Open-access Fatores ocupacionais associados a neoplasias hematológicas em um polo fruticultor: estudo de caso-controle

Resumo

Objetivos:   identificar fatores de risco ocupacionais para neoplasias hematológicas, leucemia, linfomas e mieloma múltiplo.

Métodos:  estudo caso-controle conduzido com casos de neoplasias hematológicas e controles recrutados do mesmo serviço, com outros diagnósticos, pareados por frequência, sexo e idade. Entrevistas individuais foram realizadas por pesquisadores treinados, utilizando um questionário estruturado. Informações sobre a história ocupacional, uso e características de exposições a substâncias químicas, em geral, e a agrotóxicos foram registradas. Foram estimadas odds ratios (OR), por meio de modelos de regressão logística não-condicional multivariável para análise exploratória.

Resultados:  foram incluídos 61 casos e 146 controles. Trabalho na agropecuária (OR: 2,18; intervalo de confiança de 95% (IC95%): 1,10;4,30), exposição ocupacional a agrotóxicos (OR: 2,37; IC95%: 1,18;4,77), e tempo total de exposição ocupacional a agrotóxicos na vida laboral em horas - curto (OR: 3,52; IC95%: 1,25;9,87) e longo (OR: 3,95; IC95%: 1,54;10,14) - foram fatores de risco para neoplasias hematológicas, em comparação aos não expostos. Essas medidas foram ajustadas por consumo de álcool e tabagismo, prática de atividade física, renda, escolaridade e história de exposição ocupacional a produtos químicos.

Conclusão:  a exposição ocupacional a agrotóxicos se associa a neoplasias hematológicas, independentemente de características do estilo de vida e nível socioeconômico.

Palavras-chave: neoplasias hematológicas; agricultura; agroquímicos; exposição ocupacional; saúde do trabalhador

Abstract

Objectives:  to identify the occupational risk factors for hematological neoplasms, specifically leukemia, lymphomas, and multiple myeloma.

Methods:  this is a case-control study. Cases were individuals with hematological neoplasms and controls were individuals with other diagnoses; frequency-matched by sex and age. Individual interviews were conducted by trained researchers using a structured questionnaire. We collected information on participants’ occupational history and chemicals use and exposure, in general, and pesticides, in particular. Odds ratios (OR) were used as association measurements, estimated by multivariate non-conditional logistic regression models for exploratory analysis.

Results:  61 cases and 146 controls were included. We found that agricultural work (OR: 2.18; 95% confidence interval (95%CI): 1.10;4.30), occupational exposure to pesticides (OR: 2.37; 95%CI: 1.18;4.77), and total occupational exposure to pesticides throughout their working life (in hours) - both short (OR: 3.52; 95%CI: 1.25;9.87) and long (OR: 3.95; 95%CI: 1.54;10.14) - constituted risk factors for hematological neoplasms, when compared to those unexposed. We adjusted these measures for alcohol consumption and smoking, physical activity, income, education, and history of occupational exposure to chemicals.

Conclusion:  occupational exposure to pesticides is associated with hematological neoplasms regardless of lifestyle and socioeconomic status.

Keywords: hematologic neoplasms; agriculture; agrochemicals; occupational exposure; occupational health

Introdução

Em 2020, as estimativas sugerem que 1.278.362 indivíduos foram afetados por neoplasias hematológicas (NH) em todo o mundo1, dos quais 474.519 consistiam em casos novos de leucemia, 544.352 de linfoma não Hodgkin (LNH), 83.087 de linfoma de Hodgkin (LH) e 176.404 de mieloma múltiplo (MM). De 2006 a 2016, a incidência anual de leucemia e linfomas aumentou 26% e 45%, respectivamente2, enquanto o número de casos de MM aumentou 126% entre 1990 e 20163.O incremento dessas NH vem sendo atribuído, dentre outros fatores, a riscos ambientais e ocupacionais, com ênfase à exposição a produtos químicos4.

De acordo com a Agência Internacional da Pesquisa sobre o Câncer (IARC), vários carcinógenos químicos são responsáveis pelo aumento do risco de NH. Para a leucemia, achados de vários estudos indicam como fatores de risco o benzeno, butadieno e formaldeído (usados em processos industriais), além de medicamentos como bussulfano, ciclofosfamida, etoposido, melfalano, semustina e clorambucil4,5. Em relação aos agrotóxicos, o diazinon é classificado como um provável carcinógeno no Grupo IARC 2A (devido às evidências limitadas de que pode causar leucemia) (6.

Especificamente para os linfomas, os agentes químicos butadieno, ciclosporina, azatioprina; e os pesticidas organoclorados pentaclorofenol e lindano são fatores associados4,5. A literatura também evidenciou que outros agrotóxicos, como malation, diazinon e glifosato, foram classificados como provavelmente carcinógenos nesse mesmo Grupo 2A6. Em relação ao MM, pentaclorofenol e butadieno são carcinógenos químicos, mas a literatura ainda apresenta evidências insuficientes para conclusões definitivas sobre a associação entre benzeno, óxido de etileno, estireno, 1,1,1-tricloroetano e MM4,5.

O Brasil ocupa o 4º lugar em exportação de produtos agropecuários no mundo; em 2019, a soma de bens e serviços gerados no agronegócio chegou a R$ 1,55 trilhão, o equivalente a 21,4% do PIB brasileiro7. O agronegócio é o principal consumidor de agrotóxicos e o país, alcançou a 3ª posição mundial no uso desses produtos por área plantada (5,95Kg/ha) (8. Dados do censo agropecuário de 2017 revelaram um total de 15 milhões de trabalhadores nesse ramo de atividade econômica9 e estudos mostram que a exposição ocupacional a agrotóxicos os afeta10, mas poucos focalizam a associação com NH.

O polo fruticultor Petrolina-Juazeiro, que foi implantado nos estados de Pernambuco e Bahia (Nordeste do Brasil), com atividade econômica voltada para a exportação desde 1960, é considerado o polo de irrigação mais desenvolvido e um dos mais importantes centros econômicos do sertão. Devido à alta qualidade dos seus produtos (principalmente a uva e a manga), tem mais de 90% de sua produção exportada para Europa, Estados Unidos e Japão11.

Além do desenvolvimento socioeconômico da região, o investimento em fruticultura irrigada, com ênfase na monocultura em grandes propriedades, trouxe consigo a necessidade de intensa utilização de agrotóxicos, característica do modelo produtivo do agronegócio12. De acordo com o censo agropecuário de 2017, essa região compreende 14.306 propriedades agrícolas cadastradas, das quais 46% empregam agrotóxicos9. Um estudo conduzido com pequenas propriedades agrícolas dessa região mostrou que, dentre os 108 agrotóxicos mencionados pelos informantes, o de uso mais comum foi da classe dos inseticidas (43,9%), especificamente dos grupos químicos piretroides (18,4%) e organofosforados (17%)13.

Os impactos desse modelo de produção não se distribuem de forma equilibrada nos territórios, pessoas que trabalham no meio rural são o grupo de maior risco em relação aos danos à saúde, devido à exposição contínua e prolongada a essas substâncias químicas e tóxicas, o que aponta para um processo de adoecimento diretamente relacionado ao trabalho e aos agrotóxicos. Além da exposição ocupacional, destaca-se que toda a população ao entorno de áreas agrícolas pode desenvolver efeitos crônicos pela exposição cumulativa por ingestão de água e consumo de alimentos contaminados12,14.

Essa área é, portanto, oportuna para o estudo da associação entre exposições químicas em geral (especialmente agrotóxicos) e NH. Este estudo tem como objetivo identificar os fatores de risco ocupacionais para neoplasias hematológicas, leucemias, linfomas e mieloma múltiplo.

Métodos

Desenho e configuração do estudo

Este estudo caso-controle foi relatado de acordo com as diretrizes Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE). Os sujeitos da pesquisa foram identificados nas unidades locais do Sistema Único de Saúde, que abrangem municípios dos estados da Bahia e Pernambuco15. Os participantes foram recrutados para o grupo de casos na Unidade de Atenção de Alta Complexidade em Oncologia do Centro de Oncologia do Hospital Regional de Juazeiro na Bahia, referência no tratamento da doença (exceto em casos ginecológicos e infantis) em uma área que abrange 53 municípios constituintes da Rede Interestadual de Atenção à Saúde na Macrorregião do Médio Vale do São Francisco. O grupo controle foi recrutado no ambulatório de especialidades do Hospital Regional de Juazeiro. Os dados foram coletados de outubro de 2016 a julho de 2018.

Participantes

Todos os pacientes vivos cujos diagnósticos clínicos e histopatológicos foram registrados - codificados pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10ª Revisão16) de C81 a C95 (C81-Linfoma de Hodgkin, C82-Linfoma não-Hodgkin Folicular, C83-Linfoma não-Hodgkin difuso, C84-Linfoma de células T, C85-Linfoma não-Hodgkin de outros tipos e não especificados, C86-Outros tipos especificados de linfoma de células T/NK, C88-Doenças imunoproliferativas malignas, C90-Mieloma múltiplo e neoplasias malignas de células plasmáticas, C91-Leucemia linfoide, C92-Leucemia mieloide, C93-Leucemia monocítica, C94-Outras leucemias de tipo celular especificado, C95-Leucemia de tipo celular não especificado) - e admitidos para tratamento de 01/01/2013 a 28/02/2018 de ambos os sexos, com idade superior a 20 anos no diagnóstico (devido ao nosso foco em exposições ocupacionais) foram convidados a participar deste estudo no grupo de casos. Os critérios de exclusão foram: idade inferior a 20 anos e óbito.

Os critérios de inclusão do grupo controle foram: pessoas de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 20 anos, sem diagnóstico prévio de câncer ou outras doenças do sistema linfohematopoiético e em atendimento no ambulatório de especialidades do HRJ. Foram excluídos os pacientes diagnosticados com qualquer tipo de câncer no período da pesquisa. Os participantes do grupo controle foram selecionados de maneira probabilística aleatória simples, no mesmo serviço de saúde que é referência no atendimento de doenças agudas e crônicas, provenientes dos mesmos municípios de onde foram identificados e recrutados os do grupo caso. Foram incluídos dois controles para cada caso, pareados segundo sexo e idade na mesma distribuição dos casos (pareamento por frequência).

Não foi realizado cálculo amostral, pois o número de pacientes no centro era pequeno. Em 28 de fevereiro de 2018, 52 pacientes estavam em tratamento ativo para neoplasias hematológicas.

Coleta de dados

As listas com os nomes dos pacientes selecionados para entrevistas presenciais previamente agendadas foram entregues a entrevistadores treinados (doutorando e estudante de iniciação científica da graduação), que desconheciam os diagnósticos dos participantes. Depois de discutir a pesquisa, eles foram convidados a participar e assinar os formulários de consentimento informado. Em seguida, um questionário semiestruturado - desenvolvido para esta pesquisa a partir da adaptação do questionário para produtores rurais sobre os agrotóxicos utilizados na produção de frutas17, de Moura et al. 201818 - foi aplicado em local reservado, dentro da unidade de saúde. Tanto a equipe quanto os participantes desconheciam a hipótese do estudo. Informações complementares sobre os aspectos clínicos dos casos foram extraídas dos prontuários de pacientes.

Definição das variáveis

A variável de desfecho foi neoplasias hematológicas (1=sim, 0=não), que compreendem casos de leucemia, linfoma e mieloma múltiplo. As variáveis representando fatores associados potenciais foram: trabalho na agropecuária (1=sim, 0=não), exposição ocupacional a agrotóxicos (1=sim, 0=não); história de exposição ocupacional a outros produtos químicos (1=sim, 0=não); período de exposição a agrotóxicos em anos (0=nenhum, 1=≤10, 2=>10) e em horas/dia (0=nenhum, 1=≤7, 2=>7); e tempo total de exposição ocupacional a agrotóxicos na vida laboral em horas, analisado, categoricamente, como não exposto, curto tempo de exposição - que corresponde aos valores até 50% da distribuição -, e longo tempo de exposição (0=não expostos, 1= ≤10.000, 2= ≥10.001). Todas essas variáveis foram baseadas em autorrelato.

A variável outros produtos químicos foi investigada, já que o estudo busca avaliar exposição ocupacional, não se restringindo a exposição à agrotóxicos. Como a amostra foi pequena, os produtos químicos foram agrupados em uma só categoria. As informações sobre essa variável foram coletadas por meio de uma questão aberta, que possibilitou múltiplas respostas. Os produtos químicos mais citados foram: tinta de parede, cosméticos à base de formol e hipoclorito de sódio.

As análises foram ajustadas para variáveis de estilo de vida, como o consumo de bebida alcoólica (0=nunca, 1=ex-consumidor/consumidor atual); tabagismo (0=nunca, 1=ex-tabagista/tabagismo atual); atividade física (1=sim, 0=não); renda per capita (0= ≥0,5 salário mínimo, 1=<0,5 salário mínimo); escolaridade (0= ≥10 anos, 1= < 10 anos, 2=nenhuma); e histórico de exposição ocupacional a outros produtos químicos (1=sim, 0=não).

O controle de vieses incluiu: 1) ajuste para variáveis de confusão: os grupos foram pareados em frequência por sexo e faixa etária (20-29 anos, 30-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos, 60-69 anos, 70-79 anos e 80 anos e acima) e analisadas via Odds Ratio (OR), por regressão logística multivariada não condicional; 2) viés de informação: os dados foram coletados de forma padronizada por dois pesquisadores treinados, por meio dos mesmos instrumentos de coleta para os grupos caso e controle. Os participantes desconheciam a hipótese do nosso estudo; e 3) viés de seleção: os participantes do grupo controle foram selecionados de forma probabilística aleatória simples (sorteio) na unidade de saúde escolhida (referência no atendimento de doenças clínicas agudas e crônicas) e eram provenientes dos mesmos municípios do caso grupo.

Análise estatística

A análise foi conduzida com as três neoplasias malignas, consideradas agregadas devido aos pequenos números de diagnósticos específicos. Medidas de associação correspondem a Odds Ratio bruta e ajustada, sendo estimadas empregando-se a regressão logística não-condicional. A modelagem foi do tipo Stepwise forward, iniciando-se com as variáveis de exposição (agropecuários, exposição a agrotóxicos e exposição cumulativa a agrotóxicos), analisadas em modelos separados. As variáveis consideradas fatores de confundimento foram selecionadas e inseridas no modelo múltiplo; as variáveis sexo e idade não foram inseridas no modelo, pois os grupos foram pareados. No modelo 2, as variáveis relativas a hábitos de vida (consumo de bebida alcoólica, tabagismo e atividade física) e socioeconômicas (renda per capita mensal e escolaridade) foram consideradas para o ajuste. No modelo 3, além das anteriores, foi acrescida a história de exposição ocupacional a outros produtos químicos. Dados faltantes do período de exposição a agrotóxicos em anos e horas/dia, em controles, foram substituídos pela média aritmética dos que apresentavam valores válidos. A análise de sensibilidade do modelo foi realizada com e sem dados imputados, respectivamente, para verificar se foi introduzido algum viés. A inferência estatística se baseou em intervalos de confiança de 95%, calculados com o método da razão de verossimilhanças. O ajuste geral do modelo foi aferido empregando-se -2 Log Likelihood (-2 LL). A análise foi realizada com o Epi Info versão 7.2.2.6.

O estudo foi registrado na Plataforma Brasil e aprovado pelo Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas da Universidade Federal do Vale do São Francisco sob o CAAE 54635116.5.0000.5196 em 19 de junho de 2016.

Resultados

Dos 70 casos de NH elegíveis, 61 (87%) concordaram em participar do estudo, enquanto dos 180 controles recrutados, 146 (81,1%) aceitaram. Casos e controles tinham maior proporção de pessoas do sexo masculino, de 60 anos ou mais de idade, 10 ou menos anos de escolaridade, renda per capita mensal de no máximo meio salário mínimo, e de origem no município de Juazeiro, Bahia (Tabela 1).

Tabela 1
Características sociodemográficas de casos com neoplasias hematológicas (NH) e controles. Juazeiro (BA), Petrolina (PE), 2018

Na Tabela 2, verifica-se que o trabalho na agropecuária se associou positivamente a NH (OR: 1,92; IC95%: 1,04;3,56), assim como a exposição ocupacional a agrotóxicos (OR: 1,99; IC95%: 1,04;3,79), mas não a outros produtos químicos (OR: 0,95; IC95%: 0,39;2,29). Para os agrotóxicos, a associação positiva ocorreu nos expostos por mais de sete horas por dia (OR: 2,21; IC95%: 1,03;4,74), por mais de dez anos (OR: 3,68; IC95%: 1,35;10,01); e que tiveram exposição ocupacional curta (OR: 3,15; IC95%: 1,22;8,13) e longa (OR: 2,91; IC95%: 1,22;6,90) a agrotóxicos durante a vida laboral (em horas), no modelo não ajustado.

Tabela 2
Medidas de associação (Odds Ratio, OR) brutas e intervalos de confiança a 95% (IC95%), das variáveis de exposição ocupacional e neoplasias hematológicas (NH) em casos e controles. Juazeiro (BA), Petrolina (PE), 2018

Observa-se que, com o ajuste simultâneo de variáveis de estilo de vida - consumo de álcool, tabagismo e prática de atividade física -, juntamente com as socioeconômicas - renda per capita e escolaridade -, não houve mudança importante nas associações positivas com o trabalho na agropecuária, mesmo quando se inclui a exposição a outros produtos químicos no trabalho (OR: 2,18; IC95%: 1,10;4,30), semelhante ao encontrado na exposição ocupacional a agrotóxicos (OR: 2,37; IC95%: 1,18;4,77). O mesmo ocorreu para tempo total de exposição ocupacional (em horas), tanto curto (OR: 3,52; IC95%: 1,25;9,87) quanto longo (OR: 3,95; IC95%: 1,54;10,14), a agrotóxicos na vida laboral (Tabela 3).

Tabela 3
Odds ratio bruta (ORb) e ajustada (ORa) e associação entre variáveis ocupacionais e neoplasias hematológicas (NH). Juazeiro (BA), Petrolina (PE), 2018

Discussão

A ocorrência de NH associada à atividade agropecuária já foi descrita em outros estudos19,20, portanto nossos achados corroboram com a literatura. Uma revisão de escopo objetivou evidenciar o perfil das pesquisas brasileiras que investigam desfechos de saúde devido a exposição à agrotóxicos, e constatou que estudos apontam correlações positivas entre essa exposição, desfechos hematológicos e danos genéticos nos sujeitos analisados12, o que destaca a importância da associação entre exposição ocupacional a agrotóxicos e NH.

A associação encontrada no Polo Fruticultor de Petrolina e Juazeiro pode estar relacionada às vulnerabilidades durante os processos de trabalho agropecuário, em que a exposição aos agrotóxicos em condições inseguras, com ausência de orientação técnica em relação ao uso correto desses produtos e monitoramento dos níveis de exposição, aliada aos determinantes sociais, como os baixos níveis de escolaridade e renda encontrados entre os trabalhadores deste estudo, aumentaram os riscos de NH4,21. Considerando outras questões sociais, um estudo feito em Municípios de Mato Grosso com 4751 indivíduos evidenciou que residir entre 90 e 300 metros da lavoura agrícola, na zona rural, e com tempo de moradia de 6 a 10 anos foram fatores associados à prevalência de câncer nessa população22.

A exposição ocupacional aos agrotóxicos por mais de sete horas por dia e por tempo maior a 10 anos aumentou as chances de NH quando comparado aos não expostos; semelhante aos achados de outros autores, que descreveram associação entre agrotóxicos organofosforados (OF) e NH23, LNH 24-27 e leucemia23,28 nos expostos por maior tempo ou com maior intensidade de exposição. Outro estudo também observou a associação entre exposição de maior intensidade a organoclorados e LNH27.

Destaca-se que, na região do Polo Fruticultor, já foi descrita uma maior frequência de utilização de agrotóxicos inseticidas OF’s e piretroides13,18,29. Esses agrotóxicos têm sido avaliados quanto ao seu potencial carcinogênico - como alterações epigenéticas com mudanças no perfil de expressão dos microRNA’s, encontrados nos inseticidas diclorvós e triazofós30. Um estudo evidenciou incremento de danos e hipermetilação do DNA em trabalhadores da cultura de soja expostos a mistura de herbicidas, fungicidas e inseticidas (entre eles os OF’s acefato, clorpirifós, diclorvós e profenofós), quando comparados a indivíduos não expostos a agrotóxicos31.

Há evidências de uma correlação significativa entre intoxicações por agrotóxicos e modulações oncogênicas. No nível molecular, os agrotóxicos podem causar: estresse oxidativo, atuar como desreguladores endócrinos e modular a expressão gênica. Tais alterações são principalmente prejudiciais às células e desempenham um papel fundamental na patogênese de vários distúrbios, incluindo o câncer32.

Em contraponto, nossos resultados divergem dos estudos de coorte que não encontraram associações positivas entre OF e NH agrupadas28,33-35. Essas diferenças nos resultados podem ser oriundas das metodologias distintas da coleta e análise dos dados, além dos vieses relacionados à mensuração da exposição, principalmente quando é baseada apenas nos autorrelatos dos participantes do estudo, que podem ter dificuldades em descrever os produtos químicos, a intensidade de uso e a frequência de aplicação ao longo da vida laboral36.

A mensuração da exposição do agrotóxico no trabalhador é complexa e, portanto, deve ser considerada a intensidade; grau da concentração em medidas externas ambientais ou de dose do agente no organismo; tempo de exposição, duração e frequência com que ocorre; exposição cumulativa; janelas de suscetibilidade; e tempo de metabolização ou persistência no organismo do agente causal. Podem ser utilizados dados de monitoramento ambiental ou biológico, registros de locais de trabalho ou outras fontes, avaliações de especialistas, matrizes de exposição-trabalho, e questionários ou entrevistas com sujeitos ou familiares. Todas essas medidas, porém, podem estar sujeitas a erros37.

Ainda assim, uma revisão sistemática que investigou como o método de avaliação de exposição aplicado influenciou as estimativas de risco para algumas doenças crônicas, entre elas o LNH, evidenciou que o método para atribuir a exposição ocupacional a agrotóxicos dos trabalhadores não resultou em diferentes estimativas de risco relativo. Em geral, o desenho do estudo, o ano de publicação e a região geográfica onde foi realizado mostraram efeitos maiores no risco relativo estimado do que o método de avaliação da exposição38.

Conclusão

Apesar das limitações deste estudo, como tamanho pequeno de amostra, possibilidade de viés de memória, diferentes malignidades do sistema hematológico consideradas em conjunto e a avaliação bruta da exposição, a análise estatística evidenciou intervalos de confiança aceitáveis, o que indica que, apesar das fragilidades metodológicas, os resultados são significantes e reforçam a hipótese de que a exposição ocupacional a agrotóxicos pode estar associada a NH, independentemente de características do estilo de vida e nível socioeconômico. Assim, acredita-se que medidas de proteção ao trabalhador e proibição de agrotóxicos associados ao aumento de risco devem ser recomendados.

As pesquisas devem considerar a importância desse tipo de estudo, que evidencia os riscos ocupacionais e as vulnerabilidades dos trabalhadores agropecuários, oriundos de um extrato populacional que tem dificuldades de acesso à serviços de saúde e sofrem os efeitos da escassez de políticas públicas de atenção integral à saúde.

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  • 1
    Este estudo foi baseado em tese de doutorado intitulada “Fatores de risco associados à presença de neoplasias hematológicas no polo de fruticultura Petrolina (PE)/ Juazeiro (BA)] de Luiza Taciana Rodrigues de Moura, apresentada em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Fundação Antônio Prudente, A.C. Camargo Cancer Center, São Paulo, SP, Brasil.
  • 3
    Os autores informam que este estudo não foi apresentado em evento científico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2022
  • Revisado
    27 Jun 2022
  • Aceito
    06 Jul 2022
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