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Osteonecrose de mandíbula em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico juvenil observada em exame de imagem

Resumos

OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi avaliar alterações radiográficas da articulação temporomandibular (ATM) em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) e controles. PACIENTE E MÉTODOS: Vinte e seis pacientes com LESJ e 28 controles foram avaliados com radiografia panorâmica da ATM. Tomografia computadorizada multislice (TCM) da ATM foi realizada naqueles que tiveram achatamento e/ou destruição dos côndilos mandibulares. Foram avaliados dados demográficos, índices de saúde bucal, manifestações clínicas, exames laboratoriais e tratamentos. RESULTADOS: Alterações radiográficas importantes compatíveis com osteonecrose de mandíbula e confirmadas pela TCM da ATM foram observadas em 2/26 (8%) de LESJ versus 0% do grupo controle (P = 0,22). Disfunção clínica leve e mobilidade alterada de ATM foram observadas em 67% e 54%, respectivamente. A idade de início, duração da doença e idade atual foram semelhantes nos pacientes com LESJ com e sem alterações radiográficas graves da ATM (9,3 versus 10,8 anos, P = 0,77; 3,3 versus 2 anos, P = 0,63; 12,6 versus 13,5 anos, P = 0,74; respectivamente). Assim como não foram evidenciadas diferenças estatísticas em ambos os grupos com relação a sexo, classe socioeconômica, índices de saúde bucal, manifestações clínicas, exames laboratoriais e tratamentos (P > 0,05). Esses dois pacientes com LESJ e osteonecrose de mandíbula tiveram curso crônico ativo da doença, utilizaram corticosteroides por um longo período e apresentaram disfunção clínica leve da ATM. Nenhum deles teve anticorpos antifosfolipídeos e não foram tratados previamente com bisfosfonatos. CONCLUSÕES: Osteonecrose de mandíbula com leve disfunção clínica da ATM foi observada em alguns pacientes, demonstrando a importância da avaliação odontológica durante o acompanhamento clínico.

lúpus eritematoso sistêmico juvenil; crianças; mandíbula; articulação temporomandibular; osteonecrose


OBJECTIVE: The objective of the present study was to evaluate radiographic changes of the temporomandibular joint (TMJ) in patients with juvenile systemic lupus erythematosus (JSLE) and a control group. PATIENTS AND METHODS: Panoramic radiographies of the TMJ of 26 JSLE patients and 28 healthy individuals were evaluated. Multislice computed tomography (MCT) was performed on those patients who presented flattening and/or destruction of mandibular condyles. Demographic data, oral health indices, clinical manifestations, laboratorial exams, and treatment were evaluated. RESULTS: Important radiographic changes consistent with osteonecrosis of the mandible, confirmed by MCT of the TMJ, were observed in 2/26 (8%) JSLE patients versus 0% in the control group (P = 0.22). Mild clinical dysfunction and abnormal TMJ mobility were observed in 67% and 54% of the patients, respectively. Age of onset, disease duration, and current age were similar in JSLE patients with and without severe radiographic changes of TMJ (9.3 versus 10.8 years, P = 0.77; 3.3 versus 2 years, P = 0.63; 12.6 versus 13.5 years, P = 0.74, respectively). Significant differences in gender, socioeconomical status, oral health indices, clinical manifestations, laboratorial exams, and treatment were not observed between both subgroups (P 0.05). Both JSLE patients with osteonecrosis of the mandible had active chronic disease, used corticosteroids for a prolonged period, and had mild TMJ dysfunction. Antiphospholipid antibodies were not observed in those two patients, and neither one had been treated with bisphosphonate. CONCLUSIONS: Osteonecrosis of the mandible with mild TMJ dysfunction was observed in some of the patients, demonstrating the importance of odontological assessment during clinical follow-up.

juvenile systemic lupus erythematosus; children; mandible; temporomandibular joint; osteonecrosis


ARTIGO ORIGINAL

Osteonecrose de mandíbula em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico juvenil observada em exame de imagem

Elisabeth Gonzaga Canova FernandesI; Vanessa Ramos GuissaII; Cynthia SaviolliIII; José Tadeu Tesseroli SiqueiraIV; Marcelo ValenteV; Clovis Artur Almeida da SilvaVI

IMestre em Ciências pela FMUSP. Médica-reumatologista Pediátrica e Médica do Fleury

IIMédica da Complementação Especializada da Unidade de Reumatologia Pediátrica do ICr-HC-FMUSP

IIIMestre em Ciências pela FMUSP. Odontóloga da Divisão de odontologia do HC-FMUSP

IVDoutor em odontologia pela FMUSP. Odontólogo da Divisão de odontologia do HC-FMUSP

VDoutor em Radiologia pela FMUSP. Médico-assistente da Unidade de Radiologia Pediátrica do ICr-HC-FMUSP

VIProfessor Livre-docente do Departamento de Pediatria da FMUSP. Responsável pela Unidade de Reumatologia Pediátrica do ICr-HC-FMUSP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Prof. Dr. Clovis Artur Almeida da Silva Rua Araioses, 152/81 - Vila Madalena São Paulo - SP, CEP - 05442-010 FAX: 55 11 3069-8503 E-mail - clovis.silva@icr.usp.br

RESUMO

OBJETIVO: O objetivo deste estudo foi avaliar alterações radiográficas da articulação temporomandibular (ATM) em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) e controles.

PACIENTE E MÉTODOS: Vinte e seis pacientes com LESJ e 28 controles foram avaliados com radiografia panorâmica da ATM. Tomografia computadorizada multislice (TCM) da ATM foi realizada naqueles que tiveram achatamento e/ou destruição dos côndilos mandibulares. Foram avaliados dados demográficos, índices de saúde bucal, manifestações clínicas, exames laboratoriais e tratamentos.

RESULTADOS: Alterações radiográficas importantes compatíveis com osteonecrose de mandíbula e confirmadas pela TCM da ATM foram observadas em 2/26 (8%) de LESJ versus 0% do grupo controle (P = 0,22). Disfunção clínica leve e mobilidade alterada de ATM foram observadas em 67% e 54%, respectivamente. A idade de início, duração da doença e idade atual foram semelhantes nos pacientes com LESJ com e sem alterações radiográficas graves da ATM (9,3 versus 10,8 anos, P = 0,77; 3,3 versus 2 anos, P = 0,63; 12,6 versus 13,5 anos, P = 0,74; respectivamente). Assim como não foram evidenciadas diferenças estatísticas em ambos os grupos com relação a sexo, classe socioeconômica, índices de saúde bucal, manifestações clínicas, exames laboratoriais e tratamentos (P > 0,05). Esses dois pacientes com LESJ e osteonecrose de mandíbula tiveram curso crônico ativo da doença, utilizaram corticosteroides por um longo período e apresentaram disfunção clínica leve da ATM. Nenhum deles teve anticorpos antifosfolipídeos e não foram tratados previamente com bisfosfonatos.

CONCLUSÕES: Osteonecrose de mandíbula com leve disfunção clínica da ATM foi observada em alguns pacientes, demonstrando a importância da avaliação odontológica durante o acompanhamento clínico.

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico juvenil, crianças, mandíbula, articulação temporomandibular e osteonecrose.

INTRODUÇÃO

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) juvenil (LESJ) é uma doença autoimune, com envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas com várias formas de apresentação, podendo acometer o sistema mastigatório e a mucosa oral.1,2

O comprometimento orofacial no LESJ tem sido raramente estudado. Em estudo recente, avaliamos 48 pacientes com LESJ versus 48 controles pareados por idade e sexo e identificamos maiores índices de placa bacteriana e sangramento gengival em pacientes com lúpus.3 O envolvimento orofacial foi também previamente estudado em pacientes com artrite idiopática juvenil (AIJ). Um estudo realizado no nosso Serviço demonstrou precária higiene oral, maior frequência de cáries dentárias e envolvimento da articulação temporomandibular (ATM) em pacientes com AIJ com relação aos controles.4

Avaliação radiográfica e osteonecrose da ATM em pacientes com LES de adultos e LESJ têm sido raramente descritas. Szántó et al., 1986, relataram um caso de LES em um adulto que apresentou osteonecrose de côndilo mandibular.5 Por sua vez, a osteonecrose tem sido evidenciada em LES e LESJ, particularmente associada a atividade da doença, anticorpos antifosfolipídios e corticoterapia.6,7

A ausência de estudos avaliando sistematicamente as alterações radiográficas e de osteonecrose da ATM em crianças e adolescentes com LESJ estimulou a realização desta pesquisa.

Assim sendo, os objetivos deste estudo foram avaliar as alterações radiográficas em pacientes com LESJ e correlacioná-las com dados demográficos, índices de saúde bucal, manifestações clínicas, atividade, dano cumulativo e tratamento.

PACIENTES E MÉTODOS

Pacientes com LESJ e controles saudáveis

Vinte e seis pacientes consecutivos com LESJ, cujo diagnóstico foi realizado de acordo aos critérios de classificação diagnóstica do American College of Rheumatology (ACR),8 foram avaliados na Unidade de Reumatologia Pediátrica do Instituto da Criança (ICr) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). O grupo controle foi composto por 28 crianças e adolescentes saudáveis e pareados por idade e sexo, em tratamento odontológico de rotina na Divisão de Odontologia do HC-FMUSP. Nenhum dos pacientes com LESJ e das crianças e adolescentes do grupo controle apresentava comorbidades locais ou outras doenças sistêmicas com repercussões dentárias ou articulares. A admissão no estudo foi realizada após a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pacientes e seus responsáveis. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HC-FMUSP (CAPPesq 014/03).

Avaliações radiológica e orofacial

A avaliação radiográfica foi determinada através da radiografia ortopantomográfica (panorâmica) que avaliou esqueleto facial, dentes, periodonto e ATM. As alterações dos côndilos mandibulares foram classificadas em quatro graus: grau 0 (ausência de anormalidades radiográficas), grau 1 (discretas irregularidade na borda condilar), grau 2 (erosões e/ou aplainamento do côndilo) e grau 3 (destruição total do côndilo).9 Esta avaliação foi feita por três examinadores distintos e especialistas em ATM e/ou radiologista.

Nos pacientes que apresentaram radiografia panorâmica de face compatível com osteonecrose (graus 2 ou 3) foi realizada tomografia computadoriza de corte finos (TC) de ATM. A TC foi realizada com o aparelho Light Speed-Multislice - General Eletric, Wiscosin - USA.

Avaliações dentária e gengival foram determinadas pelos índices de placa (IP) e de sangramento gengival (IS).10 O IP foi utilizado para avaliar a condição de higiene oral. Este índice foi calculado pelo número de superfícies dentárias coradas por pastilhas evidenciadoras de placa bacteriana multiplicado por 100 e dividido pelo número total de superfícies. Inflamação gengival (gengivite) foi avaliada pelo IS, determinado pelo número de superfícies sangrantes após uso de sonda periodontal, multiplicado por 100 e dividido pelo número total de superfícies. Além disso, foi realizada uma avaliação dentária do número de dentes cariados, perdidos e obturados (índice CPO-D).11

Avaliação clínica da ATM foi realizada pelo índice de Helkimo:12 índice de disfunção mandibular clínica (IDC) e índice de mobilidade mandibular (IMM). O IDC avalia cinco sinais clínicos de disfunção [dor à palpação dos músculos mastigatórios, dor à palpação da ATM, dor aos movimentos mandibulares, comprometimento funcional da ATM (desvio ou ruído articular) e IMM alterado], com escores em cada um destes variando de 0 a 5 conforme a gravidade, sendo o resultado final o somatório destes escores (IDC máximo de 25). Um IDC com escore 0 denota ausência de disfunção clínica da ATM, 1-4 disfunção leve, 5-9 moderada e 10-25 disfunção grave. O IMM avalia a amplitude de quatro movimentos mandibulares [abertura da boca interincisal máxima (normal > 40 mm), lateralidade direita e esquerda (normal > 7mm) e protrusão (normal > 7 mm)], com escores em cada um destes variando de 0 a 5, dependendo da gravidade, sendo o resultado final o somatório dos escores (IMM máximo de 20). Um IMM de 0 denota mobilidade mandibular normal, 1-4 mobilidade levemente comprometida e de 5-20 mobilidade gravemente comprometida.

Dados demográficos, manifestações clínicas, exames laboratoriais, atividade do LESJ, dano cumulativo da doença e tratamento

Os dados sociodemográficos avaliados foram idade atual, tempo de duração da doença e sexo. As manifestações clínicas foram determinadas no momento da avaliação orofacial e incluiu: avaliação do comprometimento cutâneo (eritema malar, úlcera oral e/ou vasculite), artrite, nefrite (hematúria, leucocitúria, cilindrúria, proteinúria, hipertensão arterial), comprometimento neuropsiquiátrico (de acordo com os critérios das 19 síndromes neuropsiquiátricas relacionadas com o LES propostos pelo ACR em 1999),13 serosite (pleurite e/ou pericardite) e comprometimento hematológico (anemia hemolítica, leucopenia e/ou plaquetopenia).

Os exames laboratoriais realizados foram: níveis séricos do complemento (frações C3 e C4) e anticorpo anti-DNA nativo ou dupla hélice (avaliado pela imunofluorescência indireta, usando como substrato a Crithidia luciliae). Em pelo menos duas mensurações, os anticorpos antifosfolipídios foram determinados: anticorpo anticardiolipina [utilizando-se a técnica de Enzime-linked immunosorbent assay (ELISA) com kit comercial Hemagen anticardiolipina®)] e anticorpo anticoagulante lúpico (detectado através de três métodos: tempo de tromboplastina parcial ativada, teste do veneno de víbora de Russell diluído e teste do tempo de coagulação de caulim).14

A atividade do LESJ, o dano cumulativo, o curso da doença e o tratamento medicamentoso recebido (corticosteroide, antimalárico, ciclofosfamida intravenosa, metotrexato e azatioprina) foram determinados na mesma ocasião das avaliações radiológica e orofacial.

Para a quantificação da atividade da doença foi utilizado o escore denominado Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index (SLEDAI).15 Valor do SLEDAI maior ou igual a quatro foi considerado, arbitrariamente, como doença ativa. O dano cumulativo do LESJ foi avaliado segundo o Systemic Lupus International Collaborating Clinics/ACR Damage Index (SLICC/ACR-DI).16 Valor do SLICC/ACR-DI maior ou igual a um, após seis meses de duração da doença, foi considerado como algum dano cumulativo do LESJ.

O curso da doença foi dividido em três tipos: remissivo (caracterizado por doença sem atividade por pelo menos um ano), remissivo-recidivante [caracterizado por períodos de atividade da doença intercalados por períodos de doença inativa (durante um ano em duas ou mais consultas)] e crônico ativo (no qual a doença persiste ativa por pelo menos um ano).17

Análise estatística

Os resultados foram apresentados em mediana (variação) para as variáveis contínuas e número (%) para as variáveis categóricas. A presença de alterações radiográficas importantes na ATM (graus 2 ou 3) foram comparadas pelo teste exato de Fisher ou teste de Mann-Whitney entre pacientes com LESJ e controles. Assim como entre pacientes com LESJ que tiveram alterações radiográficas importantes na ATM (graus 2 ou 3) versus pacientes sem alterações ou com alterações leves (graus 0 ou 1). Valor de P < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.

RESULTADOS

Alterações radiográficas leves da ATM (graus 0 ou 1) foram evidenciadas em 24/26 pacientes com LESJ e todos os 28 controles (P = 0,22). Nenhum dos controles teve alterações radiográficas importantes da ATM (graus 2 ou 3). Entretanto, dois dos 26 (8%) pacientes com LESJ apresentaram alterações radiográficas nos côndilos mandibulares compatíveis com grau 3. Nestes dois pacientes, foram realizadas TC de ATM evidenciando osteonecrose de ATM.

As comparações entre pacientes com LESJ que apresentaram alterações radiográficas importantes na ATM (Grupo A) versus com alterações leves ou sem alterações (Grupo B) estão nas Tabelas 1 e 2. Não houve diferença estatística entre dados demográficos, índices de saúde bucal, manifestações clínicas, exames laboratoriais nos dois grupos estudados (P > 0,05, Tabela 1). Além disso, atividade da doença, dano cumulativo, curso crônico ativo e tratamento foram similares nos dois grupos (P > 0,05, Tabela 2)

Os dois pacientes com LESJ que tiveram osteonecrose de ATM foram também descritos:

Caso 1

Paciente do sexo feminino, natural e procedente São Paulo. Em 2001, aos 12 anos e seis meses de idade, havia apresentado oligoartrite aguda de tornozelos, eritema malar e úlcera de mucosa oral. Quinze dias após o quadro inicial, apresentou dispneia e ortopneia, evoluindo para insuficiência cardíaca restritiva devido a derrame pericárdico. Os exames laboratoriais mostraram hemoglobina 11.2 g/dL, hematócrito 35%, leucócitos 9.700/mm³ (87% segmentados, 10% linfócitos e 4% eosinófilos), plaquetas 170.000/mm3, anticorpos antinucleares (ANA) 1/160, anticorpos anti-DNA de hélice dupla positivos, C3 0,91 g/L (0,5-1,8 g/L) e C4 0,1 g/ L (0,1 - 0,4 g/L). Ao exame físico apresentava alopecia e vasculite purpúrica em membros inferiores. O diagnóstico de LESJ foi estabelecido de acordo com os critérios do ACR8 e foi introduzido prednisona 25 mg/dia e sulfato de hidroxicloroquina 200 mg/dia. Com 14 anos foram feitas avaliações radiográfica e orofacial que demonstraram elevações dos índices orofaciais (IP = 23, IS = 41, CPOD = 2 e índices de Helkimo com IDC = 1 e IMM = 1), sem dor à palpação e mobilização da ATM. A radiografia ortopantomográfica de face evidenciou grau 3. A TC de ATM mostrou assimetria bilateral, mais proeminente à esquerda, com aplainamento dos côndilos, redução do espaço articular, alguns cistos subcondrais discretos, remodelação dos côndilos e reações hipertróficas marginais, compatíveis com osteonecrose. Neste momento, os exames complementares demonstraram: hemoglobina 12,4 g/dL, hematócrito 37%, leucócitos 4.900/mm³ (68% segmentados e 24% linfócitos), 125.000 plaquetas/mm3, VHS 15 mm na 1ª hora, PCR negativo, ANA 1/320, anticorpos anti-DNA de hélice dupla negativo, C3 0.99 g/L, C4 0,09 g/L e anticorpos antifosfolipídio negativos. Recebeu prednisona por 20 meses consecutivos. No momento da avaliação, estava em uso de prednisona (10 mg/dia) e sulfato de hidroxicloroquina (250 mg/dia). O curso da doença foi crônico ativo, o SLEDAI foi 2 e o SLICC/ACR-DI foi 0.

Caso 2

Paciente do sexo masculino, natural e procedente de Pernambuco. Em 1998, aos quatro anos e quatro meses de idade, apresentou anemia hemolítica autoimune e artrite em articulações interfalangianas proximais, joelhos e tarsos, sendo prescrito prednisona 7,5 mg/dia e metotrexato 5 mg/semana em outro Serviço. Apresentava ANA e anti-DNA negativos. Em 2000, aos seis anos de idade, foi encaminhado ao Instituto da Criança por apresentar febre por 15 dias e artrite no tornozelo esquerdo. Neste momento, os exames complementares evidenciaram: hemoglobina 13,2 g/dL, hematócrito 40%, leucócitos 8.100/mm³ (60% segmentados, 34% linfócitos, 2% eosinófilos), plaquetas 265.000/mm3, VHS 33 mm na 1ª hora, ANA 1/320, presença de autoanticorpos anti-DNA de hélice dupla positivos, anti-Ro, anti- RNP e anti-Sm, C3 1 g/L e C4 0,3 g/L e hematúria. O diagnóstico de LESJ foi estabelecido de acordo os critérios do ACR,8 sendo introduzido metotrexato (10 mg/semana) e prednisona (1,0 mg/kg/dia) e associado sulfato de hidroxicloroquina (5 mg/kg/dia). Com 11 anos e três meses de idade foi feita avaliação orofacial (IP = 100, IS = 54, CPOD = 6 e índices de Helkimo: IDC = 1 e IMM = 1). A radiografia ortopantomográfica de face evidenciou grau 3. A TC de ATM mostrou envolvimento bilateral com aplainamento dos côndilos mandibulares, redução do espaço articular, alguns cistos subcondrais discretos, remodelação dos côndilos e reações hipertróficas marginais bilaterais, compatíveis com osteonecrose de ATM bilateral (Figura 1). Os exames complementares evidenciaram: hemoglobina 12,4 g/dL, hematócrito 35,8%, leucócitos 6,000/mm³ (46% segmentados, 40 % linfócitos, 6% eosinófilos), plaquetas 240.000/mm3, VHS 23 mm na 1ª hora, PCR negativo, ANA 1/40, anticorpos anti-DNA de hélice dupla positivo, anticorpos antifosfolipídios negativos, C3 0.95 g/L, C4 0,18 g/L. Recebeu prednisona por 7 anos consecutivos. Neste momento estava em uso de prednisona (5 mg/dia) e sulfato de hidroxicloroquina (180 mg/dia). O curso da doença foi crônico ativo, o SLEDAI foi 2 e o SLICC/ACR-DI foi 1.


DISCUSSÃO

Este é o primeiro estudo que avaliou concomitantemente alterações nos exames de imagem na ATM e parâmetros de saúde bucal em pacientes com LESJ. Esta pesquisa identificou a presença de alterações de ATM em poucos pacientes, como osteonecrose, habitualmente assintomática e com discreta disfunção clínica mandibular.

As doenças reumáticas na faixa etária pediátrica são pouco frequentes e apresentam significativo impacto físico, emocional e social nos pacientes. Apesar de o LESJ ser uma doença crônica com períodos de atividade e remissão, o prognóstico e sobrevida destes pacientes vem melhorando progressivamente nas últimas duas décadas, sendo importante a avaliação do comprometimento orofacial. Este acometimento pode alterar a qualidade de vida das crianças e adolescentes com LESJ. Dor orofacial, disfunção da ATM e infecções orais podem reduzir rendimento escolar, produtividade no trabalho e prejudicar as relações sociais.18

A radiografia panorâmica de mandíbula, apesar de ser um exame de pouca precisão, permite a visualização do esqueleto facial, incluindo a ATM, com boa definição dos côndilos mandibulares. Como vantagens, a radiografia panorâmica apresenta baixo custo, baixa irradiação e fácil execução. Por sua vez, a tomografia computadorizada e particularmente a ressonância nuclear magnética mostram detalhes adicionais indispensáveis na avaliação da ATM e permitem a detecção de alterações musculares, sinoviais, cartilaginosas e ósseas mais precoces nessa articulação. Assim como permite a melhor identificação de osteonecrose.18-20 Neste estudo, a TC foi realizada apenas nos pacientes que apresentaram alterações radiográficas importantes e confirmou o diagnóstico de osteonecrose. Além disso, eles não apresentaram infecções bacterianas associadas, tais como osteomielite e artrite séptica ou outras comorbidades mandibulares previamente, indicando que os achados radiográficos foram compatíveis com necrose avascular da ATM.

Osteonecrose ou necrose avascular óssea é a morte das células ósseas devido à isquemia decorrente da interrupção do suprimento vascular. Pode estar relacionada com lesão vascular direta (necrose pós-traumática), obliteração intraluminal ou obliteração extraluminal da medula óssea.21 Causas não traumáticas são associadas a múltiplos fatores de risco e doenças sistêmicas, como, por exemplo, etilismo, uso crônico de corticosteroides e bisfosfonatos, radioterapia, hemoglobinopatias, coagulopatias e neoplasias.22-24 Dentre as doenças reumáticas, LES do adulto e LESJ com ou sem associação com a síndrome do anticorpo antifosfolipídio podem causar osteonecrose.6,7

Necrose avascular óssea nos pacientes com LES de adultos, particularmente de colo do fêmur, pode estar relacionada com a atividade da doença e ao uso crônico de corticosteróides. Em recente estudo brasileiro, Fialho et al., 2007 evidenciaram que atividade do LES de adultos foi o principal fator de risco independente de necrose asséptica.6

Apesar de não haver diferença estatística entre atividade do LESJ, dano cumulativo e curso da doença nos dois grupos do presente estudo, os dois pacientes que tiveram osteonecrose apresentaram um curso crônico do LESJ e utilizaram tempo prolongado de corticoterapia. Ainda não há estudos sistemáticos de osteonecrose em pacientes pediátricos, entretanto evidenciamos previamente osteonecrose de coxofemoral em 2% da nossa população com LESJ associada à síndrome do anticorpo antifosfolipídio.6

Além disso, a osteonecrose de mandíbula frequentemente resulta em colapso articular, destruição óssea e perda de função com disfunção clínica mandibular variada. Esta manifestação pode estar também relacionada com precária higiene oral, devido ao risco de infecções orais e à extração dentária. Assim como, ela pode estar associada à utilização de bisfosfonatos, tais como alendronato, pamidronato e zoledronato.25 Estes medicamentos não foram utilizados nos dois casos no presente estudo.

Outro aspecto metodológico relevante foi que apesar da pequena casuística de pacientes com osteonecrose versus um número elevado de pacientes sem osteonecrose, os testes estatísticos utilizados neste estudo (teste de Mann-Whitney e Fisher) permitiram comparações de proporções e medianas entre os dois subgrupos com diferentes populações.26

Concluindo, o presente estudo evidenciou que osteonecrose de mandíbula, com leve disfunção clínica da ATM pode ser observada em alguns pacientes com LESJ, embora sem diferença estatística entre os grupos, e reforça a necessidade de uma abordagem multidisciplinar. A avaliação odontológica rotineira deve fazer parte do acompanhamento clínico destes pacientes, mesmo sem alterações radiológicas.

AGRADECIMENTOS

Este estudo teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico -CNPQ (Grant 300248/2008-3 para CAAS). Os autores agradecem ao Dr. Ulysses Dória-Filho, pelo auxílio na análise estatística.

Recebido em 26/05/2009

Aprovado, após revisão, em 24/11/2009

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Unidade de Reumatologia Pediátrica do instituto da Criança (ICr), Disciplina de Reumatologia e Divisão de odontologia do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

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  • Endereço para correspondência:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010

    Histórico

    • Recebido
      26 Maio 2009
    • Aceito
      24 Nov 2009
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