Open-access Paracetamol, autismo e a panaceia presidencial: quando a bravata encontra a evidência (e perde)

O episódio mais recente do melodrama anticientífico não surpreende: Donald Trump voltou ao centro do palco ao afirmar que o paracetamol usado na gestação “levaria” ao autismo e, de quebra, acenar com o ácido folínico (leucovorina) como “cura” para o transtorno do espectro do autismo (TEA).1,2 A mistura é perfeita para manchetes: um vilão cotidiano, um bode expiatório conveniente - as mães - e a promessa de redenção farmacológica. O que falta é o detalhe que sustenta a prática clínica: evidência robusta, obtida por método adequado e interpretada com senso de proporção.

A peça-chave desse debate é o estudo populacional sueco publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) em 2024, com quase 2,5 milhões de nascimentos e análise entre irmãos biológicos.3 Em modelos convencionais, o uso de paracetamol pareceu associar-se levemente ao transtorno do espectro autista (TEA) e ao transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH). Esse “sinal” - associação estatística de pequena magnitude, sem comprovação causal - desapareceu quando os autores compararam irmãos discordantes de exposição. Esse desenho atenua confundimento por genética e ambiente familiar, as razões de risco aproximam-se da nulidade e não há gradiente dose-resposta.3 Em linguagem simples: quando se mede direito, o efeito some.

Não por acaso, as recomendações de órgãos técnicos permaneceram estáveis. A European Network of Teratology Information Services (ENTIS) mantém o paracetamol como primeira escolha na gestação quando clinicamente indicado, na menor dose eficaz e pelo menor tempo necessário.4 Em 23 de setembro de 2025, a European Medicines Agency (EMA) reafirmou que nada mudou na União Europeia quanto ao uso de paracetamol na gravidez.5 No mesmo sentido, o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) reiterou que o paracetamol segue como opção mais segura para dor e febre na gravidez, desde que empregado com critério clínico.6

Dor e febre na gestação não são detalhes cosméticos; são problemas frequentes que interferem na qualidade de vida e, quando negligenciados, pioram desfechos. Lombalgia e dor pélvica são altamente prevalentes e tendem a intensificar-se no terceiro trimestre; meta-análise recente confirma a magnitude do problema e o impacto funcional que exige abordagem ativa.7 A febre materna não tratada também preocupa, sobretudo em quadros infecciosos. O manejo responsável, portanto, é parte do cuidado - não um luxo.5,6

Se o paracetamol fosse banido no impulso das manchetes, restaria às gestantes um cardápio de alternativas mais arriscadas justamente nas fases mais sensíveis do desenvolvimento fetal. Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) apresentam riscos conhecidos: a Food and Drug Administration (FDA) alerta para oligoâmnio a partir da 20ª semana e para constrição do ducto arterial no fim da gestação.8 A dipirona (metamizol) possui histórico regulatório heterogêneo, é formalmente contraindicada no terceiro trimestre por fetotoxicidade e já foi associada a oligoâmnio e constrição do ducto arterial com uso prolongado no final do segundo trimestre; se inevitável nessa janela, recomenda-se uso breve e monitorização ultrassonográfica.9,10 Além disso, não é aprovada nos Estados Unidos da América (EUA) devido ao risco de agranulocitose.11 Nesse cenário comparativo, o paracetamol preserva o lugar de primeira linha: indicado quando há necessidade clínica, na menor dose eficaz e pelo menor tempo possível.4-6

Por que, então, seguimos vendo manchetes que insinuam causalidade entre um analgésico onipresente e desfechos complexos de neurodesenvolvimento? Uma parte importante da resposta é metodológica. Estudos observacionais de exposições ubíquas capturam mais o contexto familiar e de saúde - genética, condições socioeconômicas, comorbidades e práticas de cuidado - do que um efeito farmacológico isolado. Gestantes com enxaqueca, infecções, dor crônica, ansiedade ou depressão usam mais analgésicos; essas mesmas condições, independentemente do medicamento, relacionam-se a desfechos neuropsiquiátricos na prole.3 Sem controle adequado de confundimento, a estatística tende a fabricar miragens.

Há também uma razão cultural e política para a persistência de falsas certezas: a velha retórica da culpa materna. Sempre que o assunto é neurodesenvolvimento, a responsabilidade escorre para a mãe. Essa narrativa desloca o peso da falha para o corpo feminino e perpetua vigilância sobre as escolhas reprodutivas. É um reflexo de estruturas patriarcais que historicamente transformam incerteza estatística em culpa moral: o útero vira o lugar presumido do erro, e a mulher, a suspeita permanente.12 O processo deseduca, fere e silencia, desviando o olhar dos determinantes reais - genética, ambiente, condições sociais e acaso biológico - para o mito da mãe onipotente e eternamente culpada.12

Em saúde pública, esse moralismo não apenas piora desfechos como perpetua desigualdades de gênero. Ao fragilizar a autonomia das mulheres, legitima práticas de violência simbólica e esvazia a clínica de seu compromisso com o cuidado. Reconhecer a autonomia informada das gestantes é, portanto, também um ato feminista - e condição para práticas verdadeiramente emancipatórias.12 O que a boa clínica precisa cultivar é método e escuta qualificada; o que deve rejeitar é a tentação de converter incerteza em julgamento moral.

Os efeitos sociais dessa retórica se somam a uma economia da desinformação que se mostrou lucrativa. Desde a fraude de Andrew Wakefield, cuja retração oficial em 2010 não conteve a onda antivacinas, associações espúrias com autismo viraram negócio.13 O roteiro é conhecido: cria-se um risco cotidiano e, na sequência, vendem-se “soluções” milagrosas. Multiplicam-se dossiês malfeitos, “protocolos detox”, ozonioterapia e outras terapias sem base científica, com promessas grandiloquentes e resultados modestos ou inexistentes.13 A indústria do medo prospera explorando angústias, culpabilizando mães e prometendo atalhos; o custo real recai sobre famílias, serviços de saúde e políticas públicas.13

E o ácido folínico, erigido a “cura” de ocasião? Ensaios clínicos randomizados de pequeno porte sugerem benefícios em subgrupos muito específicos de crianças autistas, especialmente aquelas com autoanticorpos contra o receptor de folato alfa, com ganhos de linguagem e melhora modesta em escores globais.14,15 Ainda assim, amostras reduzidas, curta duração de seguimento, desfechos em parte subjetivos e análises de subgrupos frágeis limitam a interpretação. Lidos com ceticismo - como convém a resultados preliminares - esses achados não sustentam recomendações clínicas generalizadas nem autorizam narrativas de “cura”.14,15

No manejo concreto da dor e da febre durante a gestação, o caminho responsável continua o de sempre: avaliar indicação, dose e tempo. O paracetamol permanece a primeira escolha quando clinicamente indicado; usar a menor dose eficaz pelo menor tempo necessário.4-6 Os AINE devem ser evitados, como anteriormente comentado, a partir de 20 semanas e, sobretudo, no final da gestação, quando o risco de constrição do ducto arterial é maior; se absolutamente indispensáveis em janela intermediária, a decisão precisa ser individualizada e o uso, restrito.8 Quanto à dipirona, manter a contraindicação no terceiro trimestre e, se um cenário clínico excepcional impor seu uso no final do segundo trimestre, limitar a duração e monitorizar por ultrassonografia, evitando o risco de oligoâmnio e constrição do ducto arterial.9,10 Lembrar, por fim, que o fármaco não é aprovado nos EUA por risco de agranulocitose.11

No fim das contas, a pergunta “paracetamol causa autismo?” foi abordada com um desenho capaz de separar associação de causa, e a resposta, até aqui, é negativa.3 Órgãos regulatórios e sociedades científicas, cujo ofício é pesar riscos e benefícios em saúde pública, mantiveram suas recomendações.4-6 A tentação de decidir a priori - pelo palanque, pelo algoritmo ou pelo clique - custa caro em confiança social e em sofrimento de famílias; decidir com método científico dá trabalho, mas devolve previsibilidade ao cuidado e dignidade às pessoas.

Em suma, a boa prática não precisa de heróis, precisa de pesquisas. Ao resistir à culpabilização materna e à sedução de soluções miraculosas, reafirmamos a tríade que sustenta a medicina responsável - método científico, medida e responsabilidade - e garantimos que o cuidado em obstetrícia continue a ser, antes de tudo, uma defesa da autonomia informada. É menos barulhento que um comício, mas infinitamente mais útil para mães e bebês.

  • *
    Nota da autora: Melania Amorim é autista e mãe de autistas, além de médica, cientista e feminista - vivências que motivam a defesa intransigente da neurodiversidade e a crítica à culpabilização materna.

Referências bibliográficas

  • À convite da Editora Chefe: Lygia Vanderlei

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2025
  • Recebido
    01 Out 2025
  • Aceito
    02 Out 2025
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