Há aproximadamente nove meses, a população mundial começou a ter experiências negativas quanto à disseminação de um vírus respiratório, denominado síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2). Esse vírus é o agente etiológico da COVID-19, doença considerada responsável por um dos piores surtos vivenciados pela humanidade. 1 Não tardiamente, a pandemia da COVID-19 acometeu as mais diversas camadas sociais do Brasil, o qual foi o primeiro país da América Latina com caso relatado. 1
Devido à acentuada transmissibilidade, morbidade e mortalidade associadas à escassez de conhecimento sobre a patogênese do vírus e de tratamentos eficazes, medidas e recomendações preventivas foram instaladas para conter a disseminação da doença. 2 A restrição do convívio social, representada pelo distanciamento social, o uso obrigatório de máscaras e a higienização frequente das mãos, foram algumas das ferramentas utilizadas, variando de intensidade de acordo com as políticas de saúde de cada governo. 1
Acerca desse contexto de mitigação social, sentimentos de medo e angústia decorrentes da pandemia são aflorados e, interligados ao anseio de uma possível infecção, tornam-se gatilhos para manifestações clínicas de psicopatologias. 3 Por outro lado, dentre os impactos da presença de distúrbios psíquicos, encontra-se o comprometimento da qualidade de vida, resultante da redução ou perda completa da produtividade nas atividades diárias e/ou na manutenção das relações sociais. 3 Dessa forma, pode-se considerar que transtornos mentais e distanciamento social possuem uma relação de causa e efeito de forma bidirecional.
Pesquisas recentes têm evidenciado maior prevalência de sintomatologia para estresse, ansiedade e depressão na população feminina durante a pandemia da COVID-19. Antes da variável distanciamento social, a vulnerabilidade emocional feminina estava tanto vinculada com as alterações hormonais durante o período pré-menstrual, pré e pós parto e menopausa, quanto com as desigualdades de gênero, as quais fortalecem sobrecargas trabalhistas e a violência contra a mulher. 3 Paralelamente à consolidação das restrições sociais, os índices de violência doméstica, sexual e de gravidez indesejada cresciam1 em decorrência da maior permanência do homem no lar, o que contribui para a significativa prevalência de quadros clínicos psíquicos nas mulheres durante esse período.
Ademais, destacam-se como variáveis possivelmente de risco para o comprometimento da saúde-mental da população feminina durante o distanciamento social: ser adulta jovem, residir em regiões com elevados índices de casos e mortalidade da COVID-19, possuir antecedentes de ansiedade e depressão, fazer uso de medicamentos, atividade física e lazer reduzidos ou ausentes e encontrar-se desempregada.
Diante do significativo impacto da COVID-19, governos mundiais estão priorizando a consolidação de medidas de controle e combate dessa nova doença e, apesar da efetividade desses recursos, efeitos advindos indiretamente da pandemia estão sendo ofuscados, como o comprometimento da saúde-mental no público feminino. Portanto, salienta-se quanto a necessidade da criação de estratégias proativas de caráter multiprofissional, a fim de abranger e individualizar os múltiplos fatores que exercem influência sobre a saúde mental das mulheres.
Em razão da acentuada ausência ou falha no diagnóstico e tratamento das mulheres acometidas por transtornos mentais e da elevada recorrência desses distúrbios em portadoras prévias, destaca-se a necessidade de serviços especializados e que ofereçam cuidados de fácil acesso. 3 Sugere-se ampliação de teleconsultas com psicólogos e psiquiatras, porém, medidas alternativas devem ser oferecidas às pacientes que não possuem aces
so aos meios digitais. Dessa forma, frisamos a necessidade de investimentos também no gerenciamento psíquico desse público alvo.
A crise advinda da pandemia do novo coronavírus repercutiu, além de déficitsno sistema de saúde, em aumento do desemprego e cortes salariais. Sabe-se que instabilidades econômicas são situações que predispõem o surgimento de transtornos mentais, 4 o que torna relevante a implementação de estratégias que amenizem esses impactos, através de cursos onlinede capacitação para pequenas empreendedoras, estratégias de auxílios as já existentes, além de medidas trabalhistas que assegurem o emprego das mulheres.
Atrelado a isso, atividades que melhoram a qualidade de vida e previnam transtornos mentais, como exercícios físicos e atividades de lazer, são menos prevalentes entre as mulheres, em decorrência, especialmente, da sobrecarga de funções associadas à dupla jornada de trabalho.5 Sendo assim, os novos conceitos interligados a funcionalidade da mulher sugerem adequações das atividades impostas dentro dos núcleos familiares, como divisão dos papéis domésticos entre os membros, 5 o que reduziria a carga laboral, facilitando a realização de atividades de lazer e práticas de exercícios físicos. Dessa forma, seja por meio de programas e aulas online ou presencial com educadores físicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e outros profissionais capacitados, desde que sejam respeitadas as medidas restritivas, deveriam ser estimuladas.
Devido ao maior tempo de dedicação aos estudos, ausência de relacionamentos estáveis e formação de um núcleo familiar tardio, pesquisadores têm reconhecido a faixa etária de 18 a 29 anos como um importante período de desenvolvimento e transição. 6 Essa condição de vida do adulto jovem associada às cobranças socialmente impostas a função da mulher e a maior tendência de experimentarem transtornos de humor, influenciam para que haja maior prevalência de psicopatologias entre as mulheres jovens. 6 Diante desse quadro, atenção especial deve ser direcionada a essa população, uma vez que apresentam significativa prevalência e recorrência, alongo prazo, de desenvolverem transtornos mentais, além do suicídio.
Estudos evidenciam que a insônia apresenta índices mais altos entre as mulheres e acentua-se à medida que envelhecem. 7 Embora existam incertezas quanto a relação causal entre os distúrbios do sono e os psiquiátricos, acredita-se que a insônia, além de ser um sintoma típico de psicopatologias, seja também um preditor para depressão e outras enfermidades mentais. 7 Diante da crescente frequência do não diagnóstico, subtratamento, tratamento inadequado e agravamento dos distúrbios do sono durante a pandemia da COVID-19, medidas preventivas e de reconhecimento precoce devem ser elaboradas, como a identificação dos fatores precipitantes e avaliações através de autorrelato. Recomenda-se, como tratamento de primeira escolha, a terapia cognitiva-comportamental, a qual deve ser mais disponibilizada, uma vez que seus efeitos benéficos, em contraste aos produzidos por medicamentos, atuam a longo prazo. 8
À medida que mais informações sejam obtidas sobre os fatores associados à saúde mental da mulher durante a pandemia da COVID-19, estratégias multidisciplinares poderão ser consolidadas como guias para melhores decisões sobre diagnósticos, condutas terapêuticas e prevenção de novos casos. Deve-se também estar atento ao retorno das políticas públicas de saúde mental, considerando o “novo normal” no atendimento a essas mulheres, a fim de não prolongar o diagnóstico e início do tratamento.
Referências bibliográficas
- 1 Senicato C, Azevedo RCS, Barros MBA. Transtorno mental comum em mulheres adultas: identificando os segmentos mais vulneráveis. CiêncSaúdeColetiva. 2018; 23: 2543-54.
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- 3 Thapa SB, Mainali A, Schwank SE, Acharya G. Maternal mental health in the time of the COVID-19 pandemic. Acta ObstetGynecol Scand. 2020; 99: 817-8.
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4 Mattos D. O impacto do desemprego e a saúde psicossocial. Psicologia.pt. 2018: 1-14. Disponível: https://www.psicologia.pt/arti-gos/textos/A1165.pdf
» https://www.psicologia.pt/arti-gos/textos/A1165.pdf - 5 Pinho PS, Araújo TM. Associação entre sobrecarga doméstica e transtornos mentais comuns em mulheres. Rev Bras Epidemiol. 2012;15:560-72.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Out 2020 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2020