Acessibilidade / Reportar erro

Arranjos de governança da assistência especializada nas regiões de saúde do Brasil

Resumo

Objetivos:

analisar os arranjos de governança regional da assistência especializada no SUS.

Métodos:

foram realizados estudos de caso que incluíram sete regiões de saúde no território brasileiro, envolvendo a sistematização de dados secundários e a realização de 128 entrevistas com dirigentes do SUS (2015-2016). A análise foi feita em perspectiva comparada, considerando: a participação pública e privada; a concentração da assistência; as relações de poder e os conflitos regionais.

Resultados:

a provisão e a despesa pública foram elevadas na Média Complexidade e a privada na Alta. Os municípios foram os principais responsáveis pela provisão pública, sendo que a assistência especializada se mostrou fortemente concentrada nos municípios polo. O grau de influência dos prestadores nas decisões de saúde foi alto, e a oferta considerada insuficiente e inadequada em relação aos serviços e profissionais médicos. Os conflitos se evidenciaram nas relações intergovernamentais e público-privadas.

Conclusões:

a diversidade de atores e arranjos - multiníveis, híbridos e polarizados - caracterizam a governança na regionalização do SUS, sendo esta condicionada pelo contexto de escassez e a desigualdade na distribuição de serviços.

Palavras-chave:
Política de saúde; Administração de serviços de saúde; Regionalização; Gestão em saúde; Sistema Único de Saúde

Abstract

Objectives:

to analyze the regional governance arrangements of specialized assistance in the Public Health System (SUS).

Methods:

Case studies were carried out which included seven health regions in the Brazilian territory, involving the secondary data systematization and 128 interviews with SUS leaders (2015 to 2016). The analysis was done in a comparative perspective, considering: public and private participation; assistance concentration; power relations and regional conflicts.

Results:

the public provision service and expenditure were high in the Medium Complexity and in the private, High Complexity. The main responsibility for the public provision service was in the cities so, that the specialized assistance was strongly concentrated in the pole cities. The level of influence from the providers in health decisions was high, and the offer considered to be insufficient and inadequate in relation to services and medical professionals. Conflicts were evident in the intergovernmental and public-private relations.

Conclusions:

the diversity of agents and arrangements - multilevel, hybrid and polarized - characterizes governance regionalization in SUS, which is conditioned by the scarcity and the inequality context in the distribution of services.

Key words
Health policy; Health services administration; Regionalization; Health management; Public Health System

Introdução

Desde os anos 1980, diversos países experimentaram processos de reforma relacionados a transformações no capitalismo e no papel dos Estados, com impactos significativos sobre os sistemas de saúde. Ancoradas em ideias neoliberais, as tendências das mudanças implementadas centraram-se em ajustes macro-econômicos, redução do gasto público na área social, privatizações e fortalecimento de mercados.11 Almeida C. Reforma do Estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. Ciênc Saúde Coletiva. 1999; 4 (2): 263-86.

Essa agenda adquiriu contornos específicos na política de saúde, com variações ao longo do tempo entre países com níveis de renda similares e situados em diferentes regiões do mundo.11 Almeida C. Reforma do Estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. Ciênc Saúde Coletiva. 1999; 4 (2): 263-86.,22 Almeida C. Reforma de sistemas de servicios de salud y equidad en América Latina y el Caribe: algunas lecciones de los años 80 y 90. Cad Saúde Pública. 2002; 18 (4): 905-25. De forma geral, as reformas foram orientadas para retração do Estado na prestação direta e privatização de serviços, descentralização para governos subnacionais e introdução de mecanismos de mercado na gestão de sistemas públicos. As características e os resultados das mudanças observadas foram influenciados por fatores de natureza diversa, em que se destacam a forma de inserção da política de saúde na economia e no modelo de proteção social, e a especificidade de sua trajetória histórica e institucional em cada país.

O Brasil foi o único Estado capitalista da América Latina que instituiu, na década de 1980, um sistema de saúde de base universal: o Sistema Único de Saúde (SUS). O contexto de crise econômica e de redemocratização favoreceu o debate e a atuação política na área da saúde (o fortalecimento do ‘movimento sanitário’), repercutindo em mudanças na Constituição brasileira de 1988 e no sistema de saúde durante os anos 80. Entretanto, embora os direitos assegurados pela Constituição tenham contribuído para avanços significativos (tais como ampliação do acesso a serviços públicos, melhoria de indicadores de saúde e alterações no modelo de atenção), a implementação do SUS expressou contradições entre agendas conflitantes - a agenda de universalização da saúde e a de reforma do Estado de inspiração liberal - nos anos subsequentes.33 Paim JS, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian Health System: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377: 1778-97.

Entre outros aspectos, dois se traduziram de forma marcante na reforma do Estado intensificada a partir da década de 1990: a descentralização para entes subnacionais e o estímulo à conformação de sistemas de políticas públicas, com reconcentração de recursos políticos e fiscais no executivo federal,44 Hochman G, Faria CAP, organizadores. Federalismo e políticas públicas no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. a flexibilização da gestão e a mercantilização da prestação de serviços públicos associadas às propostas da ‘Nova Administração Pública’.55 Costa FL. Reforma do Estado e contexto brasileiro: crítica do paradigma gerencialista. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010.

Como desdobramento do primeiro aspecto da reforma, trabalhos demonstram a importância de mecanismos de indução e coordenação federal na descentralização político-administrativa do SUS, caracterizada pela municipalização e indefinição do papel dos governos estaduais.66 Viana ALd'Á, Machado CV. Descentralização e coordenação federativa: a experiência brasileira na saúde. Cien Saude Colet. 2009; 14(3): 807-817. Normas e incentivos financeiros federais favoreceram a disseminação de regras instituídas no plano nacional e estadual, a configuração de espaços de negociação federativa e a diversificação dos acordos intergovernamentais sobre a gestão dos recursos financeiros e a prestação de serviços.77 Viana ALd'Á, Lima LD, Oliveira RG. Descentralização e federalismo: a política de saúde em novo contexto - lições do caso brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. 2002; 7 (3): 493-507.,88 Dourado DA, Elias PEM. Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro. Rev Saúde Pública. 2011; 45 (1): 204-11.

Entretanto, os resultados da descentralização na saúde são contraditórios e altamente dependentes das condições prévias locais, refletindo diferentes capacidades financeiras e organizacionais para a prestação de serviços e distintos projetos de governo de governadores e prefeitos.99 Souza C. Governos e sociedades locais em contextos de desigualdades e de descentralização. Ciênc Saúde Coletiva. 2002; 7 (3): 431-42. Verificam-se problemas relativos à desintegração da atuação regional de instituições, serviços e práticas, e dificuldades para a conformação de arranjos cooperativos entre os governos que garantam o acesso integral à saúde.1010 Campos GWS. Efeitos paradoxais da descentralização do Sistema Único de Saúde do Brasil. In: Fleury S, organizadora. Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV; 2006. p. 417-42.

O segundo aspecto se refletiu em alterações nas formas de organização da Administração Pública (implantação de modalidades diversas da Administração Indireta, tais como Fundações Estatais) e na introdução de mecanismos diferenciados de contratação da força de trabalho em saúde.1111 Martins MIC, Molinaro A. Reestruturação produtiva e seu impacto nas relações de trabalho nos serviços públicos de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18 (6): 1667-76. Também se refletiu na expansão do setor privado com ou sem fins lucrativos - Organizações Sociais, setor filantrópico, privado lucrativo - na gestão e prestação de serviços públicos.

Ressalta-se que a fronteira entre o público e o privado na saúde é cada vez mais tênue, tendo em vista o desempenho de inúmeras funções públicas pelo privado. Há, ainda, forte correlação entre o financiamento público e o privado,1515 Santos IS, Ugá MAD, Porto SM. O mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2008; 13 (5): 1431-40. onde formas públicas sustentam modelos privados (subsídio à compra de planos de saúde) e recursos privados, principalmente na forma de desembolso direto pelos indivíduos, mesclam-se com fundos públicos para a sustentação de inúmeras ações de saúde.1414 Ocké-Reis CO. SUS: o desafio de ser único. 1a Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.

Partindo dessa discussão, o artigo tem como objetivo analisar, no âmbito da política de saúde, os efeitos simultâneos dos processos de descentralização, flexibilização e mercantilização nos arranjos de governança regional, tendo por referência a assistência especializada no SUS.

No estudo, adota-se uma concepção ampla de governança, presente nas discussões contemporâneas sobre gestão pública e políticas públicas.1616 Rhodes RAW. The new governance: governing without government. Political Studies. 1996; XLIV: 652-67.,1717 Stoker G. Governance as theory: five propositions. Int Soc Sci J. 1998; 50 (155): 17-28. A governança expressa relações de dependência e interação entre múltiplos atores (estatais e não estatais; públicos, privados e corporativos) na condução de políticas públicas em contextos institucionais específicos.1818 Marques EC. Government, political, actors and governance in urban policies in Brazil and São Paulo: concepts for a future research agenda. Braz Political Sci Rev. 2013; 7 (3): 8-35. Nesse sentido, o uso da governança como categoria de análise possibilita a compreensão da complexidade das intervenções regulatórias na saúde, influenciadas pela atuação de diversos grupos de interesse e organizações, em um contexto de reconfiguração do poder do Estado no setor.1919 Jakubowski E, Saltman RB, editor. The changing national role in health system governance. A case-based study of 11 European countries and Australia. Brussels: The European Observatory on Health Systems and Policies/WHO; 2013.,2020 Greer SL, Jarman H, Azorsky A. A reorganisation you can see from space: the architecture of power in the new NHS. London: Centre for Health and Public Organization; 2014.

A justificativa para o recorte do trabalho está relacionada à importância dos serviços de assistência especializada para a conformação de redes de atenção à saúde.2121 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª. Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011. Geralmente, a assistência especializada está associada à necessidade de incorporação de ações que envolvem maior densidade tecnológica e/ou exigência de expertise e habilidades especiais. Solla e Chioro,2222 Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho I, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 547-76. por exemplo, definem tal assistência como “um conjunto de ações, práticas, conhecimentos e técnicas assistenciais caracteristicamente demarcadas pela incorporação de processos de trabalho que englobam maior densidade tecnológica, as chamadas tecnologias especializadas” (p. 549).

Mesmo considerando a necessidade de conhecimentos e habilidades específicas no âmbito da atenção primária à saúde, neste estudo, a assistência especializada inclui somente os serviços de Média e Alta Complexidade (MAC) do SUS. Tais serviços representam expressivo volume de atendimentos e gastos, sendo considerados um dos maiores desafios para garantia do acesso integral à saúde. Até porque sua provisão, além de ser orientada pela oferta (e não pela necessidade ou perfil epidemiológico da população), é concentrada, não é adequadamente regulada e é fortemente influenciada pelos prestadores privados.2222 Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho I, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 547-76.

O enfoque regional, por sua vez, é relevante frente às desigualdades que demarcam o território brasileiro. Embora melhorias nos níveis de renda e capacidade de oferta tenham ocorrido no período de 2000 a 2016, as diferenças socioeconômicas e de composição de serviços de saúde entre as regiões constituídas para fins de planejamento e gestão inter-governamental do SUS (designadas como ‘regiões de saúde’) são bastante significativas.2323 Albuquerque MV, Viana ALd'Á, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER, Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Ciênc Saúde Coletiva. 2017; 22 (4): 1055-64.

O artigo foi orientado pela seguinte questão: como se configura a governança da assistência especializada nas regiões de saúde? Presume-se que diferentes arranjos de governança no SUS estejam associados à distribuição de responsabilidades gestoras na prestação e nos gastos com assistência especializada, por agentes públicos (esferas/entes governamentais) e privados (com ou sem fins lucrativos), com maior ou menor concentração regional nos municípios polo. As formas como se distribuem as funções e os recursos neste nível da atenção expressam relações de poder envolvendo gestores e prestadores de serviços, e o modo como processos de reforma na saúde se instituíram no território, sendo condicionadas por dinâmicas regionais específicas.

Métodos

Este artigo insere-se no âmbito de um projeto multi-cêntrico nacional, cujos passos metodológicos estão detalhados em outra publicação,2424 Viana ALd'Á, Ferreira MP, Cutrim MAB, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Chancharulo AP, Mota PHS. Política de regionalização do SUS em debate: avanços e impasses da implementação das regiões e redes no Brasil. Novos Caminhos [nota técnica online] 2017. [acesso em 29 mai 2017] 15:8p. Disponível em: http://www.regiaoeredes.com.br
http://www.regiaoeredes.com.br...
tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (CAAE: 42787815.9.1001.0065). Resumidamente, essa pesquisa envolveu a realização de cinco estudos de caso selecionados de modo intencional em cada uma das macrorregiões brasileiras.

O recorte aqui apresentado dedica-se especificamente à análise da governança da assistência especializada no SUS em sete regiões de saúde englobadas nos estudos de caso: Baixada Cuiabana (Mato Grosso - MT); Barretos Norte e Barretos Sul (São Paulo -SP); Carbonífera/Costa Doce (Rio Grande do Sul - RS); Manaus/Alto Rio Negro (Amazonas -AM); Juazeiro (Bahia -BA) e Petrolina (Pernambuco - PE). O estudo contempla abordagens quantitativa e qualitativa complementares, por meio da sistematização de dados secundários de bancos nacionais e de dados primários oriundos da base empírica dos estudos de caso.

A análise dos casos foi feita, em perspectiva comparada, considerando três dimensões: 1) a participação pública e privada na prestação e nas despesas relacionadas à assistência especializada, destacando os entes governamentais (níveis de governo), no caso da participação pública; 2) a concentração da assistência especializada no município polo da região; 3) as relações de poder e os conflitos relativos à assistência especializada segundo atores regionais.

Em que pesem divergências conceituais, a assistência especializada, neste artigo, foi considerada como a assistência de média e alta complexidade (MAC). Destaca-se que esta é a forma como ela é rotineiramente apreendida nos sistemas de informação (ambulatorial e hospitalar) do SUS e como o foi nos questionários aplicados nos estudos de caso.

Para apreensão de informações referentes à assistência de MAC foram utilizados dados do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA-SUS) e do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH-SUS), disponibilizados on line no sítio do Datasus/MS, tendo como recorte temporal o biênio 2015-2016. Esse biênio foi definido para análise por três motivos principais: i) coincidência com o período em que foram conduzidos os estudos de caso; ii) homogeneidade das variáveis selecionadas para análise; iii) diminuição da influência de eventual variação casual pela agregação de dois anos subsequentes.

As seleções utilizadas para a captação dos dados secundários foram: quantidade aprovada (procedimentos e Autorizações de Internação Hospitalar - AIH), valor aprovado, região de saúde (Comissão Intergestores Regional - CIR), esfera jurídica (administração pública: federal, estadual, municipal, outros; administração privada: entidades sem fins lucrativos; demais entidades empresariais) e complexidade (média e alta).

Os dados de produção e gastos relativos a essa assistência foram transformados em coeficientes utilizando-se a população residente das regiões para o referido biênio: procedimentos/AIH por mil habitantes (quantidade aprovada x 1000/população) e gastos per capita (valor aprovado/população). Também se efetuaram proporções simples para evidenciar: a participação pública e privada (na produção e nos gastos); a participação específica de União, estados e municípios no total de produção e gastos públicos; e o papel desempenhado pelo município polo das regiões de estudo.

Foram considerados procedimentos e AIH de MAC todos aqueles que assim são classificados pelo SIA-SUS e pelo SIH-SUS na seleção “complexidade”, com uma ressalva: nos procedimentos ambulatoriais de alta complexidade não foi incluído o grupo “medicamentos” (grupo de procedimentos 6), por não ser comum a todas as regiões investigadas.

Além dos dados oriundos desses dois sistemas, foram levantadas informações sobre a força de trabalho médico especializada, bastante relacionada ao tipo de assistência objeto deste estudo. O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) foi a fonte de dados, sendo selecionados: indivíduos (e não vínculos), região de saúde (CIR) e esfera jurídica. As categorias médicas selecionadas abrangeram especialidades clínicas (16) e cirúrgicas (17) , não sendo considerada a atenção primária (generalista, clínico geral, medicina da família, medicina preventiva, sanitarista), os médicos residentes e poucas outras especialidades como medicina legal, do trabalho e tráfego.

Da mesma forma que a produção, tais dados foram transformados em coeficientes (médicos especialistas por 10.000 habitantes) e percentuais, evidenciando a relação público-privada, a vinculação com os distintos entes públicos e a concentração de profissionais nos municípios polo.

A base empírica de dados primários originou-se dos estudos de caso, cujos campos foram conduzidos nas sete regiões de saúde já mencionadas, entre agosto de 2015 (Barretos Norte e Sul) e junho de 2016 (Carbonífera/Costa Doce). Na ocasião, foram aplicados questionários semiestruturados (com foco em política, estrutura, organização e intersetorialidade), que se diferenciaram em 10 tipos de instrumentos, dependendo da categoria dos atores-chave entrevistados (128): gestores, prestadores e representantes da sociedade civil, dos níveis municipal, regional e estadual. Para fins deste estudo, foram buscadas, no conjunto de questionários aplicados, as questões que, no seu enunciado ou nas opções de resposta, fazia alusão à assistência especializada. Foram priorizadas as questões que expressassem tanto as relações de poder como os conflitos entre gestores e prestadores, nas decisões de saúde.

A exploração dessa base empírica permitiu que as respostas fossem organizadas nas seguintes categorias de análise: (a) grau de influência dos prestadores de MAC do SUS (públicos e privados, lucrativos ou não) nas decisões de saúde; (b) grau de dependência de serviços específicos- consultas médicas, exames diagnósticos e internações (públicos e privados) - para organização da rede especializada no SUS; (c) suficiência/adequação da oferta e do sistema logístico para organização da MAC no SUS; (d) tipos de conflitos regionais relacionados à assistência especializada (intergovernamentais e público-privados).

Cada região de estudo foi qualificada segundo padrão predominante das respostas dos entrevistados, apreendidas de duas formas: percentual de respostas afirmativas superior a 50,0%, no caso de variáveis dicotômicas (do tipo Sim/Não); e score acima 3 (alto) para as variáveis expressas em escala Likert (1 a 5).

Cabe esclarecer que as duas regiões de Barretos (Norte e Sul) assim como as de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) foram analisadas em conjunto. Essas últimas conformam uma rede interestadual denominada PEBA, contando com conselho de gestão formado por representantes de ambas regiões.

Ao final, a partir do cotejamento das diferentes fontes de dados da pesquisa e da comparação entre os casos, procurou-se caracterizar e tipificar os arranjos de governança observados.

Resultados

O público, o privado e os entes governamentais nos arranjos de governança regional

Independentemente da complexidade, foi bastante desigual o volume de procedimentos ambulatoriais e internações de MAC nas regiões em estudo, desigualdade essa que se espraiou para os gastos per capita, não na mesma proporcionalidade (Tabela 1). Na assistência ambulatorial de média complexidade (MC), Barretos, Manaus e Baixada Cuiabana, nessa ordem, destacaram-se tanto no quantitativo quanto nos gastos. Juazeiro se sobressaiu como a região mais carente, enquanto Carbonífera e Petrolina se assemelharam no quantitativo, mas se diferenciaram nos gastos, pressupondo a realização de procedimentos mais simples, em Petrolina. Já na assistência hospitalar de MC, Barretos e Baixada Cuiabana permaneceram como as regiões com maiores volumes e gastos, mas foi a Carbonífera que deteve os indicadores mais baixos, enquanto eles foram intermediários e bem próximos em Manaus, Juazeiro e Petrolina (Tabela 1).

Tabela 1
Assistência de MAC do SUS: quantidade (por 1000 hab.), gastos (R$), participação pública (em %) e ente governamental responsável (em %), quando da participação pública, segundo regiões de saúde. Brasil, biênio 2015-2016.

A provisão de assistência ambulatorial de MC e os gastos relativos a ela foram majoritariamente públicos em quatro regiões, com destaque para Manaus (89,6%; 85,9%, respectivamente), enquanto em Barretos e Carbonífera predominou o setor privado. Cenário semelhante ocorreu com a assistência hospitalar, com exceção da Baixada Cuiabana, onde o setor privado foi majoritário no quantitativo e o setor público nos gastos. Além disso, em Petrolina, a participação pública no volume de internações (97,0%) e nos gastos relativos a elas (97,9%) foi bem maior do que se evidenciou na assistência ambulatorial, assemelhando-se a Manaus.

Em relação à Alta Complexidade (AC), Barretos destacou-se entre todas as regiões, tanto na quantidade de procedimentos e internações, como nos gastos relacionados a eles, enquanto a região Carbonífera deteve os menores indicadores de assistência ambulatorial e não teve internações de AC no biênio em estudo. Diferentemente da MC, a participação do setor público na provisão de assistência ambulatorial de AC foi minoritária em todas as regiões, de forma mais evidente em: Carbonífera, Barretos, Juazeiro e Baixada Cuiabana (Tabela 1). Nos gastos, tal percentual se manteve ou se reduziu ainda mais (Baixada Cuiabana e Manaus), elevando-se acima dos 50% apenas em Petrolina. Ainda que o setor privado também tenha prevalecido no volume e nos gastos com internações hospitalares de AC em Barretos e na Baixada Cuiabana, o setor público foi majoritário em Manaus e Petrolina, em volume de internações, participação essa que se reduziu bastante, quanto aos gastos.

Como referido, a participação pública na assistência de MC foi relevante e, quando ela se deu, o quadro foi bastante diversificado, predominando a participação do município em quatro delas (Baixada Cuiabana, Barretos, Carbonífera e Juazeiro) e do estado nas outras duas (Manaus e Petrolina), tanto no quantitativo de procedimentos e AIH quanto nos gastos relativos a eles (exceto em Juazeiro, onde o município concentrou as internações, mas se iguala ao estado, nos gastos). O nível federal teve participação minoritária e em apenas três das regiões - Petrolina, Baixada Cuiabana e Manaus -, mas nessa última região respondeu por cerca de 25% do volume e dos gastos com internações de MC (Tabela 1).

Já na assistência de AC a provisão foi majoritariamente privada, conforme evidenciado nesta tabela. Quando o setor público respondeu por parte importante dessa assistência, como se observou em Manaus, Petrolina e Juazeiro, o estado se destacou como o principal envolvido nas três regiões. A União destacou-se no papel de importante provedor de assistência hospitalar de AC em Petrolina. Ainda que a participação pública tenha sido bem menor na Baixada Cuiabana, quando ela se deu, o estado e o município foram os principais responsáveis (Tabela 1).

A assistência de MAC está bastante relacionada aos profissionais médicos, motivo porque foram investigadas algumas características dessa força de trabalho especializada. Barretos e Baixada Cuiabana tiveram maior disponibilidade de especialistas, com vantagens para a primeira região, já que nela mais de 85% desses profissionais atuavam no SUS (Tabela 2) . Em Manaus e Juazeiro também foi elevado o percentual de especialistas que atuavam no SUS, embora sua disponibilidade tenha sido bem distinta (e bem inferior à de Barretos). Petrolina, Carbonífera e Baixada Cuiabana foram as regiões com menores percentuais de especialistas ligados ao SUS.

Tabela 2
Disponibilidade de médicos especialistas (total e SUS) por 10.000 habitantes, atuação no SUS (%), principais esferas jurídicas de atuação (%) e concentração em municípios polo (%) segundo regiões de saúde. Brasil, dezembro de 2016.

Grande parte dos especialistas que atendiam no SUS atuavam junto ao setor privado, variando de 21,7% (Carbonífera) a 62,2% (Barretos), mas os municípios foram a principal (ou a segunda) esfera jurídica de atuação médica nas regiões Carbonífera, Juazeiro, Baixada Cuiabana e Barretos. Em Petrolina e Manaus, o estado foi a esfera jurídica de maior concentração dos especialistas no SUS (Tabela 2).

A concentração da assistência especializada nos municípios polo das regiões

Chama a atenção a importância dos municípios polo na provisão de assistência regional de maior complexidade. A concentração de procedimentos ambulatoriais de MC nos municípios polo variou de 56,2% (Barretos) a 95,8% (Manaus), próxima à variação da concentração das internações hospitalares de 56,6% (Camaquã/Guaíba, na Carbonífera) a 95,3% (Manaus), sendo ainda mais elevada a concentração dos gastos (Tabela 3).

Tabela 3
Concentração em municípios polo (em %), da quantidade e dos gastos relativos à assistência de MAC do SUS, segundo regiões de saúde. Brasil, biênio 2015-2016.

Já em relação à AC ela foi exclusivamente (Manaus, Juazeiro e Petrolina) ou quase totalmente (Baixada Cuiabana, Barretos e Carbonífera) provida nos municípios polo dessas regiões, excetuando-se a assistência hospitalar, que não foi relatada na Carbonífera no biênio em estudo.

Assim como os procedimentos de MC e AC, os médicos especialistas também se concentravam nos municípios polos das regiões. Tal concentração foi um pouco menor nas regiões Carbonífera (64,6%) e de Barretos (72,4%), mas ultrapassou os 94% em todas as demais (Tabela 3).

Relações de poder e conflitos relativos à assistência especializada segundo atores regionais

O grau de influência dos prestadores de MAC nas decisões de saúde era alto nas cinco regiões, segundo os entrevistados (Tabela 4). Em todas elas, o prestador público se destacou, sendo que na Baixada Cuiabana, na Carbonífera e em Barretos tal influência era partilhada com o privado.

Tabela 4
Relações de poder e conflitos relativos à assistência especializada (MAC) segundo atores regionais. Brasil, biênio 2015-2016.

Em relação à dependência de serviços para organização da rede especializada, prevaleceu o compartilhamento público e privado, sendo este mais expressivo no que tange às consultas médicas e aos exames diagnósticos. Já nas internações, predominou o prestador público ou o privado. Entretanto, foram observadas diferenças entre as regiões: em Manaus o prestador público se sobressaiu nas consultas médicas e nas internações, enquanto nas regiões Carbonífera e Barretos o privado preponderou nos exames diagnósticos e internações.

Quanto à oferta, ela foi considerada pelos atores regionais como insuficiente e inadequada em todas as regiões em relação aos serviços de MAC e aos profissionais médicos. As exceções foram leitos gerais e serviços de apoio diagnóstico e terapêutico (SADT) de média complexidade em Barretos, percebidos como suficientes para maioria dos entrevistados. Por outro lado, o sistema logístico foi referido como suficiente, excetuando-se o sistema informatizado em quatro regiões (Baixada Cuiabana, Barretos, Carbonífera e Petrolina/Juazeiro) e o transporte sanitário na Carbonífera.

Quando considerados os conflitos regionais, dois tipos principais se destacaram, e se expressaram nas Comissões Intergestores Regionais (CIR): os intergovernamentais e aqueles provenientes das relações público-privadas. O conflito entre o município polo e os demais, a respeito de recursos financeiros, critérios de acesso e organização das redes, foi comum e relatado em todas as regiões. Com exceção da região Carbonífera, em todas as outras existiam também conflitos envolvendo as Secretarias Estaduais de Saúde (SES). Em Manaus e Barretos, os conflitos incluíam o Ministério da Saúde (MS) e em Petrolina/Juazeiro, também os municípios de fora da região.

Os conflitos resultantes das relações público-privadas ocorreram em todas as regiões, envolvendo gestores públicos e prestadores privados conveniados ou contratados ao SUS. Apenas na região de Petrolina/Juazeiro esse tipo de conflito abarcava também as operadoras de planos de saúde.

Discussão

Neste estudo, a comparação e análise conjunta dos resultados empíricos (fontes secundárias e primárias da pesquisa) permitiu identificar semelhanças e diferenças entre os casos, e tipificar os arranjos de governança observados (Tabela 5).

Tabela 5
Arranjos de governança regional, em face à assistência de MAC, segundo regiões de saúde. Brasil, biênio 2015 2016.

Em todas as regiões, verificou-se um modelo de governança multinível, que expressa interdependência de funções e recursos entre diversos entes governamentais,2525 Peters GB, Pierre J. Developments in intergovernmental relations: towards multi-level governance. Policy Polit. 2001; 29 (2): 131-5. com predominância da esfera estadual e/ou municipal na provisão e no gasto com serviços de MAC. Identificou-se, ainda, forte articulação entre o público e o privado na assistência especializada do SUS, e importante concentração regional nos municípios polo, que agregam um caráter híbrido e polarizado aos arranjos de governança, tornando ainda mais complexo o exercício da função regulatória das redes regionalizadas de atenção.

As diferenças encontradas sugerem maior participação pública, com destaque para o ente estadual, nas regiões situadas no Norte (Manaus) e Nordeste (Petrolina, e em menor intensidade Juazeiro) do país.

A esfera privada sobressaiu-se nas regiões localizadas no Sul (Carbonífera) e Sudeste (Barretos), sendo o ente municipal preponderante na assistência provida diretamente pelo Estado. Já na Baixada Cuiabana (Centro-Oeste), o ente público municipal mostrou-se especialmente relevante somente na MC. Por um lado, tal padrão expressa a tendência, já observada em outros trabalhos, de expansão do setor privado credenciado ao SUS em regiões com maior dinamismo econômico.2323 Albuquerque MV, Viana ALd'Á, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER, Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Ciênc Saúde Coletiva. 2017; 22 (4): 1055-64. Por outro, evidencia a divisão de responsabilidades estabelecidas entre os governos subnacionais no processo de descentralização do SUS e a relevância dos estados na provisão de serviços mais complexos em regiões com menor desenvolvimento econômico.77 Viana ALd'Á, Lima LD, Oliveira RG. Descentralização e federalismo: a política de saúde em novo contexto - lições do caso brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. 2002; 7 (3): 493-507.

Na pesquisa, chama a atenção a importância do privado na oferta de serviços ambulatoriais e hospitalares de gasto mais elevado, o que indica sua tendência de atuação em segmentos de atenção mais bem remunerados e valorizados por compradores de planos de saúde privados.2626 Santos MAB, Gerschman S. As segmentações da oferta de serviços de saúde no Brasil: arranjos institucionais, credores, pagadores e provedores. Ciênc Saúde Coletiva. 2004; 9 (3): 795-806. Conforme indicado pelos entrevistados, o grau de influência dos prestadores privados de MAC nas decisões de saúde era alto e partilhado com o setor público em algumas regiões. Tal aspecto reforça os achados de outros estudos que, aprofundando aspectos da contratualização e regulação do acesso, destacam o poder de influência do setor privado na governança regional.

A elevada dependência de serviços especializados, a insuficiência e inadequação da oferta assistencial (incluindo consultas especializadas, exames diagnósticos e internações), e a concentração da prestação e dos gastos nos municípios polos permitem compreender a atuação diferenciada dos prestadores públicos e privados nas regiões. Ressalta-se que a insuficiência de médicos especialistas tem sido um problema apontado em vários sistemas de saúde no mundo, sendo que, no caso brasileiro, tal questão é agravada pelas desigualdades na distribuição regional desses profissionais.3030 Scheffer M, Guilloux AGA, Matijasevich A, Massenburg BB, Saluja S, MD, MPP, Alonso N. The state of the surgical workforce in Brazil. Surgery. 2017; 161 (2): 556-61.

Particularmente, nos casos de Manaus e Petrolina/Juazeiro, a influência dos prestadores públicos pode ser explicada pela importância do ente estadual na provisão e gasto de MAC. Já a região Carbonífera distingue-se das demais por ser extremamente dependente e submetida à influência de prestadores localizados em outras regiões de saúde.

Segundo os entrevistados os sistemas logísticos informatizados eram insuficientes. Esses sistemas contribuem em todos os níveis da gestão da saúde e devem viabilizar tanto o funcionamento das redes regionalizadas de saúde, como, também, a produção de informações estratégicas e relevantes para as negociações e tomadas de decisão na política de saúde.2121 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª. Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011. A insuficiência do sistema informatizado em todas as regiões é preocupante, pois pode acarretar assimetria de poder na medida em que as instituições que produzem e detêm a informação não necessariamente a tornam acessível ou disseminada na região. Tal assimetria envolve diferentes esferas de governo, municípios polo e demais municípios e prestadores públicos e privados, e pode repercutir no grau de influência de cada participante nas decisões sobre saúde nas regiões.

A concentração de recursos assistenciais, financeiros e informacionais, nos municípios polo e em determinados entes governamentais e prestadores (públicos ou privados), está associada aos conflitos que marcam a governança nas regiões estudadas. Na maioria delas, as Secretarias Estaduais de Saúde (SES) se destacaram nos conflitos regionais, dada sua relevância na coordenação do processo regional e nos recursos e serviços que administram nessas regiões.

Algumas particularidades distinguem as regiões de estudo e fomentam arranjos diferenciados de governança, no que tange à assistência especializada. Baixada Cuiabana e Manaus são regiões que abrigam capitais estaduais, concentrando serviços de MAC e demandas por eles, tanto da região quanto do estado. Tal situação, para além de gerar o envolvimento de vários atores institucionais na governança regional, amplia o leque de conflitos, que, no caso de Manaus, inclui também o Ministério da Saúde.

O município polo da região de Barretos conta com um serviço de MAC de grande porte (filantrópico, vinculado ao SUS) que gera uma demanda ampliada em âmbito estadual, e mesmo nacional. Isto influencia a governança daquela região, com participação dos três entes estatais e, principalmente, do setor privado, onde atua a maioria dos especialistas. Não por acaso, é amplo o leque de atores envolvidos nos conflitos - intergovernamentais ou público-privados - nessa região.

Juazeiro e Petrolina, ao conformarem uma região interestadual (PEBA), têm no MS um ator importante para a governança regional, ainda que seu papel na provisão de serviços de MAC se concentre mais em Petrolina. Ambas são regiões distantes de outros centros urbanos que concentram recursos de MAC, contando com participação relevante das SES, mas também dos prestadores privados vinculados ao SUS, principalmente na assistência ambulatorial. O amplo espectro de conflitos relatados na região é reflexo da quantidade de atores envolvidos na prestação de serviços e na complexidade de gerenciá-los, numa região interestadual.

Já a região Carbonífera não contempla a capital de estado, não tem serviços de MAC de grande porte ou referência estadual/nacional e também não é isolada. Distingue-se das demais, entre outras características, por ser contígua à região de saúde Capital/Vale Gravataí, que engloba Porto Alegre, capital e principal centro de referência estadual para assistência especializada. Tal situação ajuda a entender o número baixo de atendimentos de assistência especializada (bastante dependente do setor privado) e de médicos especialistas. A limitada assistência de MAC, sob responsabilidade dos municípios e do setor privado vinculado ao SUS, e concentrada em dois municípios dessa região, sugere uma governança regional envolvendo um menor número de atores e explica os conflitos relatados.

Conforme apontado pelos resultados deste estudo, quando o foco é a assistência de MAC, são vários os arranjos de governança regional, com envolvimento de diversos atores, dependendo da região. Embora as conexões entre os atores e a variedade de relações seja a característica predominante, a base empírica explorada permite relacionar os principais atores da governança regional de MAC, nesta ordem: 1) município polo regional; 2) prestadores privados vinculados ao SUS; 3) governo municipal ou estadual; 4) governo federal.

A escassez e a ausência de uma distribuição uniforme de serviços refletem as desigualdades territoriais, aspecto que demarca o contexto da governança da assistência de MAC nas regiões de saúde do Brasil. Acrescenta-se o elevado grau de dependência regional em relação aos municípios polo e aos prestadores privados que impactam diretamente na arquitetura de poder e, portanto, nos arranjos de governança regional observados. Esse contexto resulta em disputas políticas por recursos escassos, tanto do ponto de vista das relações intergovernamentais, quanto das relações público-privadas, e, ainda, na concorrência público-privada para influenciar as decisões de saúde nas regiões.

Como síntese dos achados, a pesquisa também permitiu a identificação de três tipos de arranjos de governança regional na saúde (Tabela 5). O primeiro engloba o maior número de regiões - Baixada Cuiabana (MT), Barretos - Norte e Sul (SP) e Carbonífera/Costa Doce (RS) -, o segundo refere-se à região de Manaus/Alto Rio Negro (AM) e o terceiro às regiões de Petrolina (PE)/Juazeiro (BA). Nos três tipos, sempre existe interdependência governamental, sendo que as variações ocorrem em relação à importância da participação da esfera estadual e dos prestadores privados nas decisões de saúde na região.

A definição desses três tipos de arranjos sugerem algumas tendências do processo de reforma do Estado na saúde com influência sobre a governança regional do SUS: o peso da descentralização municipalista; a crescente influência do setor privado no que tange à provisão e ao gasto, mas também às decisões de saúde; as desigualdades nas relações de poder envolvendo municípios polos e não-polos, em decorrência do padrão de urbanização e da extrema concentração regional da provisão de serviços especializados em poucas cidades do país; e a importância da participação da esfera estadual na provisão e nos gastos com MAC, conferindo maior influência do setor público nas decisões sobre saúde em algumas regiões.

Por fim, algumas limitações deste artigo e seus potenciais efeitos devem ser mencionados: a) a base populacional para o cálculo dos indicadores que quantificam a produção de MAC e seus gastos foi a da região, que pode ser inferior àquela que, de fato, utiliza tais serviços, superestimando tais indicadores; b) a opção de investigar indivíduos e não vínculos, no caso dos médicos especialistas, embora seja mais adequada para quantificar esses profissionais, subdimensiona tal força de trabalho, dados os diversos vínculos e a circulação dos especialistas entre esferas jurídicas distintas; c) os entrevistados nos estudos de caso foram majoritariamente atores institucionais públicos, o que pode ter sobrevalorizado o papel do Estado.

No entanto, essas limitações não comprometem as inferências aqui efetuadas sobre a governança de MAC. A identificação dos atores e das características dos diversos arranjos - multiníveis, híbridos e polarizados -, com variações entre as regiões, é a principal contribuição desse estudo para a compreensão das tendências da governança regional da assistência especializada e dos desafios relacionados à regionalização no SUS.

References

  • 1
    Almeida C. Reforma do Estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e tendências de mudança. Ciênc Saúde Coletiva. 1999; 4 (2): 263-86.
  • 2
    Almeida C. Reforma de sistemas de servicios de salud y equidad en América Latina y el Caribe: algunas lecciones de los años 80 y 90. Cad Saúde Pública. 2002; 18 (4): 905-25.
  • 3
    Paim JS, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian Health System: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377: 1778-97.
  • 4
    Hochman G, Faria CAP, organizadores. Federalismo e políticas públicas no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013.
  • 5
    Costa FL. Reforma do Estado e contexto brasileiro: crítica do paradigma gerencialista. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010.
  • 6
    Viana ALd'Á, Machado CV. Descentralização e coordenação federativa: a experiência brasileira na saúde. Cien Saude Colet. 2009; 14(3): 807-817.
  • 7
    Viana ALd'Á, Lima LD, Oliveira RG. Descentralização e federalismo: a política de saúde em novo contexto - lições do caso brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. 2002; 7 (3): 493-507.
  • 8
    Dourado DA, Elias PEM. Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro. Rev Saúde Pública. 2011; 45 (1): 204-11.
  • 9
    Souza C. Governos e sociedades locais em contextos de desigualdades e de descentralização. Ciênc Saúde Coletiva. 2002; 7 (3): 431-42.
  • 10
    Campos GWS. Efeitos paradoxais da descentralização do Sistema Único de Saúde do Brasil. In: Fleury S, organizadora. Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV; 2006. p. 417-42.
  • 11
    Martins MIC, Molinaro A. Reestruturação produtiva e seu impacto nas relações de trabalho nos serviços públicos de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18 (6): 1667-76.
  • 12
    Bahia L. A démarche do privado e público no sistema de atenção à saúde no Brasil em tempos de democracia e ajuste fiscal, 1988-2008. In: Lima JCF, Matta GC, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: Contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 123-85.
  • 13
    Barbosa NB, Elias PEM. As organizações sociais de saúde como forma de gestão público/privado. Ciênc Saúde Coletiva. 2010. 15 (5): 2483-2495.
  • 14
    Ocké-Reis CO. SUS: o desafio de ser único. 1a Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.
  • 15
    Santos IS, Ugá MAD, Porto SM. O mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2008; 13 (5): 1431-40.
  • 16
    Rhodes RAW. The new governance: governing without government. Political Studies. 1996; XLIV: 652-67.
  • 17
    Stoker G. Governance as theory: five propositions. Int Soc Sci J. 1998; 50 (155): 17-28.
  • 18
    Marques EC. Government, political, actors and governance in urban policies in Brazil and São Paulo: concepts for a future research agenda. Braz Political Sci Rev. 2013; 7 (3): 8-35.
  • 19
    Jakubowski E, Saltman RB, editor. The changing national role in health system governance. A case-based study of 11 European countries and Australia. Brussels: The European Observatory on Health Systems and Policies/WHO; 2013.
  • 20
    Greer SL, Jarman H, Azorsky A. A reorganisation you can see from space: the architecture of power in the new NHS. London: Centre for Health and Public Organization; 2014.
  • 21
    Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2ª. Ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011.
  • 22
    Solla J, Chioro A. Atenção ambulatorial especializada. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho I, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 547-76.
  • 23
    Albuquerque MV, Viana ALd'Á, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER, Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Ciênc Saúde Coletiva. 2017; 22 (4): 1055-64.
  • 24
    Viana ALd'Á, Ferreira MP, Cutrim MAB, Fusaro ER, Souza MR, Mourão L, Chancharulo AP, Mota PHS. Política de regionalização do SUS em debate: avanços e impasses da implementação das regiões e redes no Brasil. Novos Caminhos [nota técnica online] 2017. [acesso em 29 mai 2017] 15:8p. Disponível em: http://www.regiaoeredes.com.br
    » http://www.regiaoeredes.com.br
  • 25
    Peters GB, Pierre J. Developments in intergovernmental relations: towards multi-level governance. Policy Polit. 2001; 29 (2): 131-5.
  • 26
    Santos MAB, Gerschman S. As segmentações da oferta de serviços de saúde no Brasil: arranjos institucionais, credores, pagadores e provedores. Ciênc Saúde Coletiva. 2004; 9 (3): 795-806.
  • 27
    Santos AM, Giovanella L. Governança regional: estratégias e disputas para gestão em saúde. Rev Saúde Pública. 2014; 48 (4): 622-31.
  • 28
    Almeida APS, Lima LD. O público e o privado no processo de regionalização da saúde no Espírito Santo. Saúde Debate. 2015; 39 (Spe): 51-63.
  • 29
    Romano CMC, Scatena JHG, Kehrig RT. Articulação público-privada na atenção ambulatorial de média e alta complexidade do SUS: atuação da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso. Physis. 2015; 25 (4): 1095-1115.
  • 30
    Scheffer M, Guilloux AGA, Matijasevich A, Massenburg BB, Saluja S, MD, MPP, Alonso N. The state of the surgical workforce in Brazil. Surgery. 2017; 161 (2): 556-61.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2017
  • Aceito
    20 Set 2017
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br