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Um olhar interdisciplinar sobre o trabalho das merendeiras terceirizadas de escolas estaduais do município de Campinas, SP

An interdisciplinary look at the work of outsourced school cooks from state schools in the city of Campinas, state of São Paulo, Brazil

Resumo

Introdução:

o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) do Brasil é um dos maiores do mundo, porém há poucos estudos que tenham por objeto os responsáveis por sua execução, em especial, as merendeiras.

Objetivo:

compreender a organização e as características do trabalho das merendeiras, assim como suas consequências, tanto para a implementação do programa de alimentação escolar quanto para as próprias trabalhadoras.

Métodos:

estudo qualitativo fundamentado na análise ergonômica do trabalho (AET). Os resultados foram discutidos à luz da ergonomia da atividade e da ciência política. Pesquisa realizada em 2017 com oito merendeiras terceirizadas alocadas em três escolas da rede pública estadual em Campinas (SP).

Resultados:

caracterizou-se o trabalho das merendeiras, seus desafios e desdobramentos. Desvelaram-se as dificuldades da realidade enfrentada nas cozinhas escolares, os principais mecanismos de enfrentamento desenvolvidos por elas para lidar com as demandas do trabalho prescrito pelas instâncias de controle e para viabilizar o trabalho nas condições que lhes são propiciadas. Discutiu-se o papel importante, embora não suficientemente reconhecido, desempenhado por essas profissionais na implementação do PNAE.

Conclusão:

o duplo olhar teórico possibilitou reconhecer a presença do coping no cotidiano dessas trabalhadoras e permitiu evidenciar os problemas gerados pela terceirização e pela desvalorização do saber prático.

Palavras-chave:
alimentação escolar; assistência alimentar; saúde do trabalhador

Abstract

Introduction:

the National School Feeding Program (PNAE), in Brazil, is one of the largest in the world. However, only few studies focus on those who are responsible for its execution, in particular, the school cooks.

Objective:

to understand the organization and the characteristics of the cooks’ work and their consequences, both for the implementation of the school feeding program and for the workers themselves.

Methods:

qualitative study based on ergonomic work analysis (EWA). The results were discussed according to activity ergonomics and political science. This study, conducted in 2017, involved eight outsourced cooks allocated to three state schools of Campinas public network, in the state of São Paulo, Brazil.

Results:

the cooks’ work was characterized, along with its challenges and developments. The study unveiled the reality faced in school kitchens. We identify the main coping mechanisms developed by the workers to deal with the work prescribed demands and to make it feasible according to the conditions offered to them. We discuss the important role, although not sufficiently recognized, played by these professionals in the implementation of the PNAE.

Conclusion:

the double theoretical view made it possible to recognize how coping is present in these workers’ daily lives and made it possible to highlight the problems generated by outsourcing and the devaluation of practical knowledge.

Keywords:
school feeding; food assistance; occupational health

Introdução

Considerado um dos maiores programas de alimentação escolar do mundo11. Brasil, Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Histórico [Internet]. Brasília: Ministério da Educação; 2021 [citado em 5 maio 2021]. Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/pnae/pnae-sobre-o-programa/pnae-historico
https://www.fnde.gov.br/index.php/progra...
, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) começou a ser pensado a partir da década de 193022. Coimbra M, Meira JFP, Starling MBL. Comer e aprender: uma história da alimentação escolar no Brasil. Belo Horizonte: Inaê; 1982.. Sendo um dos principais pilares do Programa Fome Zero, a política de alimentação escolar no Brasil visa a suplementação nutricional dos estudantes durante o período escolar, desempenhando importante papel tanto no processo de aprendizagem quanto no desenvolvimento dos alunos33. Belik W, Chaim NA. O programa nacional de alimentação escolar e a gestão municipal: eficiência administrativa, controle social e desenvolvimento local. Rev Nutr. 2009;22(5):595-607..

Após passar por diferentes modelos de gestão, o Brasil conta atualmente com um programa descentralizado, fortalecido e reconhecido internacionalmente como exemplo a ser seguido por outros países. Dentre os avanços proporcionados pela Lei nº 11.947/09, destacam-se a universalização do PNAE, que passou a atender também alunos do ensino médio e ensino de jovens e adultos (EJA); a definição da educação alimentar e nutricional como eixo prioritário para o alcance dos objetivos do programa; e a parceria com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o que resulta na obrigatoriedade, por parte dos estados e municípios, em gastarem no mínimo 30% dos recursos provenientes do governo federal na aquisição de alimentos da agricultura familiar44. Peixinho AML. A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período de 2003-2010: relato do gestor nacional. Cienc Saude Colet. 2013;18(4):909-16.. Ocorre que, dentre todas as conquistas do PNAE já amplamente difundidas também por pesquisas científicas22. Coimbra M, Meira JFP, Starling MBL. Comer e aprender: uma história da alimentação escolar no Brasil. Belo Horizonte: Inaê; 1982.), (44. Peixinho AML. A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período de 2003-2010: relato do gestor nacional. Cienc Saude Colet. 2013;18(4):909-16.), (55. Mazzilli RN. A merenda no dia alimentar de crianças matriculadas em Centros de Educação e Alimentação do Pré-escolar. Rev Saude Publ. 1987;21(4):317-25.), (66. Spinelli MAS. Alimentação escolar: da centralização à descentralização [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas; 1997.), (77. Nunes B. O sentido do trabalho para merendeiras e serventes em situação de readaptação nas escolas públicas do Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz; 2000.), (88. Carvalho AT, Muniz VM, Gomes JF, Samico, I. Programa de alimentação escolar no Município de João Pessoa, Brasil: as merendeiras em foco. Interface Comun Saude Educ. 2008;12(27):823-34.), (99. Takahashi MABC, Pizzi CR, Diniz EPH. Nutrição e dor : o trabalho das merendeiras nas escolas públicas de Piracicaba: para além do pão com leite. Rev Bras Saude Ocup. 2010;35:362-73.), (1010. Assao TY, Westphal MF, Bógus CM, Cervato-Mancuso AM. Alimentação do escolar: percepção de quem prepara e oferece as refeições na escola. Segur Aliment Nutr. 2012;19(1);22-32.), (1111. Caldas EL, Ávila ML. Continuidade de políticas públicas e o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Espaco Acad. 2013;13(148):77-84., poucos são os estudos que se debruçaram sobre o trabalho desempenhado por seus agentes implementadores.

Desta forma, entendemos ser oportuno e pertinente discutir a organização do trabalho das merendeiras terceirizadas e suas principais atividades, as influências da gestão municipal na organização deste trabalho, assim como as consequências da sua implantação para o programa e para os sujeitos envolvidos, tomando como referência o município de Campinas (SP). Nesse sentido, nos propusemos a identificar como se dá tanto o trabalho prescrito (idealizado na política) como o trabalho real (atividade) praticado na implementação do PNAE a partir de uma nova abordagem, que parte de um duplo referencial teórico para compreender como acontece o enfrentamento das demandas e conflitos na linha de frente da prestação desse serviço. Buscamos no campo da ergonomia da atividade1212. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001.), (1313. Abrahão J, Sznelwar L, Silvino A, Sarmet M, Pinho D. Introdução à ergonomia: da prática à teoria. São Paulo: Blucher; 2009. os conceitos de trabalho, tarefa (trabalho teórico ou prescrito) e atividade (trabalho real efetivamente realizado de acordo com as características do contexto e das condições físicas, mentais e psicoafetivas dos trabalhadores), que nos auxiliaram nesta discussão, uma vez que os estudos nesse campo têm como propósito o estudo do trabalho vivo, in loco, isto é, durante sua execução. Ainda com o mesmo propósito, buscamos também analisar o trabalho das merendeiras por meio do campo da ciência política1414. Lima LL, D'Ascenzi L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Rev Sociol Polit. 2013;21(48):101-10.), (1515. Lotta GS. Agentes de implementação: uma forma de análise de políticas públicas. Cad Gest Publica Cid. 2014;19(65):186-206.), (1616. Ferreira VRS, Medeiros, JJ. Fatores que moldam o comportamento dos burocratas de nível de rua no processo de implementação de políticas públicas. Cad EBAPE BR. 2016;14(3):776-93.), (1717. Lotta GS; Pavez TR. Agentes de implementação: mediação, dinâmicas e estruturas relacionais. Cad Gest Publica Cid. 2010;15(56):109-25.), (1818. Arretche MTS. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: Barreira MCRN, Carvalho MCB, editores. Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: PUC-SP, 2001. p. 43.), (1919. Tummers LLG, Bekkers V, Vink E, Musjemp M. Coping During Public Service Delivery: A Conceptualization and Systematic Review of the Literature. J Public Adm Res Theory. 2015;25(4):1099-126.), (2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010., utilizando os conceitos de burocracia de nível de rua2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010. e de coping1919. Tummers LLG, Bekkers V, Vink E, Musjemp M. Coping During Public Service Delivery: A Conceptualization and Systematic Review of the Literature. J Public Adm Res Theory. 2015;25(4):1099-126..

Assim, este estudo teve como objetivo compreender a organização e as características do trabalho das merendeiras e seus desdobramentos tanto para a implementação do programa de alimentação escolar, quanto para as próprias trabalhadoras.

Métodos

Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, realizada no ano de 2017, em três diferentes escolas da rede estadual, localizadas no município de Campinas (SP), denominadas aqui como Escola A, B e C. Para a escolha das unidades escolares participantes da pesquisa, buscaram-se escolas da mesma rede de ensino (estadual), que oferecessem o mesmo grau de ensino (fundamental II e médio) e que concordassem em participar da pesquisa.

A pesquisa foi dividida em duas fases, sendo a primeira realizada na Escola A e a segunda nas Escolas B e C. Cada merendeira foi identificada com a sigla da escola, seguida de seu número de identificação, ou seja, a sigla EAM1 se refere à merendeira 1 da Escola A.

Na primeira fase, ocorrida durante o segundo semestre de 2017, foram utilizadas algumas etapas do método de análise ergonômica do trabalho (AET). A AET é um método aberto e sem modelo de ação predeterminado, o que possibilita a utilização de diferentes ferramentas, uma vez que sua escolha é feita em função das peculiaridades dos problemas que surgem durante sua aplicação2121. Gil AC. Estudo de caso. São Paulo: Atlas; 2009.. Assim, neste estudo utilizou-se uma adaptação do método visando a construção do caminho que conduzisse a pesquisa para o mais próximo dos objetivos propostos, não aplicando-se na íntegra suas etapas. A adaptação da AET realizada na primeira fase da pesquisa (Escola A) se deu por meio da concretização das etapas descritas na Figura 1.

Figura 1
Etapas da adaptação do método de Análise Ergonômica do Trabalho realizadas na primeira fase da pesquisa (Escola A)

Nessa fase, foram realizadas entrevistas abertas em que os entrevistados puderam escolher livremente como responder as questões, cuja sequência era predeterminada2121. Gil AC. Estudo de caso. São Paulo: Atlas; 2009.. Foram entrevistadas todas as merendeiras; a diretora; a vice-diretora; a nutricionista supervisora da empresa terceirizada e da Ceasa Campinas, conforme suas competências. Foram realizadas também a análise da tarefa e da atividade, observações globais e abertas do trabalho das merendeiras e consultas a documentos, conforme explicitado na Figura 1.

Dentre os objetivos da primeira fase desta pesquisa, estavam a coleta de informações relacionadas à unidade escolar estudada, o levantamento das características socioeconômicas das merendeiras alocadas na referida escola, o entendimento da forma segundo a qual é organizado o trabalho na cozinha escolar e a identificação das principais atividades realizadas pelas merendeiras.

Mediante os dados coletados na primeira fase, elegeram-se as seguintes categorias analíticas: perfil das escolas participantes; perfil socioeconômico das merendeiras alocadas nessas escolas; aspectos da organização do trabalho; e mecanismos de enfrentamento desenvolvidos pelas merendeiras. Tais categorias foram observadas na segunda fase da pesquisa, junto às escolas B e C.

Na segunda fase da pesquisa, ocorrida também no segundo semestre de 2017, além da coleta de informações relacionadas à essas unidades escolares e do levantamento das características socioeconômicas das merendeiras, foram realizadas entrevistas abertas com todas as merendeiras e com a direção escolar. Também foram feitas observações globais e abertas da atividade, conforme previsto pela metodologia da análise ergonômica do trabalho1313. Abrahão J, Sznelwar L, Silvino A, Sarmet M, Pinho D. Introdução à ergonomia: da prática à teoria. São Paulo: Blucher; 2009., com foco nas categorias eleitas como prioritárias pelas merendeiras para superar as dificuldades do trabalho.

A realização da segunda fase da pesquisa nos permitiu compreender as formas de organização do trabalho, as estratégias criadas no desenrolar das atividades e seus desdobramentos nas diferentes escolas estudadas. Para a discussão dos resultados, optou-se por um duplo olhar: o da ergonomia da atividade e o da ciência política.

Para o campo da ergonomia da atividade, é fundamental diferenciar os termos tarefa e atividade de trabalho, uma vez que seu principal objetivo é conhecer o trabalho real ao se levar em consideração os elementos que o influenciam. Desta forma, podemos definir a tarefa sob dois aspectos. Primeiro, como um conjunto de prescrições definidas pela empresa e passadas aos operadores, com o objetivo de atingir metas pré-estabelecidas Segundo, a partir da necessidade de se criar métodos de gestão que viabilizem a definição e medição da produtividade decorrentes da relação entre os gestos dos operadores e as ferramentas e dispositivos técnicos disponíveis. Logo, a tarefa “é um resultado antecipado, fixado dentro de condições pré-determinadas”1212. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001.) (p. 14) e, por isso, não pode ser definida como sinônimo de trabalho.

A atividade, também conhecida como trabalho real, é entendida como a maneira por meio da qual os resultados são obtidos e os meios de produção são utilizados pelo operador. Na atividade, leva-se em conta as condições reais e os resultados efetivos, analisando-se as estratégias, tanto físicas quanto psíquicas, utilizadas pelos trabalhadores para alcançar os objetivos propostos. A construção de tais estratégias decorre de uma combinação de diferentes níveis de organização da atividade humana, como a sequência de busca de informações e de ações que são integradas num planejamento de conjunto ligado às intenções do operador e podem trazer consequências tanto para sua saúde quanto para a produção. Além disso, as estratégias colocam em evidência as competências desenvolvidas pelo sujeito em ação, frequentemente não reconhecidas pelas empresas e organizações1212. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001..

Para discutir o trabalho das merendeiras a partir do referencial da ciência política1414. Lima LL, D'Ascenzi L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Rev Sociol Polit. 2013;21(48):101-10.), (1515. Lotta GS. Agentes de implementação: uma forma de análise de políticas públicas. Cad Gest Publica Cid. 2014;19(65):186-206.), (1616. Ferreira VRS, Medeiros, JJ. Fatores que moldam o comportamento dos burocratas de nível de rua no processo de implementação de políticas públicas. Cad EBAPE BR. 2016;14(3):776-93.), (1717. Lotta GS; Pavez TR. Agentes de implementação: mediação, dinâmicas e estruturas relacionais. Cad Gest Publica Cid. 2010;15(56):109-25.), (1818. Arretche MTS. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: Barreira MCRN, Carvalho MCB, editores. Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: PUC-SP, 2001. p. 43.), (1919. Tummers LLG, Bekkers V, Vink E, Musjemp M. Coping During Public Service Delivery: A Conceptualization and Systematic Review of the Literature. J Public Adm Res Theory. 2015;25(4):1099-126.), (2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010., utilizamos nesta pesquisa dois conceitos fundantes: burocratas de nível de rua e coping2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010.. Uma vez que as políticas públicas operam por intermédio de sistemas complexos de tomada de decisão, também denominadas ciclo de políticas públicas, elas podem metodologicamente ser divididas em formulação, implementação e avaliação1515. Lotta GS. Agentes de implementação: uma forma de análise de políticas públicas. Cad Gest Publica Cid. 2014;19(65):186-206.. O burocrata de nível de rua desempenha o papel de implementador das políticas públicas, sendo os atores que estão na linha de frente entre o Estado e a população e que, por isso, acabam se utilizando da discricionariedade nas suas tomadas de decisão.

Para Lotta1515. Lotta GS. Agentes de implementação: uma forma de análise de políticas públicas. Cad Gest Publica Cid. 2014;19(65):186-206., a discricionariedade dos burocratas de nível de rua está

em determinar a natureza, a quantidade e a qualidade dos benefícios e as sanções fornecidas por sua agência. Assim, mesmo que dimensões políticas oficiais moldem alguns padrões de decisão, bem como as normas comunitárias e administrativas, os agentes ainda conseguem ter autonomia para decidir como aplicá-las e inseri-las nas práticas da implementação, É, em parte, no exercício da discricionariedade dos agentes implementadores que as políticas públicas são alteradas e reconstruídas. (p. 191)

Segundo Arretche1818. Arretche MTS. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: Barreira MCRN, Carvalho MCB, editores. Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: PUC-SP, 2001. p. 43., na gestão de programas públicos, é grande a distância entre os objetivos e o desenho do programa tal como concebido por seus formuladores originais. Isso tem como consequência as grandes diferenças quando se compara a forma das políticas no momento de sua formulação com a de sua implementação.

Já o conceito de coping é entendido como os esforços, tanto cognitivos como comportamentais, que as pessoas envolvidas com o processo de trabalho precisam fazer para dar conta das demandas e conflitos internos e externos do cotidiano2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010..

A realização deste estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas sob o nº 69283117.7.0000.5404, em 29/06/2017.

Resultados e discussão

No município de Campinas, estado de São Paulo, o processo de descentralização do programa de alimentação escolar ocorreu no ano de 1984. Atualmente, a gestão do programa ocorre de forma compartilhada, por meio de um convênio entre a Secretaria Municipal de Educação (SME) e a Centrais de Abastecimento de Campinas (Ceasa Campinas)2222. Nogueira RM. O Programa Nacional de Alimentação Escolar como uma Política Pública: o caso de Campinas - SP. [dissertação]. Campinas: Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas; 2005., conforme observado no Quadro 1.

Quadro 1
Competências na gestão compartilhada do Programa Municipal de Alimentação Escolar no município de Campinas (SP)

No programa são distribuídas diariamente cerca de 60 toneladas de alimentos, que garantem a produção de aproximadamente 265 mil refeições em cerca de 601 unidades escolares, dentre elas, escolas da rede municipal, estadual, salas de aula de EJA e em núcleos assistenciais2323. Centrais de Abastecimento de Campinas. Alimentação Escolar [Internet]. Campinas: CEASA; 2017 [citado em 6 jun 2017]. Disponível em: http://www.ceasacampinas.com.br/programas-sociais/alimentacao-escolar
http://www.ceasacampinas.com.br/programa...
. Segundo a Base Serviços, empresa de terceirização de serviços, então responsável pela contratação das merendeiras em Campinas, o quadro de merendeiras era composto, na ocasião do estudo, por 1.012 profissionais, alocadas em 351 unidades escolares da rede municipal e estadual.

As merendeiras desempenham suas funções nas cozinhas escolares, sendo responsáveis pelo preparo dos alimentos que serão distribuídos aos alunos. A tarefa inclui as seguintes funções: recebimento dos insumos que serão utilizados na cozinha, pré-preparo e preparo dos alimentos que serão servidos e higienização do local de trabalho. Ocorre que, nesta pesquisa, revelaram-se muitas outras as funções e responsabilidades destas profissionais, levando-se em conta as diferentes realidades de cada unidade escolar estudada e a forma como a gestão do programa de alimentação escolar de Campinas está organizada. Como resultado, há a constatação de diferentes modos de implementação do programa e diferentes estratégias operatórias, o que evidencia as estratégias e adaptações realizadas pelas merendeiras (coping) para fazer frente às demandas do trabalho real.

Perfil das escolas participantes da pesquisa

As unidades escolares estudadas apresentaram diferentes realidades quanto ao programa de alimentação escolar. Na escola A, localizada na região noroeste do município de Campinas, era servida apenas uma refeição por período de aula. Já nas escolas B e C, localizadas nas regiões leste e central, respectivamente, além da alimentação de cada período, era servido o almoço, que poderia ser consumido tanto pelos alunos do período matutino quanto pelos do vespertino. A escola C ainda oferece a opção de café da manhã aos alunos do período matutino, justificando esta refeição pelo fato da maioria dos alunos morarem distante da escola.

Ao analisarmos a proporção de merendeiras em relação ao número de refeições servidas nas diferentes escolas (Tabela 1), também nos deparamos com distintas realidades. Essa proporção varia de 180 refeições/dia/trabalhadora na escola A para 80 na escola C. Tais resultados nos mostram discrepância em relação ao volume de trabalho das merendeiras nas diferentes escolas, o que significa pensar em um desgaste diferenciado no trabalho.

Tabela 1
Principais características das escolas estaduais pesquisadas em Campinas (SP), 2017

Pode-se perceber a forte presença de mulheres compondo esse contingente de merendeiras, em conformidade com o discutido por Kérgoat2424. Kérgoat D. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: Hirata H, Laborie F, Doaré HL, Senotier D. Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Edunesp; 2009. quando elabora o conceito de divisão sexual de trabalho, que atrela os trabalhos domésticos, reprodutivos e de menor reconhecimento às mulheres. A dupla jornada de trabalho, assim como o trabalho doméstico exercido pela maior parte das entrevistadas, reafirma os achados na literatura sobre o trabalho feminino na sociedade contemporânea2525. Molinier P. Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo: um itinerário interdisciplinar, 1988-2002. Producao. 2004;14(3):14-26.. Quando questionadas em relação a realização de atividades domésticas, obtivemos a seguinte resposta:

Muitas (risos), ahhh, roupa para passar, limpar casa […] tudo, a gente faz de tudo um pouco, sai daqui vai direto na rotina […] sai daqui do serviço e já começa fazer tudo novamente […] é cansativo. (EAM1)

Sete mulheres cis e uma mulher trans compunham o total de merendeiras, todas terceirizadas, nas 3 unidades participantes do estudo. A faixa etária das trabalhadoras se mostrou heterogênea, variando de 25 a 65 anos; quanto à escolaridade, quatro possuíam ensino médio completo e uma ensino superior, as demais com menor escolaridade; em relação ao tempo de experiência, seis possuíam menos de três anos na profissão, o que reafirma a rotatividade presente nos trabalhos terceirizados.

Aspectos da contratação das merendeiras no município de Campinas (SP)

As merendeiras são prestadoras de serviços, funcionárias da empresa de terceirização de recursos humanos cuja contratação ocorre por processo licitatório. Essas empresas firmam contrato com a Ceasa Campinas e, posteriormente, direcionam as profissionais para a prestação do serviço nas escolas.

Como consequência da terceirização, temos uma maior rotatividade das profissionais nos postos de trabalho, menor tempo de treinamento e menores salários, reafirmando o que foi defendido por Antunes e Druck2626. Antunes R, Druck G. A terceirização como regra? Rev Trib Super Trab. 2013;79(4):214-31.. Ao olharmos para o tempo de experiência das merendeiras, notamos que quatro estão na profissão há menos de três meses, muito embora as que estão a mais tempo no cargo tenham relatado terem trocado de empresa terceirizada por diversas vezes em virtude do término ou do rompimento de contratos junto à Ceasa Campinas.

Nesses 18 anos, eu mudei nove vezes de empresa! Só a primeira empresa fez o acerto, o restante eles transferiram os funcionários de uma empresa para outra […] é tudo a mesma empresa, eles mudam só a razão social […] (EBM2).

Segundo Antunes e Druck2626. Antunes R, Druck G. A terceirização como regra? Rev Trib Super Trab. 2013;79(4):214-31., Krein e Castro2727. Krein JD, Castro B. As formas flexíveis de contratação e a divisão sexual do trabalho. São Paulo; Friedrich Ebert Stiftung Brasil; 2015. e Nogueira2828. Nogueira CM. A terceirização das mulheres no setor público: algumas notas introdutórias. In: Navarro VL, Lourenço EAS, editores. O avesso do trabalho IV: terceirização, precarização e adoecimento no mundo do trabalho. São Paulo: Outras Expressões; 2017. p. 332., ao analisarmos a terceirização atrelada à questão de gênero, as mulheres estão submetidas a condições de trabalho mais inseguras, com maior rotatividade, pouca exigência de qualificação, trabalhos repetitivos, descumprimento dos direitos trabalhistas e forte inserção no segmento de prestação de serviços, fatores que caracterizam a precarização desse tipo de contratação.

Aspectos da seleção das merendeiras no município de Campinas (SP)

A preferência por contratação de merendeiras que residam próximo ao local de trabalho é avaliada como benéfica tanto para o empregador quanto para as contratadas. Se, para o empregador, o fato da contratada não utilizar vale-transporte a torna mais atrativa economicamente, para as merendeiras, o fato de trabalharem perto de casa possibilita que elas possam se dividir entre o trabalho laboral e as obrigações domésticas.

Segundo relatos das próprias profissionais, no momento da contratação não há exigência de experiência profissional anterior como merendeira ou cozinheira, o que demanda que as profissionais criem estratégias de sobrevivência frente ao trabalho, como se orientar com a parceira de trabalho que tenha mais experiência ou realizar o trabalho por meio da tentativa e erro. Tais evidências empíricas explicitam como o coping se manifesta desde os primeiros dias de trabalho como forma de enfrentar o que não foi prescrito pela organização do trabalho.

O modelo de treinamento oferecido para as merendeiras reafirma o desenvolvimento das estratégias acima expostas. Na opinião das trabalhadoras mais antigas, em todo treinamento são ditas as mesmas coisas, sem haver a transmissão de algum conteúdo significativo que poderia favorecer a realização do trabalho.

Aspectos financeiros do programa de alimentação escolar das escolas estaduais situadas no município de Campinas (SP)

Ainda que o programa de alimentação escolar no município de Campinas seja financiado pelos governos federal, estaduais e municipais, tais verbas são destinadas principalmente para compra de insumos alimentares, o que ocorre de modo exclusivo, no caso das verbas estaduais e federais. Uma vez que esta pesquisa foi realizada em escolas estaduais, as dificuldades frequentemente relatadas pelos burocratas de nível de rua, como o fato de os recursos serem geralmente insuficientes para o desenvolvimento das tarefas propostas, também se fez presente nesta pesquisa. A falta de recursos específicos para investimentos em infraestrutura das cozinhas e para compra e manutenção dos equipamentos e utensílios necessários se apresentou como uma realidade capaz de afetar diretamente o trabalho das merendeiras.

Olha, vou pôr ruim para não colocar péssimo, porque se for para a gente ver tudo, tudo que precisa, tá bem precário. Tudo que precisa a gente não tem […] bacias, jarra para leite. Tem uma jarra para pegar e pra servir para toda essa gente, a gente pede, pede, a diretora não compra. Tá faltando um picador, o que tem está quebrado há três meses. O descascador tem o manual porque nós trouxemos de casa. Descascador elétrico nunca teve. O liquidificador está “pifando”, o fogão está vazando gás e “pretejando” as panelas. Já pedimos para comprar um amolador de facas e até agora nada […] as colheres estão acabando, faz tempo que estamos pedindo colher, as crianças comem arroz doce com garfo […] (EAM2).

Considerando que o trabalho na cozinha implica em muitos esforços repetitivos, o que implica risco para o desenvolvimento de doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho, a falta de investimentos em ferramentas adequadas que auxiliem na realização das atividades pode se tornar um agravante dessa situação.

Aspectos da gestão municipal no programa de alimentação escolar de Campinas (SP)

Como dito anteriormente, o programa de alimentação escolar é gerenciado de forma compartilhada, tendo a Secretaria Municipal de Educação e a Ceasa Campinas como responsáveis pela gestão do programa, conforme o Quadro 1.

A supervisão das merendeiras é realizada por uma tripla chefia, formada por nutricionistas da Ceasa Campinas (responsáveis pelo abastecimento dos insumos), por nutricionistas da empresa terceirizada (responsáveis pela contratação das merendeiras e pela supervisão das boas práticas de higiene) e pelas diretoras escolares. Ainda que as diretoras não tenham um papel oficialmente definido em relação a estas trabalhadoras, elas são responsáveis pela gestão da escola onde as cozinhas estão inseridas. Esta relação pode ser melhor visualizada a partir da Figura 2, que traz o papel dos diferentes atores envolvidos na supervisão do trabalho das merendeiras e suas principais atribuições.

Figura 2
Papel das diferentes chefias das merendeiras

Na forma como está organizada a gestão compartilhada, entendemos que o trabalho das merendeiras está tanto subordinado a duas supervisoras oficiais, como a diretora da escola, de forma não oficial.

EAM1: Nós temos duas supervisoras, a da Ceasa e a da nossa da empresa […]

Entrevistador: E como é ter duas?

EAM1: (risos) […] complicado, cada uma fala uma coisa […].

Segundo Guérin et al.1212. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2001., a construção do trabalho recorre a uma combinação de diferentes níveis de organização da atividade humana, como a sequência de busca de informações e de ações bastante integradas. No caso aqui exposto, os aspectos do trabalho das merendeiras que são de responsabilidade de uma supervisora interferem no das outras e vice-versa, tornando-se impossível caracterizar tal divisão de modo estrito sem levar em conta as contradições que possam ocorrer. Como resultado desta divisão, temos a falta de referência de chefia como um complicador na realização do trabalho, uma vez que, segundo as merendeiras, cada uma das chefias atribui valores e peso diferentes para diferentes tarefas, ficando as subordinadas muitas vezes sem saber a quem seguir.

A exigência que as merendeiras desempenhem trabalho burocrático, como o preenchimento de muitas planilhas de controle, revela um aspecto da prescrição do trabalho que é visto pelas merendeiras de forma negativa no que tange a gestão do programa. Segundo as trabalhadoras, as dificuldades com as planilhas são inúmeras: desde a falta de tempo e a falta de entendimento de como elas devem ser preenchidas, até a incompreensão quanto à importância de tais planilhas e a ausência de reconhecimento desta atividade como parte do escopo de seu trabalho.

Eu acho que é muita cobrança com essas planilhas […] nós somos merendeiras, nós não somos secretarias, a gente acaba fazendo uma contabilidade […] eu acho que deveria ser mais enxuto […] elas nem levam esses papéis! Na minha opinião, fazer a comida, servir uma boa comida é mais importante para o papel da merendeira do que preencher planilha! Eu tenho dó das outras merendeiras, elas não entendem essas planilhas e se sentem inferiores. (EBM1)

Quanto à refeição servida, a maioria das merendeiras entrevistadas considera a qualidade dos alimentos recebidos ruim, o que, segundo elas, dificulta o próprio trabalho e gera tanto reclamações por parte dos alunos como desperdício de alimento. Elas relataram sentir-se envergonhadas em servir determinados alimentos. Segundo Lipsky2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010., habitualmente os burocratas de nível de rua afirmam não estarem satisfeitos com a qualidade dos serviços prestados à população. Nesse sentido, conforme relatos das merendeiras, elas gostariam de servir uma refeição de melhor qualidade aos alunos, pois fazem o que conseguem dentro daquilo que está disponível, reforçando o conceito de coping empregado na pesquisa.

Este ano está bem fraca a merenda […] até o hortifruti nós estamos achando estranho […] vem muita pouca coisa […] às vezes é só acelga, acelga, acelga […] isso complica demais, fica difícil para gente trabalhar […] não tem, como vai fazer? Igual hoje, a cenoura que tinha, tivemos que dividir para os três períodos, era muito pouca […] pra não servir o arroz puro […] para eles que mandam (CEASA) é fácil, mas para quem está aqui na hora de fazer é que fica estranho […] (EAM2).

Ainda que a qualidade da alimentação escolar servida não seja totalmente aprovada pelas merendeiras, o aspecto de imprevisibilidade da demanda pelos serviços públicos, conforme discutido por Lipsky2020. Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 30. ed. New York: Russell Sage Foundation; 2010., foi observado nas três escolas. Percebeu-se que a demanda pelo serviço aumenta de acordo com a qualidade do cardápio oferecido e que há uma preocupação, por parte das merendeiras, com a quantidade de alimento a ser preparado.

Eu, quando entrei, não sabia o quanto servir para eles […] no treinamento disseram “o aluno é seu cliente” […] então, eu pensei: se o aluno quiser 10 pães eu sirvo? Eu tive dificuldade […] mas agora é assim, o suco individual é um para cada um […] eles querem mais, mas não tem […] (EBM1).

O recebimento dos gêneros alimentícios não se mostrou uma tarefa simples de ser realizada. O fato de as entregas chegarem, por exemplo, no momento da distribuição da refeição se apresentou como um complicador, uma vez que as merendeiras precisam se dividir entre as atividades de receber e conferir os insumos e de distribuir a alimentação aos alunos. O tempo reduzido que os entregadores têm para realizar as entregas também dificulta a realização da atividade, não permitindo que as merendeiras consigam fazer a conferência adequada das mercadorias das quais elas são as responsáveis e pelas quais serão cobradas caso recebam alimentos de quantidade ou qualidade inadequados.

O fato de as merendeiras não conhecerem o PNAE e suas estratégias, ainda que elas sejam agentes implementadores do programa, chamou atenção dos pesquisadores, que atrelaram este problema com a falha na comunicação entre as merendeiras e as supervisoras, com a baixa qualidade dos treinamentos recebidos pelas trabalhadoras e com o fato de serem terceirizadas e terem alta rotatividade do emprego.

Aspectos das estratégias operacionais desenvolvidas pelas merendeiras

A principal estratégia operacional (coping) desenvolvida pelas merendeiras é a modificação do cardápio oficial. Nota-se que sua mudança é frequente e, na grande maioria das vezes, necessária para que as trabalhadoras consigam de fato servir a alimentação escolar para os alunos da melhor maneira possível e dentro das condições reais de trabalho.

Dentre as causas para as habituais mudanças de cardápios, podemos citar: a falha na distribuição dos insumos, seja por falta de determinado alimento no estoque central, por excesso de determinado alimento no estoque da escola ou por entrega de alimento em quantidade insuficiente; o vencimento de alimentos estocados; a curta vida útil dos insumos; a falta de determinados equipamentos e utensílios para o preparo de alguns alimentos; e, até mesmo, o fato de os alunos ou as próprias merendeiras não gostarem de determinadas preparações.

Destaca-se que as merendeiras são orientadas e cobradas para seguir estritamente o cardápio oficial (trabalho prescrito), o que pode gerar nelas a sensação de desconforto por não conseguirem atender à importante prescrição feita por especialistas (nutricionistas). Conforme descrito por Dejours2929. Dejours C. Conferências brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. São Paulo: Fundap; 1999., esse desconforto decorre da transgressão a contragosto, realizada para fazer o trabalho dar certo (trabalho real), mas que pode ser mal interpretada pelos gestores por violar regras fundamentais da tarefa.

Desta forma, mesmo se as merendeiras dispusessem de todos os ingredientes do cardápio oficial em quantidade e qualidade adequada, de equipamentos e utensílios necessários e do tempo suficiente para o preparo, a idealização de que os cardápios seriam seguidos diariamente se mostra utópica, o que reforça as diferenciações entre as ideias de trabalho prescrito e de trabalho real.

A forma de preenchimento das planilhas de controle também se mostrou como uma importante estratégia operacional desenvolvida pelas merendeiras, uma vez que, para dar conta da tarefa a elas designada, acabam realizando preenchimento de dados diários com periodicidade semanal. Talvez uma reavaliação da real importância das muitas planilhas exigidas pela gestão pudesse resultar na redução do número de documentos, com informações mais claras, precisas e que demandassem menor tempo de preenchimento.

Levando-se ainda em consideração a capacidade de produção da equipe, o tempo disponível para o preparo da alimentação escolar, o cardápio a ser preparado e os utensílios, equipamentos e insumos disponíveis na cozinha, temos como importante estratégia operacional desenvolvida pelas merendeiras o controle da quantidade de comida a ser colocado no prato dos alunos e o controle das repetições, o que enfatiza o coping como estratégia mobilizada por essas trabalhadoras.

Considerações finais

Este estudo possibilitou discutir como está organizado e como é efetivamente realizado o trabalho das merendeiras terceirizadas do município de Campinas (SP), além de apresentar as influências da gestão municipal sobre seu trabalho e suas consequências na implementação do programa.

Igualmente, a pesquisa permitiu evidenciar a forma como está organizada a gestão do programa de alimentação escolar que configura características específicas à realização do trabalho das merendeiras.

O contingente dessas trabalhadoras é composto quase que totalmente por mulheres, evidenciando os aspectos discutidos entre trabalho e gênero, como a realização de dupla jornada de trabalho. Quanto ao fato de ser um trabalho terceirizado, a realização desta pesquisa reafirmou os aspectos de precarização defendidos pelo campo da sociologia crítica do trabalho2626. Antunes R, Druck G. A terceirização como regra? Rev Trib Super Trab. 2013;79(4):214-31.), (2727. Krein JD, Castro B. As formas flexíveis de contratação e a divisão sexual do trabalho. São Paulo; Friedrich Ebert Stiftung Brasil; 2015.), (2828. Nogueira CM. A terceirização das mulheres no setor público: algumas notas introdutórias. In: Navarro VL, Lourenço EAS, editores. O avesso do trabalho IV: terceirização, precarização e adoecimento no mundo do trabalho. São Paulo: Outras Expressões; 2017. p. 332., que atrela a terceirização à baixa remuneração, à pouca qualificação e à alta rotatividade nos empregos. Todos esses aspectos foram observados no trabalho das merendeiras.

Os diferentes tipos de cardápios encontrados nas escolas, assim como a heterogeneidade do número de merendeiras em relação à quantidade de refeições servidas, mostraram uma discrepância em relação ao volume de trabalho realizado nas diferentes escolas pesquisadas.

Ainda que a infraestrutura de algumas cozinhas tenha se apresentado como precária, com falta de equipamentos e utensílios, o que mais se evidenciou como dificuldade para a realização do trabalho foi o fato de não haver diálogo com as merendeiras por parte dos gestores, o que gera ressentimento por parte das trabalhadoras. O diálogo seria importante para os gestores entenderem o trabalho executado e as dificuldades enfrentadas que, muitas vezes, transcendem a questão material e instrumental.

Ao olharmos como o trabalho das merendeiras se organiza, nos deparamos com múltiplas regras a serem seguidas, começando pela proibição em modificar os cardápios. Frequentemente esta regra necessita ser desobedecida pelas trabalhadoras, que, mediante determinadas circunstâncias, modificam o cardápio para que se tenha, dentro do possível, uma refeição com qualidade e aceitação que possa ser servida. Logo, pode-se aventar que, se todas as regras que compõem as tarefas das merendeiras fossem seguidas, seriam raros os dias em que os alunos teriam alimentação escolar.

Percebe-se que a forma como está sendo gerido o programa de alimentação escolar de Campinas influencia na organização do trabalho dessas profissionais e, consequentemente, na forma como o programa de alimentação escolar é implementado. Isso evidencia o importante papel das merendeiras bem como a distância, formulada pelos autores da ciência política, entre aqueles que formulam e aqueles que implementam as políticas públicas. Dentre os demais aspectos observados, destacamos também a falta de consideração, por parte dos gestores, dos saberes desenvolvidos pelas merendeiras nas cozinhas escolares, das dificuldades impostas pelo trabalho real e do importante papel de microgestão que essas profissionais exercem na implementação do PNAE.

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  • As autoras declaram que o trabalho foi financiado com bolsa de mestrado da agência Faepex Unicamp, processo nº 206/17, e que não há conflitos de interesses.
  • 3
    Este trabalho é baseado na dissertação de mestrado de Viviane Herculiani Cardillo, intitulada Análise do papel das merendeiras terceirizadas como atores implementadores do Programa Nacional de Alimentação Escolar: desafios na perspectiva do trabalho, apresentada em 2018 à Universidade Estadual de Campinas.
  • As autoras informam que o trabalho não foi apresentado em evento científico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2019
  • Revisado
    17 Out 2019
  • Aceito
    23 Jan 2020
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