgM kappa e crioglobulina IgM tipo 1 positiva (215 mg/L; valor de referência: 0 a 60 mg/L). A biópsia renal evidenciou glomerulonefrite membranoproliferativa. A paciente foi tratada com 1 g de metilprednisolona, que foi gradualmente reduzida para 60 mg em seis meses. Três anos depois, a paciente foi internada com púrpura, úlceras em membros inferiores e hemorragia em lascas das unhas.

A paciente apresentou síndrome nefrótica com proteína na urina de 5 g/24 h e insuficiência renal aguda (creatinina sérica de 2,8 mg/dL). A biópsia de pele revelou um evento trombótico, sem evidências de vasculite. A urina foi positiva para proteína de Bence-Jones. A CG (315 mg/L; valor de referência: 0 a 60 mg/L) e o criofibrinogênio (valor de referência: 3 g/L; limite superior do intervalo normal: 0,5 g/L) foram positivos. Os exames para hepatite B e C foram negativos. A biópsia de medula óssea não revelou mieloma nem qualquer outra doença linfoproliferativa.

A paciente foi tratada com 60 mg de prednisona e varfarina (dose ajustada de acordo com o INR alvo de 2 a 3), com melhoria das manifestações cutâneas e normalização parcial dos níveis de creatinina (1,7 mg/dL). A proteína na urina foi de 2,3 g/24 h.

Dois anos depois, a paciente manifestou dispneia, hemoptise, anemia, púrpura de membros inferiores e nível de creatinina elevado. A TC de tórax revelou hemorragia alveolar difusa. O tratamento com varfarina foi então descontinuado. O nível de creatinina era de 4,62 mg/dL, com 7,13 g/24 h proteína na urina; foram encontrados cilindros hemáticos no exame microscópico de urina. O criofibrinogênio associado a IgG kappa foi positivo (2 g/L; limite superior do intervalo normal: 0,5 g/L). As CG foram negativas (32 mg/L; valor de referência: 0 a 60 mg/L) e os aPL foram positivos. Foi iniciado tratamento com diálise, hidrocortisona (100 mg × 3 dias), dois ciclos de infusão de rituximabe (1 g) e plasmaferese. A paciente morreu na unidade de terapia intensiva duas semanas depois de ter sido hospitalizada, em decorrência de sepse.

Caso 2

Paciente de 66 anos do sexo masculino, com diabetes mellitus tipo 2. Em 2003, o paciente manifestou úlceras nos membros inferiores (principalmente nos artelhos). Foi tratado com prednisona (60 mg × 1 dia), que foi gradualmente reduzida durante três meses, e iloprosta IV (análogo da prostaciclina PGI2). A sorologia para hepatite B foi positiva (HBs e HBe positivos) e foi iniciado tratamento antiviral com lamivudina (inibidor da transcriptase reversa análogo de nucleosídeos) (300 mg × 1 dia). Com esse tratamento, as úlceras do paciente melhoraram.

Três anos mais tarde, o paciente manifestou úlceras isquêmicas em vários artelhos e púrpura em ambos os membros inferiores. A biópsia de pele revelou sangramento fresco na derme com infiltração mononuclear ao redor dos vasos sanguíneos. Um vaso sanguíneo foi circundado por infiltrações polimorfonucleares e em alguns vasos foram observados trombos. Foram encontradas CG IgG monoclonal de cadeia leve kappa tipo 1 (152 mg/L; valor de referência: 0 a 60 mg/L). Os níveis de C3 e C4 foram normais. A biópsia de medula óssea revelou 7% a 8% de células plasmáticas positivas para IgG kappa. A maior parte das células do plasma era IgA monoclonal. O paciente foi tratado para crioglobulinemia tipo 1 com gamopatia monoclonal com plasmaferese e ciclofosfamida IV por seis meses.

Seis anos depois da manifestação inicial, ele desenvolveu hemiparesia à esquerda. Os exames laboratoriais repetidos com 12 semanas de intervalo foram positivos para aPL (os valores estão listados na tabela 2) e a concentração de ANA foi de 1:160. O paciente foi diagnosticado com SAF e tratado com varfarina.

Um ano mais tarde, o paciente manifestou necrose no terceiro artelho do pé direito e púrpura palpável no membro inferior esquerdo. Foi tratado com bloqueio simpático, hidrocortisona (100 mg × 3 d), plasmaferese, iloprosta IV e varfarina. A biópsia de medula óssea revelou positividade para CD138, com células plasmáticas secretoras de cadeia lambda e cadeia leve kappa.

Em 2011, uma biópsia de medula óssea mostrou 15% de células plasmáticas positivas para secreção de IgG cadeia leve kappa (mieloma mútiplo – células plasmáticas clonais > 10% na biópsia de medula óssea). O paciente era positivo para CG (343 mg/L; valor de referência: 0 a 60 mg/L). Portanto, o paciente foi diagnosticado com mieloma múltiplo e começou tratamento com melfalano, prednisona e bortezomibe.

Caso 3

Paciente de 40 anos do sexo masculino com exame positivo para vírus da hepatite C (HCV), diagnosticado com lúpus eritematoso sistêmico (LES) em 1999. A manifestação da doença se deu por eritema malar, leucopenia, trombocitopenia, fotossensibilidade, artrite e alopécia. Exames laboratoriais: ANA e dsDNA positivos (ANA de 1:160; dsDNA de 25%, valor de referência: 0 a 20%). O paciente foi tratado com hidroxicloroquina e prednisona (em doses variadas). Cinco anos depois, apresentou gangrena no pé direito que exigiu amputação abaixo do joelho e acidente vascular encefálico (AVE) que levou à hemiparesia à direita. Uma TC revelou infarto parietal à esquerda. Os exames laboratoriais foram positivos para aPL (dois testes feitos com 12 semanas de intervalo – os valores estão listados na tabela 2) e crioglobulinemia mista (tipo 2) – 511 mg/L (valor de referência: 0 a 60 mg/L). O paciente foi tratado com varfarina, hidroxicloroquina (200 mg × 2 dias) e prednisona (60 mg), com dose reduzidas progressivamente durante três meses.

Caso 4

Paciente de 65 anos do sexo feminino, com púrpura intermitente havia quase 30 anos e que nos últimos anos começara a se queixar de dormência no membro inferior. Estudos de EMG revelaram uma axonopatia grave. Uma TC da coluna vertebral mostrou somente espondilolistese em L5-S1. Os exames laboratoriais foram positivos para crioglobulinemia mista – CG de 215 mg/L (valor de referência: 0 a 60 mg/L) e concentração de ANA de 1:160. Os níveis de C3 e C4 estavam muito baixos e a sorologia para hepatite C e B foi negativa. A sorologia para aPL foi positiva (dois exames feitos com 12 semanas de intervalo – valores listados na tabela 2). A paciente foi submetida a uma TC do abdome que revelou uma inflamação da porção terminal do íleo.

A colonoscopia revelou uma aparência macroscópica de proctite e a biópsia foi compatível com linfoma de zona marginal tipo células B. Foi iniciado tratamento com rituximabe, ciclofosfamida e prednisona. Uma semana depois, a paciente foi internada novamente em decorrência de livedo reticular, púrpura, úlceras de membros inferiores e confusão mental. A TC da cabeça não revelou infartos. Os exames laboratoriais revelaram anemia microangiopática (esquizócitos no sangue periférico) e trombocitopenia de 70 K/µL (valor de referência: 150.000 a 450.000 K/µL).

Foi iniciado tratamento com hidrocortisona (100 mg × 3 dias) e terapia anticoagulante com heparina IV. Durante o tratamento, a confusão mental melhorou parcialmente, mas as úlceras de perna evoluíram para uma infecção anaeróbia e sepse, o que levou à amputação acima do joelho da perna esquerda.

Discussão

Na série de casos apresentada, foram descritos quatro pacientes com vasculite crioglobulinêmica que manifestavam simultaneamente características clínicas de SAF. Todos os pacientes sofriam de úlceras recalcitrantes nas pernas e necrose de pele, que resultou em amputações em dois dos quatro.

Em um série de casos de 200 pacientes consecutivos com SAF (tanto SAF primária quanto secundária a LES), as úlceras e/ou necrose de pele foram relatadas em apenas 2% dos pacientes2222 Francès C, Niang S, Laffitte E, Pelletier Fl, Costedoat N, Piette JC. Dermatologic manifestations of the antiphospholipid syndrome: two hundred consecutive cases. Arthritis Rheum. 2005;52(6):1785-93., ao passo que ocorrem em 10% dos indivíduos com crioglobulinemia.2323 Monti G, Galli M, Invernizzi F, Pioltelli P Saccardo F, Monteverde A, et al. Cryoglobulinaemias: a multicentre study of the early clinical and laboratory manifestations of primary and secondary disease. GISC Italian Group for the Study of Cryoglobulinaemias QJM. 1995;88(2):115-26. Nesta série de casos, os quatro pacientes sofriam de úlceras e necrose de pele, provavelmente em razão do efeito sinérgico das crioglobulinas e da isquemia cutânea mediada pela trombose decorrente da oclusão de vasos sanguíneos de pequeno e médio porte.

Os dados encontrados neste estudo de caso concordam com três séries de casos de pacientes com crioglobulinemia e SAF associadas.1616 Hanly JG, Smith SA. Autoimmune antiphospholipid antibodies and. cryoglobulinemia. Lupus. 2000;9(4):264-70.

17 Yancey WB, Edwards NL, Williams RC. Cryoglobulins in a patient with SLE, livedo reticularis, and elevated level of anticardiolipin antibodies. Am J Med. 1990;88(6):699.
-1818 Andrejevic S, Bonaci-Nikolic B, Bukilica M, Milivojevic G, Basanovic J, Nikolic MM. Purpura and leg ulcers in a patient with cryoglobulinaemia, non-Hodgkin's lymphoma, and antiphospholipid syndrome. Clin Exp Dermatol. 2003;28(2):151-3. Isso sugere que se deve avaliar a manifestação simultânea das características clínicas sobrepostas da crioglobulinemia e da SAF em pacientes com lesões cutâneas isquêmicas graves. A etiologia da crioglobulinemia e da SAF na série de casos de Hanly e Smith1616 Hanly JG, Smith SA. Autoimmune antiphospholipid antibodies and. cryoglobulinemia. Lupus. 2000;9(4):264-70. e Yancey et al.1717 Yancey WB, Edwards NL, Williams RC. Cryoglobulins in a patient with SLE, livedo reticularis, and elevated level of anticardiolipin antibodies. Am J Med. 1990;88(6):699. foi principalmente o LES. No presente estudo, dois pacientes (2 e 4) apresentavam doença linfoproliferativa, um foi diagnosticado com SAF primária e outro com HCV e LES.

Assim como os pacientes 2 e 4 desta série de casos que tinham doença linfoproliferativa, Andrejevic et al.1818 Andrejevic S, Bonaci-Nikolic B, Bukilica M, Milivojevic G, Basanovic J, Nikolic MM. Purpura and leg ulcers in a patient with cryoglobulinaemia, non-Hodgkin's lymphoma, and antiphospholipid syndrome. Clin Exp Dermatol. 2003;28(2):151-3. descreveram pacientes com linfoma não Hodgkin, crioglobulinemia monoclonal e anticorpos ACL com vasculite. Eles concluíram que pacientes com neoplasias linfoides e anticorpos ACL em seus crioprecipitados podem estar em risco de desenvolver manifestações clínicas da SAF.

Chang et al.1919 Chang AD, Tachdjian R, Gallagher K, McCurdy DK, Lassman C, Stiehm ER, et al. Type III mixed cryoglobulinemia and antiphospholipid syndrome in a patient with partial DiGeorge's syndrome. Clin Dev Immunol. 2006;13(2-4):261-4. também descreveram um paciente com síndrome de DiGeorge que desenvolveu crioglobulinemia mista, SAF e vasculite sistêmica depois de uma infecção estreptocócica.

Asherson et al.2020 Asherson RA, D'Cruz D, Hughes GR. Cryoglobulins, anticardiolipin antibodies and livedo reticularis. J Rheumatol. 1992;19(5):826. descreveram o caso de dois irmãos com deficiências hereditárias no fator 2 do complemento. Ambos manifestaram vasculite cutânea, crioglobulinemia e anticorpos ACL. Depois da remoção do crioprecipitado da amostra de soro dos dois pacientes, os anticorpos ACL séricos caíram. Isso implica a incorporação dos anticorpos ACL dentro dos crioprecipitados.

A formação de imunocomplexos β2-glicoproteína I e anticorpo anti-β2 glicoproteína I já foi descrita na literatura.2424 George J, Gilburd B, Langevitz P, Levy Y Nezlin R, Harats D, et al. Beta 2 glycoprotein I containing immunecomplexes in lupus patients: association with thrombocytopenia and lipoprotein (a) levels. Lupus. 1999;8:116-20.

No entanto, Bardin et al.2525 Bardin N, Pommier G, Sanmarco M. Can cryoglobulins interfere with the measurement of IgM antiphosphatidylethanolamine antibodies by Elisa? Thromb Res. 2007;119(4):441-6. descreveram 55 pacientes com SAF que foram positivos tanto para crioglobulinemia quanto para anticorpos fosfatidiletanolamina (aPE) IgM. A determinação dos níveis de aPE IgM foi feita antes e depois da remoção do crioprecipitado do soro. Dos 55 pacientes, 52 (95%) não apresentaram diferença estatisticamente significativa mos níveis de aPE IgM antes e depois da crioprecipitação. Os autores concluíram que, na maior parte dos casos, a crioprecipitação não interfere no nível de aPE IgM. Assim, a aPE IgM não parece estar envolvida na formação do crioprecipitado.

Este estudo não está livre de limitações; essas incluem a pequena quantidade de pacientes, com diferentes tipos de crioglobulinas, distintos isotipos de anticorpos antifosfolipídeos, bem como diferentes comorbidades. Apesar dessa heterogeneidade, os quatro pacientes estudados tiveram úlceras cutâneas isquêmicas difíceis de tratar e essa é a manifestação mais importante relacionada com a apresentação associada das duas síndromes.

Recomenda-se excluir a presença de SAF em pacientes com vasculite crioglobulinêmica que não responde à terapia convencional e vice-versa.

Referências

  • 1
    Bonnet F, Pineau JJ, Taupin JL, Feyler A, Bonarek M, de Witte S, et al. Prevalence of cryoglobulinemia and serological markers of autoimmunity in human immunodeficiency virus infected individuals: a crosssectional study of 97 patients. J Rheumatol. 2003;30:2005.
  • 2
    Garcia-Carrasco M, Ramos-Casals M, Cervera R, Trejo O, Yagüe J, Siso A, et al. Cryoglobulinemia in systemic lupus erythematosus: prevalence and clinical characteristics in a series of 122 patients. Semin Arthritis Rheum. 2001;30:366.
  • 3
    Ramos-Casals M, Cervera R, Yagüe J, Garcia-Carrasco M, Trejo O, Jiménez S, et al. Cryoglobulinemia in primary Sjögren's syndrome: prevalence and clinical characteristics in a series of 115 patients. Semin Arthritis Rheum. 1998;28:200.
  • 4
    Cicardi M, Cesana B, Del Ninno E, Pappalardo E, Silini E, Agostoni A, et al. Prevalence and risk factors for the presence of serum cryoglobulins in patients with chronic hepatitis C. J Viral Hepat. 2000;7:138.
  • 5
    Jennette JC, Falk RJ, Andrassy K, Bacon PA, Churg J, Gross WL, et al. Nomenclature of systemic vasculitides proposal of and international consensus conference. Arthritis Rheum. 1994;37:187.
  • 6
    Dispenzieri A, Gorevic PD. Cryoglobulinemia. Hematol Oncol Clin North Am. 1999;13:1315.
  • 7
    Lamprecht P, Gause A, Gross WL. Cryoglobulinemic vasculitis. Arthritis Rheum. 1999;42:2507.
  • 8
    Brouet JC, Clauvel JP, Danon F, Klein M, Seligmann M. Biologic and clinical significance of cryoglobulins. A report of 86 cases. Am J Med. 1974;57:775.
  • 9
    Monti G, Galli M, Invernizzi F, Pioltelli PSaccardo F, Monteverde A, et al. Cryoglobulinaemias: a multi-centre study of the early clinical and laboratory. manifestations of primary and secondary disease. GISC Italian Group for the Study of Cryoglobulinaemias QJM. 1995;88:115.
  • 10
    Montagnino G. Reappraisal of the clinical expression of mixed cryoglobulinemia. Springer Semin Immunopathol. 1988; 10:1.
  • 11
    Trejo O, Ramos-Casals M, Garcia-Carrasco M, Yagüe J, Jiménez S, de la Red G, et al. Cryoglobulinemia: study of etiologic factors and clinical and immunologic features in 443 patients from a single center. Medicine (Baltimore). 2001;80:252.
  • 12
    Miyakis S, Lockshine MD, Atsumi T, Branch DC, Brey RL, Cervera R, et al. International consensus statement on an update of the classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Thromb Haemost. 2006;4:295-306.
  • 13
    Nair S, Khamashta MA, Hughes GRV. Syndrome X and Hughes syndrome. Lupus. 2002;11:332-9.
  • 14
    Ruiz-Irastorza G, Crowther M, Branch W, Khamashta MA. Antiphospholipid syndrome. Lancet. 2010;376:1498-509.
  • 15
    Miyakis S, Lockshin MD, Atsumi T, Branch DW, Brey RL, Cervera R, et al. International consensus statement on an update of the classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Thromb Haemost. 2006;4:295-306.
  • 16
    Hanly JG, Smith SA. Autoimmune antiphospholipid antibodies and. cryoglobulinemia. Lupus. 2000;9(4):264-70.
  • 17
    Yancey WB, Edwards NL, Williams RC. Cryoglobulins in a patient with SLE, livedo reticularis, and elevated level of anticardiolipin antibodies. Am J Med. 1990;88(6):699.
  • 18
    Andrejevic S, Bonaci-Nikolic B, Bukilica M, Milivojevic G, Basanovic J, Nikolic MM. Purpura and leg ulcers in a patient with cryoglobulinaemia, non-Hodgkin's lymphoma, and antiphospholipid syndrome. Clin Exp Dermatol. 2003;28(2):151-3.
  • 19
    Chang AD, Tachdjian R, Gallagher K, McCurdy DK, Lassman C, Stiehm ER, et al. Type III mixed cryoglobulinemia and antiphospholipid syndrome in a patient with partial DiGeorge's syndrome. Clin Dev Immunol. 2006;13(2-4):261-4.
  • 20
    Asherson RA, D'Cruz D, Hughes GR. Cryoglobulins, anticardiolipin antibodies and livedo reticularis. J Rheumatol. 1992;19(5):826.
  • 21
    Kamali S, Artim-Esen B, Erer B, Ozdener L, Gul A, Ocal L, et al. Re-evaluation of 129 patients with systemic necrotizing vasculitides by using classification algorithm according to consensus methodology. Clin Rheumatol. 2012;31(2):325-8.
  • 22
    Francès C, Niang S, Laffitte E, Pelletier Fl, Costedoat N, Piette JC. Dermatologic manifestations of the antiphospholipid syndrome: two hundred consecutive cases. Arthritis Rheum. 2005;52(6):1785-93.
  • 23
    Monti G, Galli M, Invernizzi F, Pioltelli P Saccardo F, Monteverde A, et al. Cryoglobulinaemias: a multicentre study of the early clinical and laboratory manifestations of primary and secondary disease. GISC Italian Group for the Study of Cryoglobulinaemias QJM. 1995;88(2):115-26.
  • 24
    George J, Gilburd B, Langevitz P, Levy Y Nezlin R, Harats D, et al. Beta 2 glycoprotein I containing immunecomplexes in lupus patients: association with thrombocytopenia and lipoprotein (a) levels. Lupus. 1999;8:116-20.
  • 25
    Bardin N, Pommier G, Sanmarco M. Can cryoglobulins interfere with the measurement of IgM antiphosphatidylethanolamine antibodies by Elisa? Thromb Res. 2007;119(4):441-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2016

Histórico

  • Recebido
    1 Mar 2014
  • Aceito
    14 Set 2014
Sociedade Brasileira de Reumatologia Av Brigadeiro Luiz Antonio, 2466 - Cj 93., 01402-000 São Paulo - SP, Tel./Fax: 55 11 3289 7165 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: sbre@terra.com.br