Acessibilidade / Reportar erro

Projeto Fome Zero: a importância da divulgação científica dos seus resultados

The Fome Zero Project: importance of the scientific visibility of its results

EDITORIAL / EDITORIAL

Projeto Fome Zero: a importância da divulgação científica dos seus resultados

The Fome Zero Project: importance of the scientific visibility of its results

Malaquias Batista Filho

Conselho Nacional de Seguraça Alimentar. Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco e Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP.

Sob o ponto de vista vocabular, a fome assume um significado restrito e específico, expressando a sensação instintiva da necessidade de alimentos e, por conseguinte, a indução da saciedade - o desejo e a busca de diferentes produtos alimentícios para satisfazer a demanda fisiológica de energia e nutrientes. Assim entendida, a fome é um evento fisiológico e necessário para a vida, na medida em que sinaliza, através de mediadores bioquímicos, para a manutenção da homeostase nutricional, ou seja, o equilíbrio dinâmico e vital entre a oferta exógena e os gastos endógenos de calorias, de proteínas, de minerais e de vitaminas. Nesta contingência, trata-se de um evento necessário e até desejável.

Há, no entanto, uma outra dimensão, que é a fome insatisfeita, prolongada ou apenas parcialmente saciada, criando vulnerabilidade e traduzindo-se em patologias, como o baixo peso ao nascer, a anemia, a desnutrição energético-protéica de crianças e adultos, a deficiência de iodo, de zinco, de flúor, de outros minerais e de vitaminas diversas. É o processo que deixa de ser fisiológico e passa a ser um estigma nosológico, com sintomas e sinais próprios, ou social, como expressão de erros inatos das estruturas e funções da sociedade: cultura, economia, sociologia, ética e processos históricos correlacionados.

É este o problema: a deficiência alimentar nutricional ostensiva, clinicamente visível na semiologia física ou funcional da nutrição, ou oculta, somente detectável mediante provas bioquímicas. No caso brasileiro, são quase 10% de crianças com retardo de crescimento estatural, 30 a 40% de mulheres com anemia no período reprodutivo, acompanhadas de 40 a 50% de crianças menores de cinco anos com a mesma deficiência, mais da metade dos óbitos infantis e pré-escolares associados à desnutrição, uma prevalência ainda não bem avaliada mas provavelmente endêmica de hipovitaminose A nas regiões Norte e Nordeste e nos bolsões de pobreza urbana e rural de outras regiões. Ao lado do risco maior - a probabilidade de morrer - somam-se e se multiplicam outras adversidades biológicas ou humanas, como a repetição ou cronificação de doenças, o baixo rendimento do trabalho físico e mental, a apatia, a passividade e a acomodação que termina aceitando a própria condição de pobreza e de fome.

É nesse contexto de problemas, causas e conseqüências que, pela primeira vez no Brasil, se coloca como direito fundamental de cidadania e como prioridade absoluta de governo a questão da segurança alimentar. Trata-se de proposta coordenada e integrada, envolvendo 13 ministérios e 38 representações da sociedade civil, reunindo ações polarizadas em três grandes eixos de ações programáticas: disponibilidade, consumo alimentar e utilização biológica de energia e nutrientes.

Em relação à disponibilidade de alimentos, a situação do Brasil é relativamente tranqüila: com uma safra de 96 milhões de toneladas de grãos, um rebanho bovino de 160 milhões de cabeças e a segunda maior produção mundial de galináceos, o país dispõe de uma base segura para ganhar o status, de auto-suficiência alimentar. Dispõe-se de uma média diária de 2.960 colarias líquidas (descontadas as destinações para o mercado externo, plantio, alimentação animal, etc.). Neste item, o que se necessita é de consolidar a posição das safras agrícolas, assegurar a estabilidade de preços e diversificar a pauta de produção, de modo a cobrir as necessidades de uma demanda progressivamente mais variada de alimentos.

O elo mais vulnerável da cadeia alimentar/nutricional se configura no item consumo. A baixa renda familiar, o desemprego e o subemprego, as oscilações bruscas de preços, a falta de estoques reguladores que possam minimizar o movimento pendular do mercado em relação aos consumidores finais, enfim, toda uma série de fatores estruturais e conjunturais que situam 45 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza e indigência, constitui, de fato, a instância mais desafiadora do problema. Em termos de produto interno bruto, representamos o nono país mais rico do mundo. Já em termos de distribuição de renda, somos a terceira nação com mais desigualdade do planeta, depois da África do Sul e do Malawi. É uma assimetria socioeconômica que não pode ser corrigida em quatro ou cinco anos, porque foi construída em cinco séculos de história. Mas é uma situação que deve ser enfrentada corajosamente e mesmo revolucionariamente no sentido de mudar substancialmente o curso do processo que vivemos até então de uma forma consentida e apoiada por governos que aceitaram a lógica perversa do mercado, do laissez-faire onipotente e onipresente da equação oferta/procura, sem a consideração preliminar de que as necessidades e os direitos básicos do homem devem ser assegurados como princípios éticos da convivência social.

O objetivo último da segurança alimentar é o alcance de um estado nutricional adequado. Nesta instância final dois requisitos devem ser unificados, de modo que uma alimentação, saudável possa resultar numa boa nutrição, com a indispensável mediação de um estado satisfatório de saúde. São processos necessariamente simultâneos, requerendo ações sinérgicas da área da saúde com os canais mais diretamente responsáveis pela produção, abastecimento e consumo alimentar. É fundamental assegurar proteção contra as doenças de massa, em grande parte condicionadas pela pobreza e seu séqüito de fatores disbiógenos - acesso limitado e baixa resolutividade dos serviços de saúde, saneamento adequado do macro ambiente, escassos e errôneos conhecimentos e atitudes face ao processo saúde/doença. Em outras palavras: faz-se necessário articular, interna e externamente, uma seqüência lógica de medidas compondo o trinômio disponibilidade/consumo/utilização biológica de alimentos para que o conjunto segurança alimentar/nutricional seja plenamente equacionado.

É este campo de proposições do Projeto Fome Zero, um marco de referência que pode mudar o curso de nossa história política, econômica e social, sinalizando e exercitando novas diretrizes éticas para corrigir as grandes distorções estruturais da sociedade brasileira. Produzir, armazenar, distribuir e facultar o acesso a uma cesta suficiente, completa e equilibrada de alimentos segundo as necessidades nutricionais e, na ponta da cadeia, assegurar condições de saúde para que os gêneros alimentícios desdobrados e combinados sejam aproveitados segundo os parâmetros de uma boa nutrição.

A Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, que tem dedicado quase 30% de seu espaço editorial para os grandes temas de alimentação e nutrição, registra e se incorpora ao esforço de divulgação, análise de aspectos cientiíficos pertinentes e mobilização do Projeto Fome Zero, na convicção de que a segurança alimentar/nutricional, mais do que uma proposta formal de governo, deve ser dimensionada e desenvolvida como uma proposta nacional de resgate da cidadania.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2003
  • Data do Fascículo
    Mar 2003
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br