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Transtorno mental comum e interrupção precoce do aleitamento materno exclusivo em mulheres quilombolas: estudo de base populacional

Resumo

Objetivos:

investigar a prevalência do aleitamento materno exclusivo (AME) e se o transtorno mental comum (TMC) e outros preditores promovem sua interrupção precoce (IP- AME4).

Métodos:

estudo transversal envolvendo todas as crianças <24 meses (n=252) residentes em 50% (n=34) das comunidades quilombolas de Alagoas. A IP-AME4 foi definida quando o AME foi ≤ 4 meses. Utilizou-se o Self-Reporting Questionnaire para identificar o TMC. Outros preditores foram obtidos por meio de entrevista. A medida de associação foi a razão de prevalência calculada por regressão de Poisson, seguindo modelo teórico hierárquico. Foram calculadas as prevalências de AME por 4 e 6 meses e sua duração mediana (análise de sobrevivência).

Resultados:

as prevalências de IP-AME4 e do TMC foram 57,6% e 42,9%, respectivamente. Os fatores de risco independentemente associados à IP-AME4 foram: residir em casa de taipa, idade materna ≤18 anos, baixo peso ao nascer e uso de chupeta ou de mamadeira. Não houve associação com TMC. As prevalências do AME por quatro e por seis meses foram 42,4% e 25,4%, nessa ordem, e a duração mediana foi de 106 dias.

Conclusão:

os indicadores de AME estão aquém das metas estabelecidas, justificando a implementação de medidas que atuem sobre os fatores de risco aqui identificados, sendo que o TMC não se configura entre esses.

Palavras-chave:
Aleitamento materno; Epidemiologia; Saúde mental; Transtornos mentais; Grupo com ancestrais do Continente Africano

Abstract

Objectives:

to investigate the prevalence of exclusive maternal breastfeeding (EMBF) and evaluate whether common mental disorder (CMD) and other predictors promote its early interruption (EI-EMBF4).

Methods:

a cross-sectional study involving all children <24 months (n=252) residing in 50% (n=34) of the Quilombola communities in Alagoas. The EI-EMBF4 was established when EMBF was ≤4 months. The Self-Reporting Questionnaire was used to identify the occurrence of CMD. Other predictors were obtained through interviews. The measure of association was the prevalence ratio calculated by the Poisson regression, following a hierarchical theoretical model. The prevalence of EMBF for 4 and 6 months, and its median duration (survival analysis) were calculated.

Results:

the prevalence of EI-EMBF4 and CMD was 57.6% and 42.9%, respectively. The risk factors independently associated with EI-EMBF4 were: living in a mud house, maternal age ≤18 years, low birth weight and the use of a pacifier or baby bottle. There was no association with CMD. The prevalence of EMBF for four and six months was 42.4% and 25.4%, respectively, and the median duration was 106 days.

Conclusion:

EMBF indicators are below the established recommendations, justifying the implementation of measures that prioritize women subjected to risk factors identified here. CMD is not configured among these.

Key words:
Maternal breastfeeding; Epidemiology; Mental health; Mental disorders; African Continental ancestry group

Introdução

Apesar do consenso de que o aleitamento materno exclusivo (AME) durante os seis primeiros meses de vida seja a forma mais saudável de alimentar o lactente, estudos realizados no Brasil demonstram que essa meta raramente tem sido alcançada, apesar dos investimentos por parte de instituições nacionais e internacionais.11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009.,22 WHO (World Health Organization). Indicators for assessing infant and young child feeding practices: conclusions of a consensus meeting held 6-8 November 2007 in Washington DC, USA Washington DC, USA; 2008.

Existem vários fatores que podem contribuir para a interrupção precoce do AME, sendo que muitos deles estão relacionados à mãe, tais como menores níveis de escolaridade e renda familiar, trabalho fora do lar durante o puerpério, primiparidade e menor faixa etária.33 Pereira-Santos M, Santana MS, Oliveira DS, Nepomuceno Filho RA, Lisboa CS, Almeida LM, et al. Prevalence and associated factors for early interruption of exclusive breastfeeding: meta-analysis on Brazilian epidemiological studies. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2017; 17: 59-67.

Variáveis socioeconômicas, culturais e psicoló- gicas estão relacionadas ao tempo em que a mãe permanece amamentando, podendo interferir positiva ou negativamente. Nesse aspecto, o desejo e a determinação da mãe em amamentar constituem-se num fator decisivo para o êxito da amamentação. Diante disso, preocupa o potencial efeito negativo que distúrbios relacionados à saúde mental materna poderiam causar sobre a intenção e a disposição em amamentar. Esses distúrbios integram uma categoria de agravos denominada transtornos mentais comuns (TMC), também conhecidos como transtornos não psicóticos, condição que se caracteriza pela ocorrência de sintomas ansiosos, depressivos e psicossomáticos.44 Jansen K, Mondin TC, Ores LC, Souza LD, Konradt CE, Pinheiro RT, et al. Transtornos mentais comuns e qualidade de vida em jovens: uma amostra populacional de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saúde Pública. 2011; 27 (3): 440-8.,55 Ludermir AB, Melo Filho DA. Condições de vida e estrutura ocupacional associadas a transtornos mentais comuns. Rev Saúde Pública. 2002; 36: 213-21.

A prevalência do TMC é maior em mulheres separadas ou viúvas, que possuem filhos, de cor preta ou parda, com baixa escolaridade, vivendo em condições precárias de moradia, baixa renda e desemprego.66 Araújo TM, Pinho PS, Almeida MM. Prevalência de transtornos mentais comuns em mulheres e sua relação com as características sociodemográficas e o trabalho doméstico. Rev Bras Saude Mater Infant. 2005; 5: 337-48. Esses fatores encontram-se, em sua maioria, presentes nas mulheres pertencentes às comunidades quilombolas, as quais são formadas por descendentes de escravos africanos e se caracterizam por apresentarem grande vulnerabilidade socioeconômica e baixo acesso à infraestrutura de serviços públicos.77 Ferreira HS, Silva WO, Santos EA, Bezerra MK, Vieira da Silva BC, Horta BL. Body composition and hypertension: a comparative study involving women from maroon communities and from the general population of Alagoas State, Brazil. Rev Nutr. 2013; 26 (5): 539-49. Contudo, nenhum estudo anterior investigou se existe associação entre a saúde mental de mulheres quilombolas e a prática da amamentação.

Os objetivos deste estudo foram: a) investigar, em crianças menores de 24 meses da população quilombola de Alagoas, alguns indicadores relativos ao AME (prevalência por 4 e por 6 meses; tempo mediano em AME); b) identificar a prevalência e analisar se oTMC materno se associa à interrupção precoce do AME e; c) identificar quais são os fatores de risco para a interrupção precoce do AME.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, integrante de um projeto denominado “Nutrição e saúde da população materno-infantil das comunidades remanescentes dos quilombos do estado de Alagoas” (Projeto Quilombola), o qual foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (processo n.º 33527214.9.0000.5013). Todas as mães ou responsáveis legais das crianças investigadas foram devidamente informadas a respeito do estudo e, após concordar em participar, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

De acordo com a relação das comunidades quilombolas com certificação oficial (http://www.iteral.al.gov.br/dtpaf/comunidades-quilombolas-de-alagoas/comunidades-quilombolas- de-alagoas), existiam em Alagoas, em 2017, 68 comunidades, nas quais residiam cerca de 6.889 famílias.

Para o planejamento amostral do Projeto Quilombola, considerou-se a família como unidade de análise. Em virtude da diversidade de objetivos propostos nesse estudo, considerou-se uma prevalência de 50% para todos os desfechos de interesse, garantindo o maior tamanho amostral possível e, dessa forma, com suficiente poder estatístico para análise de todas as variáveis conforme os diferentes objetivos. Para um erro amostral de 2,0% e um intervalo com 95% de confiança, seriam necessárias 2635 famílias. Para isso, foi previsto estudar o universo de famílias residentes em 50% das comunidades quilombolas do Estado. Usando a estratégia de amostragem sistemática, foram sorteadas 34 dentre as 68 comunidades existentes, as quais encontravamse distribuídas em 27 dos 102 municípios alagoanos, a maioria situada entre o Agreste e o Sertão de Alagoas. A estimativa era de que 3108 famílias residiam nas comunidades sorteadas.

Para o presente estudo, foram elegíveis todas as crianças menores de 24 meses residentes nessas comunidades, assim como suas respectivas mães. Foram excluídos filhos não biológicos e crianças e/ou mães que à época do nascimento apresentaram condições que impediam a prática da amamentação.

A coleta de dados ocorreu no período de abril de 2017 a janeiro de 2018, tendo sido realizada por entrevistadores (profissionais e alunos de graduação, ambos da área da saúde) devidamente treinados e supervisionados. Através de visitas domiciliares, foram realizadas entrevistas com as mães, seguindo roteiro de perguntas impressas em formulários previamente testados em estudo piloto.

O trabalho de campo em cada comunidade foi precedido de contato com as lideranças locais visando a obtenção de apoio logístico e divulgação da pesquisa, de modo a facilitar a adesão por parte da comunidade.

A variável dependente foi a interrupção precoce do AME (IP-AME4), aqui definida quando ocorrida antes do quarto mês de vida. Para estruturação da variável, era perguntado à mãe “Até que idade <nome da criança> recebeu somente leite do peito, sem tomar água, chá, suco, leite ou qualquer outro tipo de líquido ou alimento?” Para aumentar a fidedignidade da resposta obtida, em pergunta posterior, questionava-se: “Com que idade, além de mamar no peito, <nome da criança> começou a receber também chá, água, suco ou qualquer outro tipo de alimento?”

Quando havia divergência, o entrevistador lia novamente as duas perguntas e as respectivas respostas e indagava-se à mãe se ela havia entendido bem as perguntas, havendo explicação detalhada quando necessário. Em seguida, as perguntas eram novamente formuladas e a resposta convergente era utilizada para caracterizar a IP-AME4. Para o cálculo da prevalência desse indicador, crianças com menos de quatro meses de vida e que ainda estavam em AME (n=16) foram excluídas da análise. Entretanto, as que já haviam abandonado essa prática foram consideradas. Assim, a amostra final para esse recorte da análise foi constituída de 236 crianças.

Em adição a essas perguntas, foi aplicado o formulário de marcadores do consumo alimentar do Ministério da Saúde,88 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Orientações para avaliação de marcadores de consumo alimentar na atenção básica. Brasília, DF; 2015. além do inquérito dietético do tipo recordatório de 24 horas, no qual a mãe relatou o consumo alimentar da criança no dia anterior, sendo este aplicado por uma nutricionista ou uma discente do curso de nutrição. Deste modo, se a mãe referiu que a criança “só mama”, mas no questionário ou recordatório constava o consumo de qualquer alimento que não o leite materno, considerou-se que a criança não estava em AME.

Apesar da recomendação de que o AME se prolongue até o sexto mês de vida, optou-se por estudar um período inferior (4 meses), pois a amostra exposta ao AME por seis meses tornou-se pequena (n=58) e, assim, com baixo poder estatístico para as análises necessárias. Todavia, além da prevalência de AME por quatro meses, essa também foi calculada em relação ao período de seis meses, para permitir comparações futuras. Além do cálculo da prevalência, estimou-se a duração mediana do tempo em AME. É importante esclarecer que, ao contrário de como se procedeu para o cálculo das prevalências de AME por 4 ou por 6 meses (ou, alternativamente, do IP-AME4), no qual as crianças que tinham idades inferiores a esses valores e que ainda estavam mamando foram excluídas dessa análise, essas permaneceram no cálculo da duração mediana do tempo em AME, haja vista que o procedimento estatístico utilizado permite corrigir tal estimativa (análise de sobrevivência).

A variável independente (TMC materno) foi estabelecida a partir da aplicação do instrumento de triagem Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), o qual é composto por vinte perguntas com respostas dicotômicas (sim/não) sobre sintomas emocionais e físicos associados a quadros não-psicóticos. Seu escore corresponde a uma amplitude de 0 a 20, no qual cada resposta “sim”, equivale a 1 ponto. Estudo realizado em Pernambuco identificou que o melhor ponto de corte para identificar os possíveis casos de TMC foi ≥6 pontos. Considerando a maior similaridade com essa população, optou-se por usar esse mesmo critério de classificação no presente estudo.55 Ludermir AB, Melo Filho DA. Condições de vida e estrutura ocupacional associadas a transtornos mentais comuns. Rev Saúde Pública. 2002; 36: 213-21. Adicionalmente, visando-se investigar o efeito da magnitude da pontuação obtida pela mãe quanto ao SRQ sobre o tempo em que o filho permaneceu em AME, esse instrumento teve sua escala dividida por três, de modo a estabelecer três categorias: de 0 a 6, de 7 a 13 e de 14 a 20 pontos (terços inferior, médio e superior).

Além das variáveis dependente e independente, covariáveis foram utilizadas com o objetivo de controlar possíveis efeitos de confusão na relação entre o TMC e o AME, e identificar outras variáveis associadas à IP-AME4. Para isto, utilizou-se um modelo teórico hierarquizado adaptado de Victora et al.,99 Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto M. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol. 1997; 26 (1): 224-7. conforme ilustra a Figura 1. As variáveis que compuseram o modelo foram:

Socioeconômicas e ambientais: Classe econômica de acordo com os critérios estabelecidos pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP),1010 ABEP (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa). Critério de Classificação Econômica Brasil. Alterações na aplicação do Critério Brasil. São Paulo; 2019. que classifica as famílias em ordem decrescente de nível econômico: A, B, C e D+E. Em virtude da ausência de famílias pertencentes ao mais alto estrato, a variável foi analisada de forma dicotômica (B+C; D+E); Família usuária do Programa Bolsa Família (sim; não); Material de construção predominante no domicílio (alvenaria; taipa); Regime de ocupação do domicílio (própria; financiada/cedida/alugada) e; Número de pessoas por domicílio (≤4; >4).

Características maternas: Paridade (primípara; multípara); Faixa etária (≤18 anos; >18 anos); Estado civil (casada/vive com companheiro; solteira/separada/viúva); Escolaridade, em anos de estudo (≤8; >8); Ocupação fora do lar (sim; não);

Cor da pele autodeclarada (negras; brancas), sendo categorizadas como negras as que se declararam como pretas ou pardas (outras situações tais como indígena ou amarela não foram relatadas); TMC positivo (sim; não).

Características do pré-natal, parto e pós-parto: Realização do pré-natal (sim; não); Idade gestacional no início do pré-natal (≤3 meses; >3 meses); Número de consultas ao pré-natal (<6; ≥6); Orientação quanto ao aleitamento materno (AM) durante o prénatal (sim; não); Tipo de parto (vaginal; cesárea/outros) e; Amamentação na primeira hora após o parto (sim; não).

Características da criança: Sexo (masculino; feminino); Cor da pele da criança referida pela mãe (preta/parda; branca/amarela); Idade gestacional ao nascimento (<37; ≥37); Baixo peso ao nascer (<2.500 g); Uso de chupeta (sim; não) e; Uso de mamadeira (sim; não).

Os dados foram digitados em dupla entrada independentes em formulário do Epi-info, versão 3.5.4. Após comparação dos dois arquivos e correção dos erros de digitação, foi constituído o banco de dados para análise estatística usando o software Stata, versão 12.0.

Foram avaliadas 272 crianças e suas respectivas mães. No entanto, aquelas cujas mães não responderam ao formulário do SRQ foram excluídas da análise (n=20; 7,3%), totalizando uma amostra formada por 252 binômios mães/filhos.

Foi realizada a análise descritiva para as variáveis socioeconômicas, ambientais, maternas e da criança. Para comparar as frequências de IP- AME4 conforme o TMC e as covariáveis foi realizada a análise bivariada, usando-se o teste quiquadrado de Pearson. A medida de associação foi à razão de prevalência (RP) e seu respectivo intervalo com 95% de confiança (IC95%), calculados por regressão de Poisson com ajuste robusto da variância, tanto na análise bruta como na ajustada. Nessa, foram introduzidas as variáveis que na análise bruta associaram-se à interrupção precoce do AME a um nível de significância de 20% (p<0,2).

Na análise hierárquica, em cada nível do modelo teórico, as variáveis que apresentaram menor nível de significância (maior valor de p) foram sendo gradativamente excluídas (backward elimination). No modelo final, permaneceram apenas aquelas que alcançaram significância estatística (p<0,05) em seu respectivo nível. As variáveis significantes dos níveis mais distais foram inseridas e mantidas como variáveis de ajuste, respectivamente, nos níveis hierárquicos seguintes, permanecendo no modelo final ainda que tenham perdido significância nas análises posteriores ao seu nível original.

As variáveis que compuseram o modelo hierárquico foram:
  1. No nível distal: variáveis socioeconômicas e ambientais;

  2. No nível intermediário distal: características maternas;

  3. No nível intermediário proximal: características do pré-natal, parto e pós-parto;

  4. No nível proximal: características relacionadas à criança.

Figura 1
Modelo hierárquico das relações entre os fatores de risco para a interrupção precoce do aleitamento materno exclusivo.

Adaptado de Victora et al.99 Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto M. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol. 1997; 26 (1): 224-7.


Para determinar as prevalências de AME por quatro e por seis meses, utilizou-se o conjunto de crianças menores de 24 meses, no entanto, crianças com idades inferiores a seis e quatro meses, respectivamente, cujas mães referiram ainda estar em AME, não foram incluídas nas análises em virtude da impossibilidade de se saber o tempo em que a criança permaneceria sob esse regime alimentar, de modo a atingir as respectivas metas de 4 ou 6 meses em AME. Todavia, as crianças dessas faixas etárias que já haviam cessado o AME entraram no cálculo para definição da variável “interrupção precoce do AME”.

A duração mediana do AME foi calculada por meio de análise de sobrevivência, usando-se as curvas de Kaplan-Meier. Essa análise envolveu o conjunto das crianças da amostra (n=252).

O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para verificar a normalidade da distribuição do tempo em dias para a ocorrência da IP-AME4. Haja vista que não houve adesão dos dados aos pressupostos paramétricos, usou-se o teste de Kruskall- Wallis para comparar as medianas relativas ao tempo para ocorrência do IP-AME4, conforme a classificação das mães nas categorias estabelecidas com base nos terços dos escores do SRQ.

Resultados

Foram investigadas 252 crianças e suas respectivas mães. A maioria das famílias pertencia às classes econômicas D+E (n=243; 96,4%) e eram usuárias do Programa Bolsa Família (n=205; 81,4%). As demais características socioeconômicas e ambientais encontram-se descritas na Tabela 1.

Em relação às variáveis maternas, a maioria tinha mais de 18 anos (n=226; 89,7%), não possuía ocupação fora do lar (n=189; 76,2%) e frequentou a escola por até oito anos (n=130; 51,8%).

Quanto aos dados gestacionais, 248 mães (98,8%) relataram ter realizado pré-natal, a maioria iniciando no primeiro trimestre de gestação (n=188; 77,1%) e participando de mais de seis consultas (n=177; 74,4%), durante as quais recebeu orientação sobre o AM (n=213; 85,5%). Cerca de ¾ (n=169; 75,8%) das crianças foram amamentadas logo na primeira hora após o parto.

As crianças tinham, majoritariamente, a cor da pele preta ou parda (n=195; 77,7%). Apenas 6,7% (n=15) nasceram com baixo peso e 93,3% (n=234) nasceram a termo (idade gestacional ≥37 semanas). O uso de chupeta foi referido por 40,6% (n=102) das mães, enquanto que 67,7% (n=170) utilizavam mamadeira.

A prevalência de crianças menores de 24 meses que receberam AME por, no mínimo, quatro ou seis meses, foi de 42,4% (n=100) e 25,4% (n=58), respectivamente. A prevalência da IP-AME4 foi de 57,6% (n=136). Já a duração mediana dessa variável foi de 106 dias.

A prevalência de TMC foi de 42,9% (n=108) e esta condição não se associou à interrupção precoce do AME (Figura 2). A análise segundo os terços da distribuição dos escores da escala do SRQ também não evidenciou associação. As prevalências de IP- AME4 de acordo com os 1º, 2º e 3º terços foram 57,6%, 57,6% e 57,9%, respectivamente. A mediana do número de dias até que ocorresse a interrupção do AME também não apresentou diferença significante segundo esses terços: 75,0, 90,0 e 89,5 (p=0,51 pelo teste de Kruskal-Wallis).

Na análise bruta, as covariáveis que se associaram à IP-AME4 foram: residir em casa de taipa (RP=1,79; IC95%= 1,60-2,01; p<0,001), faixa etária materna ≤18 anos (RP=1,41; IC95%= 1,10-1,81; p=0,006), ter realizado menos de seis consultas de pré-natal (RP=1,20; IC95%= 0,95-1,52; p=0,117), ser do sexo masculino (RP=1,15; IC95%= 0,93-1,44; p=0,184), ter nascido com menos de 37 semanas (RP=1,39; IC95%= 1,03-1,87; p=0,028), apresentar baixo peso ao nascer (RP=1,73; IC95%= 1,43-2,08; p<0,001) e fazer uso de chupeta (RP=1,41; IC95%= 1,14-1,75; p=0,001) e mamadeira (RP=2,15; IC95%= 1,50-3,09; p<0,001).

Após análise multivariável (Tabela 2), verificouse que as covariáveis independentemente associadas à interrupção precoce do AME foram: residir em casa de taipa (RP=1,56; IC95%= 1,24-1,99; p<0,001), faixa etária materna ≤ 18 anos (RP=1,32; IC95%= 1,03-1,70; p=0,027); baixo peso ao nascer (RP=1,43; IC95%= 1,13-1,81; p=0,002), uso de chupeta (RP=1,29; IC95%= 1,03-1,61; p=0,025) e uso de mamadeira (RP=2,14; IC95%= 1,41-3,25; p<0,001).

Tabela 1
Caracterização da interrupção precoce do aleitamento materno exclusivo – AME (frequência absoluta e percentual, razão de prevalência – RP e IC95%) segundo as variáveis socioeconômicas, ambientais e relacionadas à assistência à gestação e à saúde das mães e das crianças menores de dois anos (n=252) das comunidades quilombolas de Alagoas, Brasil, 2018.
Figura 2
Curvas de sobrevivência, estimadas pelo método de Kaplan-Meier, para o tempo de aleitamento materno exclusivo, segundo a ocorrência de transtorno mental comum (TMC) materno em mães de crianças menores de 24 meses residentes nas comunidades quilombolas de Alagoas. Brasil, 2018.

ns = não significante: não houve diferença significante no tempo em aleitamento materno exclusivo conforme a saúde mental materna, definida pelo Self-Reporting Questionnaire, instrumento de triagem para transtornos mentais comuns.


Tabela 2
Interrupção precoce do aleitamento materno exclusivo (AME) em crianças menores de 24 meses das comunidades quilombolas de Alagoas: razões de prevalências brutas (RPb) e ajustadas (RPa) após análise múltipla segundo modelo conceitual hierárquico.

Discussão

As famílias investigadas distinguem-se de outros seguimentos populacionais em função de sua destacada vulnerabilidade social, haja vista que quase sua totalidade (96,4%) pertence à mais baixa classe econômica, proporção muito superior à observada para a população brasileira (28,3%)1010 ABEP (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa). Critério de Classificação Econômica Brasil. Alterações na aplicação do Critério Brasil. São Paulo; 2019. e, inclusive, para a população de Alagoas (51,2%), mesmo sendo este um dos mais pobres estados da federação.1111 Costa NS, Santos MO, Carvalho CPO, Assunção ML, Ferreira HS. Prevalence and Factors Associated with Food Insecurity in the Context of the Economic Crisis in Brazil. Curr Dev Nutr. 2017; 1 (10): e000869. Compatível com esse contexto, ressalta-se a grande dependência que essas famílias possuem em relação às políticas assistenciais, particularmente do Programa Bolsa Família, um programa federal de transferência de renda que contempla mais de 80% dessa população.

Neste estudo, a prevalência de AME por quatro meses foi de 42,4%, reduzindo-se para 25,4% quando se considerou o período de seis meses. Os benefícios decorrentes do aleitamento materno exclusivo são amplamente reconhecidos pela comunidade científica,1212 Del Ciampo LA, Del Ciampo IRL. Breastfeeding and the Benefits of Lactation for Women's Health. Rev Bras Ginecol Obstet. 2018; 40 (6): 354-9. todavia, apesar da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o tempo ideal em AME e da existência de políticas públicas nacionais voltadas à promoção dessa prática, a prevalência do AME ainda se encontra aquém do tempo recomendado, fato este observado não apenas no Brasil, mas em vários outros países.1313 UNICEF, World Health Organization. Global Breastfeeding Scorecard, 2017: Tracking Progress for Breastfeeding Policies and Programmes. New York; 2017.

Globalmente, dados divulgados pela OMS em 2017,1313 UNICEF, World Health Organization. Global Breastfeeding Scorecard, 2017: Tracking Progress for Breastfeeding Policies and Programmes. New York; 2017. revelam que a prevalência de AME em crianças menores de seis meses é de 40%. De acordo com a II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno (II PPAM) nas capitais brasileiras e Distrito Federal,11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009. realizada em 2008, a prevalência de AME entre os menores de seis meses foi de 41%, valor superior ao encontrado no presente estudo (25,4%). Vale ressaltar que o comportamento desse indicador no referido estudo foi heterogêneo,11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009. com a maior prevalência (45,9%) identificada na Região Norte e a menor na Região Nordeste (37,0%), mas, ainda assim, com valores superiores ao identificado neste estudo.

No âmbito do estado de Alagoas, a prevalência aqui observada foi superior à identificada num inquérito realizado com crianças da região semiárida do Estado,1414 Ferreira HS, Vieira ED, Queiroz MD, Cabral Junior CR. Aleitamento materno por trinta ou mais dias é fator de proteção contra sobrepeso em pré-escolares da região semi- árida de Alagoas. Rev Assoc Med Bras. 2010;56 (1): 74-80. no qual a prevalência de AME por quatro meses foi de 28,6%. Em Maceió, capital de Alagoas, essa prevalência foi de 21,6%, conforme dados da II PPAM.11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009. Este fato pode ser explicado pelas piores condições socioeconômicas e situação de maior vulnerabilidade social na qual as crianças quilombolas estão inseridas, corroborando com outros estudos que apontam maiores prevalências entre as populações submetidas a tal contexto.11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009.,1414 Ferreira HS, Vieira ED, Queiroz MD, Cabral Junior CR. Aleitamento materno por trinta ou mais dias é fator de proteção contra sobrepeso em pré-escolares da região semi- árida de Alagoas. Rev Assoc Med Bras. 2010;56 (1): 74-80.

A prática da amamentação é influenciada por fatores históricos, culturais, socioeconômicos e psicológicos da mãe. Todas essas situações podem impactar diretamente no tempo em que a criança é amamentada.1414 Ferreira HS, Vieira ED, Queiroz MD, Cabral Junior CR. Aleitamento materno por trinta ou mais dias é fator de proteção contra sobrepeso em pré-escolares da região semi- árida de Alagoas. Rev Assoc Med Bras. 2010;56 (1): 74-80.,1515 Rocha GP, Oliveira MC, Ávila LB, Longo GZ, Cotta RM, Araújo RM. Condicionantes da amamentação exclusiva na perspectiva materna. Cad Saúde Pública. 2018; 34 (6): e00045217. A duração mediana do AME nas crianças quilombolas desse estudo foi de 106 dias. Essa mediana é maior do que a encontrada (54,1 dias) no conjunto das capitais brasileiras.11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009.

O declínio que ocorre na prevalência de AME entre o quarto e o sexto mês (de 42,4% para 25,4%) pode ser influenciado pela alta frequência do uso de mamadeira (67,7%) na população quilombola, situação que se associa à introdução precoce de outros alimentos, sobretudo outros tipos de leite e mingaus. Essa interrupção precoce do AME associa-se à oferta de outros alimentos, o que, nessa fase da vida, pode tornar a criança mais suscetível a infecções e ao risco de comprometimento de seu crescimento e desenvolvimento.1616 Margotti E, Mattiello R. Risk factors for early weaning. Rev RENE. 2016; 17 (4): 537-44. Vieira et al.1717 Vieira FS, Costa ES, Sousa GC, Oliveira TMP, Neiva MJLM. Influência do parto sobre o desmame no puerpério. Rev Pesq Cuid Fundam. 2019; 11: 425-31.,1818 Vieira SA, Magalhães TCA, Ribeiro AQ, Priore SE, Franceschini SCC, Sant’Ana LFR. Fatores associados às velocidades de ganho de peso e de comprimento nos primeiros seis meses de vida. Cad Saúde Coletiva. 2015; 23 (3): 309-15. verificaram que a não exposição ao AME nos primeiros quatro a seis meses de vida associa-se com menor velocidade de ganho de peso e de comprimento. Nessa perspectiva, ressalta-se a importância de ações para combater as principais causas de interrupção precoce do AME e os consequentes prejuízos à saúde infantil. Identificar os fatores de risco relacionados a essa situação pode auxiliar no direcionamento das ações desenvolvidas nos serviços de saúde visando a promoção, proteção e apoio ao AME.

Conforme já referido, os fatores que se associaram de forma independente à interrupção precoce do AME neste estudo foram: residir em casa de taipa, idade materna ≤18 anos, baixo peso ao nascer, uso de mamadeira e uso de chupeta.

A quase totalidade das famílias quilombolas deste estudo pertence ao menor estrato econômico (D+E) e nenhuma família obteve pontuação compatível para se enquadrar na classe A. Ramos et al.1919 Ramos CV, Almeida JA, Alberto NS, Teles JB, Saldiva SR. Diagnóstico da situação do aleitamento materno no Estado do Piauí, Brasil. Cad Saúde Pública. 2008; 24 (8): 1753-62. verificaram que mães que viviam sob condições socioeconômicas desfavoráveis tendiam a manter a amamentação dos seus filhos por um maior período de tempo. Neste estudo, essa associação não foi confirmada, provavelmente devido à alta homogeneidade das famílias quanto a essa variável. Contudo, foi constatada associação entre o desfecho e o fato de a criança residir em casa de taipa. Assim, considerando diferenciais específicos dentro da própria comunidade investigada, a maior vulnerabilidade socioeconômica foi fator de risco para a IP- AME4. Esse achado corrobora com outros estudos2020 Santos PV, Martins MC, Tapety FI, Paiva AA, Fonseca FM, Brito AK. Desmame precoce em crianças atendidas na Estratégia Saúde da Família. Rev Eletr Enf. 2018; 20.,2121 Faleiros FTV, Trezza EMC, Carandina L. Aleitamento materno: fatores de influência na sua decisão e duração. Rev Nutr. 2006; 19 (5): 623-30. que relataram maiores frequências de interrupção precoce do AME entre os indivíduos mais pobres, atribuindo-se esse fato ao baixo nível de escolaridade.

Ser mãe jovem também se associou à interrupção precoce do AME. Os filhos das mulheres com idades igual ou inferior a 18 anos apresentaram prevalências 32% superiores àqueles de mães com idade superior. Isso parece estar associado ao fato de que, geralmente por ser o primeiro filho, a mãe apresentaria maior dificuldade para amamentar em virtude da insegurança gerada pela inexperiência, falta de informação e pouco apoio por parte da família e/ou do companheiro.2222 Maranhão TA, Oliveira Gomes KR, Nunes LB, Moura LNB. Fatores associados ao aleitamento materno exclusivo entre mães adolescentes. Cad Saúde Coletiva. 2015; 23 (2): 132-9.

Em relação às características da criança, os fatores que se associaram à interrupção precoce do AME foram o baixo peso ao nascer, o uso de chupeta e o uso de mamadeira.

O uso de chupeta entre as crianças quilombolas aqui investigadas foi referido por 40,6% das mães. Na II PPAM11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009. foi verificado que o uso de chupeta pelas crianças menores de doze meses foi de 42,6%, tendo sido esse valor ligeiramente superior (44,8%) em Maceió. O uso de chupeta tem sido associado às dificuldades enfrentadas pelas mães para lidar com o choro dos filhos, o que as fazem pensar que seu leite seja fraco, insuficiente e incapaz de satisfazer as necessidades da criança. Esse sentimento é, muitas vezes, a justificativa para oferecer outros tipos de leite e/ou outros alimentos.2323 Araújo CM, Silva GA, Coutinho SB. A utilização da chupeta e o desenvolvimento sensório motor oral. Revista CEFAC. 2009; 11 (2): 261-7.

A introdução da mamadeira, que para ser usada requer menor esforço de sucção por parte da criança, prejudica o fortalecimento de sua musculatura oral e a condiciona para uma sucção incorreta, provocando a “confusão de bico”, o que leva o lactente a rejeitar o peito materno.2424 Rigotti RR, Oliveira MI, Boccolini CS. Associação entre o uso de mamadeira e de chupeta e a ausência de amamentação no segundo semestre de vida. Ciênc Saúde Coletiva. 2015; 20: 1235-44. Neste trabalho, o uso de mamadeira foi relatado por 67,7% das mães e a prevalência da interrupção do AME antes do sexto mês de vida foi de 74,6%. Na II PPAM observou-se que o uso de mamadeira foi de 58,4% no conjunto das capitais brasileiras, sendo 60,0% na região Nordeste e 61,0% em Maceió.

Um estudo de coorte realizado em São Luís do Maranhão2525 Batista CL, Ribeiro VS, Desterro SB, Rodrigues VP. Association between pacifier use and bottle‐feeding and unfavorable behaviors during breastfeeding. J Pediatr. 2018; 94 (6): 596-601. sugeriu que os bebês que fazem uso de chupeta e/ou mamadeira apresentam maior frequência de condições (sucção incorreta; confusão de bico) que dificultam a amamentação quando comparados aos que não fizeram uso desses recursos.

Neste estudo, a prevalência do TMC entre as mães foi de 42,9%, valor semelhante ao encontrado na zona urbana (43,8%) da região semiárida de Alagoas.2626 Paffer AT, Ferreira HS, Cabral Júnior CR, Miranda CT. Prevalence of common mental disorders in mothers in the semiarid region of Alagoas and its relationship with nutritional status. São Paulo Med J. 2012; 130 (2): 84-91. As pessoas que apresentam TMC geralmente referem fadiga, esquecimento, insônia, irritabilidade, dificuldade de concentração, dores de cabeça, além de queixas psicossomáticas. A sua ocorrência é maior em mulheres que não convivem com um companheiro, que têm filhos, baixa renda, cor da pele preta ou parda, baixa escolaridade, vivem em condições precárias de moradia e estão desempregadas. A maioria dessas condições se encontram particularmente presentes em mulheres quilombolas.44 Jansen K, Mondin TC, Ores LC, Souza LD, Konradt CE, Pinheiro RT, et al. Transtornos mentais comuns e qualidade de vida em jovens: uma amostra populacional de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saúde Pública. 2011; 27 (3): 440-8.

Um estudo qualitativo realizado com mulheres afro-americanas no ano de 2013,2727 Johnson AM, Kirk R, Rooks AJ, Muzik M. Enhancing breastfeeding through healthcare support: Results from a focus group study of African American mothers. Matern Child Health J. 2016; 20 (1): 92-102. revelou a existência de frustrações pessoais que interferiam na capacidade de amamentar, influenciando de forma negativa nessa prática devido ao estresse em gerenciar as responsabilidades atribuídas à mulher, aliada à falta de apoio no período pós-parto.

A depressão é uma das alterações psíquicas mais comuns em nível mundial, acometendo de 10 a 15% de todas as mulheres.2828 Brecailo MK, Saldan PC. Relação entre depressão materna e os cuidados em saúde à criança: revisão sistemática. UNOPAR Ciênc Biol Saúde. 2013; 15 (Esp): 423-9. Alguns estudos indicam a existência de associação entre os problemas relacionados a saúde mental materna e a interrupção precoce do AME.2727 Johnson AM, Kirk R, Rooks AJ, Muzik M. Enhancing breastfeeding through healthcare support: Results from a focus group study of African American mothers. Matern Child Health J. 2016; 20 (1): 92-102.,2828 Brecailo MK, Saldan PC. Relação entre depressão materna e os cuidados em saúde à criança: revisão sistemática. UNOPAR Ciênc Biol Saúde. 2013; 15 (Esp): 423-9. Contudo, nesta população quilombola essa associação não foi encontrada.

É importante destacar que os estudos que verificaram a existência dessa relação foram realizados adotando critérios específicos para diagnosticar problemas de saúde mental também específicos. O SRQ-20, aqui usado para classificar as mulheres segundo sua saúde mental, é um instrumento de triagem e não de diagnóstico, o qual aborda diferentes dimensões dos TMC, não podendo, portanto, ser relacionado a um desfecho singular. Logo, isso se constituiu em uma limitação deste estudo, de modo que a hipótese da associação ora investigada não pode ser descartada. Sugere-se a realização de novos estudos em comunidades quilombolas, porém empregando indicadores de saúde mental mais acurados, pois, apesar da ausência de associação com o AME, em virtude de sua magnitude, a prevalência de TMC ora divulgada (42,9%) merece destacada consideração.

Conforme uma metanálise2929 Steel Z, Marnane C, Iranpour C, Chey T, Jackson JW, Patel V, et al. The global prevalence of common mental disorders: a systematic review and meta-analysis 1980-2013. Int J Epidemiol. 2014; 43 (2): 476-93. de 174 publicações de 63 países, 19,7% das mulheres apresentavam TMC. No Brasil, um estudo de base populacional com 848 mulheres da cidade de Campinas verificou que esse valor era de 18,7%.3030 Senicato C, Azevedo RC, Barros MB. Transtorno mental comum em mulheres adultas: identificando os segmentos mais vulneráveis. Ciênc Saúde Coletiva. 2018; 23: 2543- 54. Esses resultados nos permitem afirmar que a prevalência de TMC entre as mulheres quilombolas é bastante elevada e, considerando os prejuízos que essa situação impõe à qualidade de vida dessas mulheres,2929 Steel Z, Marnane C, Iranpour C, Chey T, Jackson JW, Patel V, et al. The global prevalence of common mental disorders: a systematic review and meta-analysis 1980-2013. Int J Epidemiol. 2014; 43 (2): 476-93.,3030 Senicato C, Azevedo RC, Barros MB. Transtorno mental comum em mulheres adultas: identificando os segmentos mais vulneráveis. Ciênc Saúde Coletiva. 2018; 23: 2543- 54. trata-se de um relevante problema de saúde pública e que requer atenção especial por parte do poder público e dos profissionais de saúde.

Além de evidenciar a relevância epidemiológica dos TMC, este trabalho tem como mérito sua abordagem analítica robusta e plano amostral consistente, apresentando dados inéditos sobre a prática do aleitamento materno em uma população historicamente negligenciada e submetida a discriminação institucional, proporcionando maior visibilidade à problemática dos povos quilombolas e ilustrando a necessidade de maior atenção e investimentos direcionados à atenção à saúde e qualidade de vida dessa população.

É importante ressaltar que este trabalho apresenta outras limitações, além da baixa acurácia do instrumento utilizado para caracterizar a saúde mental materna, conforme já referido. Entre estas limitações, consta o caráter retrospectivo pelo qual a informação sobre o aleitamento materno fora obtida, o que torna o estudo sujeito a viés de memória. Além disso, pode não haver relação temporal entre o AME e a presença de sintomas de TMC, haja vista que esta condição fora obtida em relação ao momento da entrevista, refletindo uma situação atual. Porém, a consistência dos achados constatada a partir das comparações com outras investigações fazem crer que tais vieses não foram suficientes para alterar os resultados de modo a comprometer as conclusões obtidas. A respeito dessas comparações, é importante ressaltar a necessidade de prudência na interpretação de diferenciais relativos ao tempo mediano em AME aqui obtidos com aqueles encontrados na II PPAM,11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. II Pesquisa de prevalência de aleitamento materno nas capitais brasileiras e Distrito Federal. Brasília, DF; 2009. principal estudo nacional sobre aleitamento materno, pois foram utilizadas metodologias distintas, embora ambas adequadas ao referido propósito.

Diante dos resultados obtidos foi possível concluir que:
  1. A prevalência de interrupção precoce do AME foi elevada, de modo que o tempo em que a criança se manteve sob essa condição ficou muito aquém daquele preconizado pela Organização Mundial da Saúde;

  2. A prevalência de TMC materno foi elevada, mas não interferiu no tempo de AME. Todavia, não é possível afirmar se isso é uma característica da população quilombola ou se decorreu da baixa especificidade do instrumento usado para identificar TMC, razão pela qual se recomenda a reprodução do estudo utilizando indicadores de maior acurácia no diagnóstico de problemas específicos de saúde mental;

  3. Os fatores de risco independentemente associados à interrupção precoce do AME foram: residir em casa de taipa, mãe adolescente, baixo peso ao nascer e o uso regular de chupeta e mamadeira.

Os resultados desse estudo devem servir como subsídios para o planejamento e implementação de ações de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, bem como medidas de atenção à saúde mental, tendo como foco as comunidades quilombolas brasileiras, sobretudo, aquelas situadas no estado de Alagoas.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Alagoas (FAPEAL) pelos recursos financeiros concedidos para a realização da pesquisa. Aos alunos e estagiários do Laboratório de Nutrição Básica e Aplicada da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Alagoas, pela coleta e digitação dos dados. Aos agentes de saúde e aos líderes comunitários pelo apoio durante o trabalho de campo e, em especial, a população estudada pela receptividade, paciência e tempo dispendido quando de nossas visitas aos seus domicílios para realização das entrevistas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    8 Jul 2020
  • Aceito
    18 Fev 2021
  • Preprint postado em
    14 Dez 2020
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