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O clima, a paz e a saúde

Há uns 60 anos, demarcando um período de tempo muito breve em termos históricos, atribuía-se ao clima uma série considerável de efeitos adversos sobre a saúde humana e dos animais domésticos ou silvestres que convivem nos peridomicílios rurais ou urbanos, constituindo nossos ecossistemas de vida. A temperatura, os regimes de chuvas, as montanhas, florestas, rios, lagos e oceanos, enfim, a geografia física tinha um papel preponderante na distribuição das doenças. Neste sentido, convém referenciar o trabalho pioneiro de Hipócrates (De Águas, Rios e Lugares), escrito há uns 400 anos a.c., estabelecendo os fundamentos ambientais do processo saúde/doença como princípios básicos da própria Medicina.11. Hipócrates de Quíos. Águas, Ares e Lugares. In: Buck C, Llopis A, Nájera E, Terris M. (orgs). El desafio de la epidemiologia- problemas y lecturas seleccionadas. Publicação cientifica nº 505.Washington: OPAS; 1988. p. 18-9. Estas visões se prolongaram por gerações sucessivas e alcançaram seu maior prestígio no século passado. É ilustrativa desse paradigma a consolidação do Trópico de Capricórnio, no hemisfério Sul, e o de Câncer, no hemisfério Norte. Era a chamada "Zona Tórrida", uma denominação que em si já era preconceituosa.22. Pessoa SB. Ensaios Médicos Sociais. São Paulo: Hucitec; 1978.

Na realidade, mais de que as características físicas, o que explicava a geografia das doenças era a geografia da pobreza, a condição de subdesenvolvimento das populações que habitavam os trópicos, subjugadas durante séculos por povos não tropicais que formatavam os impérios políticos das potências colonizadoras - a Inglaterra, a França, a Espanha, Portugal e o próprio Japão. Em outras palavras: a hegemonia epidemiológica das doenças tropicais eram a decorrência imediata da hegemonia econômica, política e militar de povos não tropicais que impuseram seus interesses, sua cultura e seu modus operandi no vasto território de continentes e países equatoriais.22. Pessoa SB. Ensaios Médicos Sociais. São Paulo: Hucitec; 1978.,33. Castro J. Geografia da Fome: o dilema brasileiro, pão ou aço. Rio de Janeiro: Antares; 1984. Como os males da saúde eram geográficos, a solução seria impor aos povos colonizados, sob a custódia das milícias metropolitanas, os avanços da ciência e da tecnologia que pudessem superar os desafios do ambiente físico e biótico, além dos entraves de culturas autóctones caracterizadas pela apatia, o primitivismo, a crença em divindades e valores próprios do subdesenvolvimento.

Dentro de um século (o Século XX) praticamente desapareceu o colonialismo político, substituído pelo colonialismo econômico, no novo cenário dos mercados globalizados. O capitalismo triunfante, na base de estratégias predatórias de populações inteiras e seus habitats, espalhou seus interesses e métodos de exploração da natureza, alterando o facies geográficos por todo o planeta Neste novo cenário moldado pela ação do homem, a ciência e a tecnologia ocidental ganhariam o desafio climático do subdesenvolvimento e as mazelas das culturas tribais. Então, o crescimento econômico, sem as amarras do meio geográfico e as obstruções dos regionalismos e localismo das subculturas nativas, geraria a civilização dos mercados, como um novo modelo de desenvolvimento da humanidade.44. Braga RB. Elementos para a compreensão da crise sócio ambiental. As mudanças Climáticas e a Saúde Humana. Elisée-Rev Geografia UEG. 2013; 2 (2): 142-53.

A falácia desta vitória total contra a natureza hostil, representada pelo clima tropical e seus agentes: o calor, os rios, as florestas, a fauna aquática e terrestre e, por extensão, os conflitos próprios do atraso econômico e social, está hoje explicitada na imprensa leiga, nos estudos de ciência política e nas páginas das revistas técnicas e científicas de nossos dias.55. Welzer H. Guerras Climáticas. Por que mataremos e seremos mortos no Século XXI. São Paulo: Geração Editorial; 2010. Como se fosse uma emulação da lei física de ação e reação, descobre-se agora que a tecnologia invasiva do meio ambiente, incluindo o clima, não apenas dos espaços equatoriais mas de todo o globo terrestre, representa a ameaça mais efetiva e desafiadora dos tempos atuais e suas projeções para o futuro.66. IPCC (International Panel for Climate Changes). Chapter 1. Point of departure. Final Drafts, 1-35; 2013. É esta a conclusão unânime do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC da sigla inglesa), órgão das Nações Unidas, em seu quinto relatório.77. IPCC (International Painel for Climate Changes). Mudanças Climáticas 2014: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade (Grupo de trabalho II). [acesso em 14 abr 2014]. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg2/
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A teoria de que o processo atual de aquecimento global seria um evento cósmico, como os períodos de glaciação alternados por ondas de calor no passado da Terra não se sustenta como hipótese e, menos ainda, como evidência empírica. Consolidando dados de doze mil estudos científicos, o relatório recentemente divulgado em Yokohama, no Japão, é consensual no sentido de concluir que as atuais mudanças climáticas decorrem da ação humana, na onda de um progresso avassalador que, sem respeitar limites, queima combustíveis fósseis ou renováveis, devasta florestas, compromete a biodiversidade, destrói solos, assoreia rios e lagos, provoca o degelo das calotas polares e das montanhas nevadas, altera a temperatura dos oceanos, modifica a direção e a intensidade dos ventos, polui os ares e os mares, enfim, desorganiza a biosfera, comprometendo a vida de plantas e animais em toda a escala botânica e zoológica.

No painel de previsões do 5º informe do IPCC figuram a crescente escassez de alimentos e o consequente aumento de seus custos, riscos de conflitos sociais e armados, secas, enchentes e migrações em massa. E, contra todas as expectativas e desejos das propostas e compromissos de desenvolvimento humano, estima-se um aumento das desigualdades entre ricos e pobres, saudáveis e doentes, jovens e velhos, homens e mulheres, mudando para pior a distribuição do processo saúde/doença.

Enfim, é um cenário ameaçador, uma profecia de Apocalipse, como nos registros bíblicos. Muitas coisas já estão acontecendo: o calor e os incêndios na Austrália e nos Estados Unidos, a escassez de chuvas em 80% do território americano em 2012/2013, o esgotamento dos grandes reservatórios de água no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, as enchentes no Sudoeste da Amazônia, a maior seca dos últimos 60 anos no Nordeste do Brasil, os vendavais no subcontinente asiático, o degelo do Himalaia são fatos da atualidade e não apenas previsões sombrias para o futuro.

O Relatório sobre as mudanças climáticas e suas desastrosas consequências, configurando o alerta mais contundente para o futuro da humanidade, já aprovado por mais de 100 países, deve fundamentar a agenda de consultas, propostas e acordos dos governos do mundo para a Conferência do Clima do próximo ano. É um evento que deve responder ao pesadelo das mudanças climáticas, resgatando o fracasso do Encontro de Copenhagen, em 2007, quando, por divergências políticas entre as grandes potências, foi completamente comprometida a agenda sobre condutas internacionais objetivando reverter os efeitos ambientais, econômicos, sociais, políticos e éticos envolvidos com as questões do clima em crise pela ação intempestiva do homem.

Referências

  • 1
    Hipócrates de Quíos. Águas, Ares e Lugares. In: Buck C, Llopis A, Nájera E, Terris M. (orgs). El desafio de la epidemiologia- problemas y lecturas seleccionadas. Publicação cientifica nº 505.Washington: OPAS; 1988. p. 18-9.
  • 2
    Pessoa SB. Ensaios Médicos Sociais. São Paulo: Hucitec; 1978.
  • 3
    Castro J. Geografia da Fome: o dilema brasileiro, pão ou aço. Rio de Janeiro: Antares; 1984.
  • 4
    Braga RB. Elementos para a compreensão da crise sócio ambiental. As mudanças Climáticas e a Saúde Humana. Elisée-Rev Geografia UEG. 2013; 2 (2): 142-53.
  • 5
    Welzer H. Guerras Climáticas. Por que mataremos e seremos mortos no Século XXI. São Paulo: Geração Editorial; 2010.
  • 6
    IPCC (International Panel for Climate Changes). Chapter 1. Point of departure. Final Drafts, 1-35; 2013.
  • 7
    IPCC (International Painel for Climate Changes). Mudanças Climáticas 2014: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade (Grupo de trabalho II). [acesso em 14 abr 2014]. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg2/
    » http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg2/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014
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