Open-access Eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul e os impactos na Saúde dos Trabalhadores

Resumo

Introdução  Eventos climáticos extremos têm aumentado em frequência e intensidade. No Rio Grande do Sul (RS), no Sul do Brasil, em 2024, ocorreu o maior desastre ambiental da história, com diversos danos, ambientais e humanos.

Objetivo  Os impactos diretos da crise ambiental recente sobre os trabalhadores foram examinados, destacando a prioridade de abordar mudanças climáticas na formação e na atuação dos profissionais da Saúde do Trabalhador e de outras áreas da saúde.

Métodos  Partindo do desastre climático no RS, foram examinadas publicações acadêmicas, dados e informações institucionais, sendo apresentadas reflexões sobre este evento hidrológico extremo, seus impactos nos trabalhadores e o processo de reconstrução.

Resultados  O desastre atingiu 96% dos municípios, com deslizamentos de terra e alagamentos persistentes, deixando impactos graves como 2.398.255 pessoas afetadas, 183 óbitos e milhares de desabrigados. O evento levou a perdas de empregos e locais de trabalho, atingindo trabalhadores e produzindo diversos problemas de saúde como infecções, traumatismos e transtornos mentais.

Conclusão  A reconstrução é complexa e deve considerar os alertas de novos eventos extremos. Visando melhorar a resiliência e reduzir os impactos, é importante incluir os desastres climáticos na formação e nos planos de ação daqueles que atuam na saúde do trabalhador.

Desastres Climáticos; Saúde do Trabalhador; Inundações; Deslizamento de Terra; Impacto Ambiental

Abstract

Introduction  Extreme climate events have increased in frequency and intensity, causing ever greater damage. In Rio Grande do Sul-RS, in 2024, the largest environmental disaster in the history occurred, with various environmental and human damages.

Objective  This essay examined the direct impacts of the recent environmental crisis on workers, highlighting the priority of addressing climate changes in the training and practice of professionals in Worker’s Health and other health areas.

Methods  Starting from the climate disaster in RS, academic publications, data and institutional information were examined, presenting reflections on this extreme hydrological event, its impacts on workers and the reconstruction process.

Results  The disaster affected 96% of the municipalities, leaving much destruction, with serious impacts. 2,398,255 people were affected, including 183 deaths and thousands of homeless people. The disaster led to job and workplace losses, affecting workers and producing several health problems such as infections, traumas and mental disorders.

Conclusion  Reconstruction is complex and must consider warnings of new extreme events. In order to improve resilience and reduce impacts, it is important to include climate disasters in the training and action plans of those working in worker health.

Climate Disasters; Occupational Health; Floods; Landslides; Environmental Impact

Introdução

Mudanças climáticas, como eventos climáticos extremos, inundações, ciclones/furacões, seca/calor extremo, poluição do ar e outros desequilíbrios ambientais estão produzindo danos cada vez maiores. Os eventos climáticos extremos (ECE), como o ocorrido no estado do Rio Grande do Sul (RS), localizado na Região Sul do Brasil, em 2024, estão aumentando em frequência e gravidade, elevando a probabilidade de impactos severos e generalizados para pessoas e ecossistemas1. A influência humana no sistema climático é clara: as recentes emissões antropogênicas de gases de efeito estufa são as mais altas da história1.

Em 2024, no Dia Mundial de Segurança e Saúde no trabalho (28 de abril), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) priorizou o tema “Os impactos das mudanças climáticas sobre a segurança e a saúde ocupacional”. E destacou aumento de óbitos e doenças relacionadas às mudanças climáticas, alertando sobre riscos adicionais à saúde dos trabalhadores (ST)2.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já alertou que as mudanças climáticas estão impactando nossa força de trabalho e infraestrutura de saúde, reduzindo a cobertura universal de saúde. Em maio de 2024, a Assembleia da OMS oficializou que as mudanças climáticas são uma grande ameaça à saúde global3. Pessoas territorialmente vulneráveis (por razões de ocupação ou localização geográfica da moradia), indígenas, crianças, idosos e migrantes climáticos estão entre as pessoas mais impactadas pelas mudanças climáticas4.

Embora existam diferentes formas de manifestações das mudanças climáticas, este ensaio priorizou os impactos relacionados aos ECE do tipo hidrológico5, ou seja, chuvas intensas, enxurradas, deslizamentos de terra/rochas e inundações.

Desde 2020, o RS tem sido afetado por episódios de precipitação intensa. No entanto, o mais extremo foi registrado entre o final de abril e o início de maio de 20246. E ao longo de maio de 2024, ocorreu o maior desastre climático da história gaúcha.

Isso já tinha sido alertado em 2022 por Marcelo Silva, professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), numa audiência pública em Pelotas. Na época, ele destacou que os ECE seriam mais frequentes e que as cidades gaúchas não estavam preparadas7. E de fato não estavam, assim como a maioria das cidades brasileiras.

Trabalhadores do RS sofreram consequências graves, durante e depois do desastre climático. Isso afetou não só os trabalhadores que atuaram nos resgates, defesa civil e na saúde, mas também todo o mundo do trabalho8.

Este ensaio examinou os impactos diretos do recente desastre climático no RS sobre a ST, destacando a prioridade de abordar mudanças climáticas, na formação e na atuação dos profissionais da ST e de outras áreas. Desta forma, apresenta subsídios que contribuem para qualificação das equipes de saúde, melhorando a prevenção e manejo das crises ambientais, destacando como um dos temas prioritários da ST.

Métodos

Considerando os alertas de pesquisadores e instituições, este ensaio descreve o desastre ambiental ocorrido em 2024 no RS e analisa os impactos na ST. Foram examinadas publicações técnicas de desastres ambientais, documentos institucionais, publicações de saúde coletiva, ambiental, saúde do trabalhador, além de experiências de profissionais e técnicos envolvidos no enfrentamento do evento climático extremo. As informações, incluindo mapas, dados de monitoramento, estimativas de danos e discussões temáticas, foram organizadas abordando os impactos gerais do evento climático, impactos na saúde e especificamente no mundo do trabalho e na ST, bem como discussões sobre a reconstrução. A revisão de publicações (acadêmicas e institucionais) sobre eventos climáticos e a ST qualificou as reflexões sobre o desastre e as propostas a serem implementadas.

O conceito de desastre climático levou em conta a definição da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, que considera desastre como um “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema (vulnerável), causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais”9 (p.13).

O Sistema Único de Saúde (SUS) utiliza o conceito amplo de “trabalhador” e, nesta direção, a Secretaria Estadual de Saúde do RS (SES-RS) orientou incluir as atividades de limpeza e reconstrução como forma de trabalho10, sendo o critério adotado neste ensaio.

O que aconteceu no RS? Impactos gerais

Os alertas preliminares vieram antes, como numa prévia. Em 2023, ocorreram três eventos climáticos com tempestades volumosas (em especial em setembro), que deixaram 75 mortes e muitos danos, principalmente no Vale do Taquari.

Entre final de abril, maio e junho de 2024, ocorreu o maior desastre ambiental da história do RS, evidenciando os efeitos de um risco hidrológico. Choveu muito, volumosamente e, desta vez, de forma prolongada. Iniciou no final de abril (27 de abril) atingindo as regiões de Santa Cruz, Santa Maria, Quarta Colônia e, a seguir, a Serra Gaúcha. Além de mortos, desabrigados e destruição, muitos municípios ficaram vários dias isolados, sem luz, internet, sem acesso viário e com dificuldades no abastecimento.

Em abril e maio, as precipitações mensais acumuladas alcançaram respectivamente 667 mm e 803 mm, um aumento acima de quatro vezes o esperado para o período6. Em 2 de maio, o site Ogimet, que faz levantamentos pluviométricos mundiais, mostrou em seu ranking, que oito cidades do RS estavam entre as 10 com maior volume de chuvas no mundo, em 24 horas (Tabela 1)11.

Tabela 1
Municípios com maiores precipitações, em 24 horas, no mundo, 02/05/2024

No dia 3 de maio, as aulas foram suspensas em toda a rede estadual (2.338 escolas) e 22 escolas serviram de abrigo12. Neste dia, a enchente chegou em Porto Alegre (POA), provocando um imenso caos, atingindo a rodoviária, a prefeitura, o centro histórico, o mercado público, o centro administrativo e outros.

No dia seguinte, o evento foi oficializado como o maior desastre ambiental da história do RS. Não apenas pelo número de atingidos (510.585) e óbitos (55), mas também pela extensão da tragédia, que então atingira 317 municípios12. Posteriormente, este número chegou a 478 municípios (96,2% do total).

Em 7 de maio, havia mais de 450 mil pontos sem energia elétrica e 211 municípios sem telefonia/internet e 649 mil imóveis sem água12. Em POA, apenas um terço das estações de tratamento de água estava funcionando, impactando milhares de domicílios, hospitais, abrigos e outros serviços essenciais. Mesmo as pessoas que habitavam imóveis que não foram alagados, ficaram sem água por semanas, convivendo com a crise sanitária.

Ao longo de maio, o número de atingidos ultrapassou dois milhões12. Houve deslizamentos de terras nas áreas serranas, estradas e pontes destruídas/interditadas e muitas enchentes. Casas ficaram alagadas ou destruídas e/ou foram inteiramente arrastadas pela correnteza.

Os deslizamentos de terra, tecnicamente chamados de movimentos de massa, foram a principal causa de mortes nas regiões serranas e encostas. Podem acontecer de forma natural ou antropogênica, sendo relacionados à inclinação das encostas, geomorfologia dos locais, usos do solo e, em especial, ao excesso de precipitações13.

Cicatrizes de movimentos de massa são marcas visíveis da movimentação de solo e/ou rochas, geralmente nas encostas. Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), usando imagens de satélites, mapearam 8.019 cicatrizes de movimentos de massa, ocorridas nas duas semanas iniciais do evento, entre 27 de abril e 13 de maio de 202413, que caracterizam o maior evento de movimentação de solo/rochas já ocorrido no Brasil. Municípios da Serra Gaúcha, aqueles próximos de encostas e da Quarta Colônia, apresentaram maior número de cicatrizes13.

A área da educação também foi impactada: durante todo o mês de maio os temporais atingiram 1.064 escolas (250 municípios) e 380.436 estudantes12. A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) teve danos graves em todo arquivo geral, localizado no subsolo inundado pelas enchentes, além de livros da Editora da UFSM.

No balanço final, a Defesa Civil apontou 478 municípios atingidos, com 2.398.255 pessoas afetadas, 27 desaparecidos e 183 óbitos confirmados12. Acrescentam-se mais de 16 mil indígenas (5.183 famílias) que foram impactados pelas enchentes14.

No Vale do Taquari, o rio Taquari-Antas recebeu chuvas volumosas que vieram da Serra Gaúcha, ganhando força e velocidade no caminho, arrastando tudo o que encontravam pela frente. Regiões em planícies, especialmente aquelas próximas do Guaíba, tiveram enchentes prolongadas, com um nível elevado das águas. Municípios ao sul da Lagoa dos Patos também foram inundados e precisaram evacuar parte da população.

Em POA, onde existe um sistema de proteção contra enchentes, devido às falhas de manutenção e de projeto, a grande maioria das bombas e das comportas não funcionou quando foram necessárias15. Durante vários dias, ocorreu a elevação do nível do Guaíba, invadindo POA inclusive através dos bueiros. Em 5 de maio, o nível alcançou 5,35 metros atingindo a maior cheia da história16. O aeroporto internacional Salgado Filho ficou submerso por cerca de dois meses e, devido aos danos, permaneceu fechado até o final de outubro.

Pesquisadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (IPH/UFRGS), mapearam as principais regiões hidrográficas atingidas17. Eles estimaram a área inundada em 4,27 mil km2, atingindo cerca de 556 mil pessoas, sendo 301 mil domicílios urbanos e 7,8 mil em área rural17.

Os vastos impactos decorrentes deste evento climático, devem perdurar por longo prazo, provocando sofrimentos aos trabalhadores de vários setores e sobrecarregando estruturas e servidores públicos.

Quando as águas da bacia do Guaíba começaram a baixar, surgiu um novo desafio ambiental: proporções assombrosas de lixo (resíduos sólidos), que estavam nas casas, nos edifícios, nas ruas e lixo produzido pelas enchentes, como: móveis, eletrodomésticos, utensílios, colchões, roupas, cobertores, máquinas, equipamentos, veículos e entulhos de edificações.

Pesquisadores do IPH/UFRGS e empresa parceira estimaram em 46,7 milhões de toneladas, os entulhos de construção espalhados pelas ruas18, além de outros tipos de resíduos que geram vários riscos, inclusive para trabalhadores da limpeza/reconstrução. Instituições ligadas ao meio ambiente alertaram para a importância da separação e destinação correta destes resíduos, que poderiam ser reciclados, e divulgaram orientações sobre a destinação correta dos resíduos sólidos gerados por este desastre climático.

Impactos na saúde

A OMS alertou, em 2024, que as mudanças climáticas são uma ameaça à saúde3 e estão afetando o acesso a serviços de saúde, ampliando várias desigualdades já existentes. Dos 15 indicadores que monitoram riscos à saúde relacionados às mudanças climáticas, dez atingiram novos recordes na última medida19. Apesar dos eventos de calor e seca extrema, os episódios de precipitações extremas estão aumentando, levando a grandes inundações e diversos problemas de saúde19.

Desastres climáticos com inundações costumam produzir aumento de várias doenças como leptospirose, hepatite A, tétano, infecções respiratórias, infecções de pele, traumatismos diversos, entre outros20, muitos atingindo especialmente os trabalhadores. Além disso, diferentes estudos já destacaram que eventos climáticos extremos costumam produzir problemas de saúde mental entre os atingidos, direta ou indiretamente4,21,22.

No desastre climático do RS, também ocorreram impactos diversificados na área da saúde, como danos na estrutura física dos estabelecimentos, nos equipamentos, insumos e, simultaneamente, aumento da demanda por assistência devido aos vários problemas de saúde, incluindo infecções, traumatismos e transtornos mentais.

Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) estimaram que cerca de 3.000 estabelecimentos de saúde teriam sido afetados pelas enchentes23.

Até 10 de maio, 135 municípios haviam reportado danos, em 448 estabelecimentos de saúde: 353 da Atenção Primária e 95 da Atenção Especializada24. Em 27 de maio, a SES-RS estimou ter perdido 266 imóveis em 81 municípios, sendo a maioria (66,5%) unidades básicas de saúde (UBS). Além disso, muitos hospitais foram afetados, alguns, como no Vale do Taquari, atingidos por enchentes várias vezes em poucos meses.

Em Canoas, na região metropolitana, o Hospital de Pronto Socorro precisou ser evacuado às pressas. Além disso, 19 dentre 27 UBS, três unidades de pronto atendimento (UPA) e quatro centros de apoio psicossocial (CAPS) foram comprometidos. Em POA, 32 UBS estavam fechadas (23,5% do total) e o Hospital Mãe de Deus foi evacuado devido às inundações24.

Vários hospitais e serviços de saúde tiveram que administrar a escassez no abastecimento de água, luz, internet, insumos, bem como a redução de funcionários e profissionais de saúde. Isso envolveu serviços de vários tipos e diferentes graus de complexidade. Foram atingidos hospitais, maternidades, urgências, UBS, laboratórios etc. Procedimentos eletivos foram adiados ou cancelados pelo risco de desabastecimento de insumos. Ressalta-se que muitos serviços de saúde permaneceram longos períodos sem luz e internet, impactando a assistência e dificultando as notificações de problemas de saúde.

O aumento da leptospirose era esperado, porque o contágio aumenta em contato com enchentes. Mesmo considerando as falhas de notificação, o número de casos e de óbitos por leptospirose no RS foi maior nestes três meses que a média anual de casos na última década. Conforme a SES-RS, entre 26 de abril e 18 de julho, o RS teve 7.129 notificações, sendo casos 675 confirmados e 3.573 ainda em investigação; 26 óbitos confirmados e seis em investigação25.

Os dados da SES-RS sinalizam que também ocorreu um aumento de leptospirose por exposição ocupacional: 103 casos de leptospirose relacionada ao trabalho em 2023 (em média 8,6 casos/mês), enquanto até novembro de 2024 foram 192 (17,5 casos/mês)26.

Além do trauma agudo do desastre, os trabalhadores tiveram perdas pessoais e coletivas importantes. Desta forma, é esperado um crescimento de casos novos de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, depressão, pânico e distúrbios do sono, bem como um descontrole de casos psiquiátricos mais graves (muitos tiveram interrupção súbita de tratamentos)4,22.

Registros de transtornos mentais relacionados ao trabalho mais que dobraram no RS, em relação à 2022, passando de 141 casos em 2022, para 399 em 2023 e 626 em 202426. Assim, a SES-RS, por meio da Portaria SES nº 300, destinou repasse extraordinário aos municípios em calamidade pública, para contratar novas equipes de saúde mental, visando ampliar e qualificar os atendimentos em saúde mental.

Impactos na saúde mental também foram descritos entre trabalhadores de saúde, após 10 anos de evento com inundações, em Santa Catarina (SC). Eles descreveram como experiência traumatizante e de grande sofrimento mental, ao lidar com os efeitos do desastre climático na população sob seus cuidados21.

Impactos no mundo do trabalho e nos trabalhadores

Durante eventos climáticos extremos, os trabalhadores costumam ser aqueles que se expõem mais precocemente e de forma mais intensa e prolongada aos diversos tipos de riscos, se comparados com o público geral8.

Trabalhadores ao ar livre (principalmente os da agricultura e construção), muitos migrantes e informais, com moradia e trabalho precários, estão entre as populações mais vulneráveis aos desastres climáticos8,27,28. As populações de trabalhadores mais afetadas pelas mudanças climáticas incluem trabalhadores agrícolas, construção civil, socorristas e bombeiros, profissionais de saúde, pescadores e outros trabalhadores expostos a condições climáticas externas, por longos períodos8,28.

Isso também ocorreu no evento do RS:

Trabalhadores continuavam sendo trabalhadores, embora também fossem vítimas. Trabalhadores perderam suas casas [...], seus pertences, seus entes queridos (familiares, vizinhos, amigos, colegas) [...] e animais de estimação. Também perderam seus locais de trabalho, emprego, renda [...] e alguns perderam suas cidades. Mesmo assim voltaram a trabalhar, por necessidade de sustento, comprometimento e outras razões [...]. Trabalhadores da administração pública [...] receberam cargas adicionais de trabalho, com infraestrutura prejudicada e desconhecimento dos “caminhos burocráticos” para apoiar a população afetada. Precisaram assimilar o desastre, atuar na resposta e, concomitantemente, planejar a reconstrução e/ou futuro do território29 (p. 3).

Considerando a complexidade da resposta a um desastre, em todas as suas fases e impactos já explicitados, o cuidado com a ST precisa ser priorizado. Trabalhadores de diferentes categorias profissionais estiveram expostos a diversos riscos no trabalho e no trajeto. Vários – incluindo bombeiros, militares, profissionais de saúde, defesa civil e outros, além dos voluntários – trabalharam nos resgates, no atendimento às vítimas, no apoio aos abrigos, na limpeza/reconstrução das cidades e rodovias, entre outros. Isso ampliou a exposição aos riscos biológicos, físicos, químicos, ergonômicos (incluindo psicossociais), além dos acidentes, conforme já apontado2,8. Muitos postos de trabalho foram, literalmente, por água abaixo. Empresas foram destruídas ou danificadas por impacto direto de enchentes/deslizamentos de massa. Outras tiveram perdas de matéria-prima, perdas de produtos ou dificuldade para vendê-los. Os custos se elevaram rapidamente. Empresas de terceirização de mão de obra tiveram cancelamento de contratos e dispensa de trabalhadores.

A Secretaria da Fazenda do RS mostrou o impacto econômico para as empresas nas áreas atingidas, onde se verifica uma queda abrupta do faturamento no mês de maio (Figura 1)30.

Figura 1
Atividade econômica: número de empresas em área afetada que emitiram notas fiscais

Comparado ao mesmo período em 2023, verificou-se uma variação negativa do volume de vendas em quase todos os segmentos, com destaque para insumos agropecuários, com redução de 41%30.

Além de perder renda e postos de trabalho, os trabalhadores foram afetados de diferentes formas. Alguns perderam familiares/amigos e/ou condição de moradia, afetando sua condição de trabalho. Este contexto pode ser agravado por fatores socioeconômicos, como trabalho e/ou moradias precários8. Os temporais afetaram a infraestrutura, com interdições de pontes e rodovias, estaduais e federais, ao longo de várias semanas. Trabalhadores que trabalhavam ou estudavam em municípios com interdições de acesso tiveram problemas de deslocamento.

Os impactos econômicos deste desastre climático no trabalho foram amplos e mesmo empresas que não foram diretamente atingidas, sofreram consequências. Conforme o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em maio/2024, todas as Unidades Federativas (UF) brasileiras registraram saldos positivos, exceto o RS, que teve mais demissões que contratações. Comparado com maio de 2023, dos 23 mil postos de trabalho perdidos em maio de 2024, 22 mil eram do RS, conforme o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)31.

Nos 418 municípios gaúchos onde foi decretado estado de calamidade, ao menos 23,3 mil estabelecimentos privados (9,5% do total nesses municípios) teriam sido diretamente atingidos, assim como 334,6 mil postos de trabalho (13,7% do total, chegando a mais de 80% nos municípios mais atingidos)32.

A Pesquisa Mensal de Serviços do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que, em maio, o RS mostrou, no setor de Serviços uma redução de 15,1% em relação ao mesmo mês do ano anterior (enquanto o Brasil aumentou 5%)33. A produção industrial mensal também reduziu em maio: 26,2% no RS, contrastando com um discreto aumento de 0,9% no restante do país34. O setor do Comércio foi a exceção, pois mostrou um aumento de 13% no mesmo período.

Na agropecuária, a Associação Rio-Grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-RS) identificou 9.158 localidades afetadas35 pelos eventos climáticos. Foram atingidas várias instalações rurais (casas, galpões, silos, estufas e aviários), além de problemas para o escoamento da produção em 4.548 comunidades. Milhares de fontes de água foram contaminadas (4.570), deixando 34,5 mil famílias rurais sem água potável35.

A produção agrícola sofreu perdas importantes em várias culturas, em produtos armazenados e plantios iniciais. Foram prejudicados 48.674 produtores rurais de grãos, em especial milho e soja. Também houve danos severos na horticultura, erva-mate e fruticultura, afetando 8.431 fruticultores entre outros, além da pecuária35. As perdas de animais foram substanciais: cerca de 15 mil bovinos de leite e de corte, 15 mil suínos e 1,2 milhão de aves, entre outras. Além do dano direto aos animais, vasta extensão de pastagens foi atingida e a destruição de estradas dificultou o abastecimento de rações, bem como o transporte dos animais para frigoríficos. No total, mais de 32 mil produtores foram atingidos35.

Agroindústrias familiares e cooperativas tiveram danos em imóveis, equipamentos, matérias-primas, logística e vias de comercialização. Foram afetadas 76,6% das cooperativas, com cerca de 10 mil associados. Em 405 municípios foram registradas perdas de fertilidade dos solos, por erosão hídrica, que afetaram 2.706.683 hectares35.

Outro aspecto relacionado à ST foi a destruição de documentos. Em diversos serviços públicos, houve perda de documentos administrativos e prontuários de pacientes, dentre outros. Muitos trabalhadores perderam seus documentos de trabalho, de identificação, de seguros, propriedade de bens, e objetos pessoais como cartas, fotos e outros registros da memória de vida. Várias destas perdas têm produzido transtornos e afetado a saúde mental.

Em POA, a enchente inundou o arquivo-geral do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), com três milhões de documentos36. O TRT4 possui o selo “Memória Mundo” da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em razão do valor histórico do acervo, que inclui processos de 1935 a 2000. A enchente atingiu 1 milhão de processos trabalhistas; a maioria estava com trânsito em julgado, mas alguns estavam ainda em armazenamento provisório. Atualmente há um esforço de restauração, que envolve riscos, pois os documentos ficaram submersos por cerca de um mês36.

Discussão - A reconstrução e o futuro

Os riscos hidrológicos (temporais, enxurradas e inundações), bem como os movimentos de massa (deslizamentos de terra e rochas), foram os principais tipos de desastre neste evento extremo no RS. Isso é consistente com as observações que confirmam ser os tipos mais comuns na América Latina5. Ambos os tipos implicam elevação da ocorrência de agravos relacionados ao trabalho de gravidade variável (acidentes, doenças e morte)8.

Apesar da recorrência de eventos de risco hidrológico, em algumas regiões brasileiras, a preparação para enfrentá-los não tem sido suficiente. Adicionalmente, existem resistências importantes por parte de alguns gestores e legisladores, bem como iniciativas para a redução de áreas de preservação permanente (APP) ou de flexibilização de regras ambientais nas APP. Pouco antes do desastre climático, foi publicada, no RS, a Lei no 16.111/2024, que permite intervenções em APP para fins de irrigação, o que gerou polêmica por colocá-las em risco37. Na região serrana do Rio de Janeiro, que apresenta eventos climáticos frequentes, um estudo avaliou, em 2022, um caso de precipitação extrema, com deslizamentos de terra, enxurradas e inundações. Várias áreas afetadas já tinham sido identificadas como sendo de risco, em 2017, e poucas mudanças foram realizadas desde então. Os autores destacaram as injustiças socioambientais destes desastres e questionaram a omissão de administrações públicas38.

Por outro lado, em regiões atingidas por desastres, que contam com ações de prevenção e planos de resposta, emergência, prevenção e contingência para enfrentá-los, os prejuízos à vida e aos bens materiais são menores e podem até ser evitados9,38.

No RS, a mobilização inicial de diversas fontes em solidariedade aos atingidos ajudou no resgate e suporte emergencial para as vítimas. Mas a dimensão do desastre tem tornado o esforço de reconstrução bem mais longo e complexo. Conforme técnicos da Fiocruz23, o processo de reconstrução deve levar meses ou anos, com diferentes desafios e custos crescentes ao longo do tempo (Gráfico 1).

Gráfico 1
Impactos e custos dos eventos climáticos extremos ao longo do tempo

A prioridade inicial foi resolver a questão da moradia e sobrevivência das pessoas que estavam em abrigos ou desalojadas. Para tanto, foram implementadas as “cidades provisórias”: cinco centros de acolhimentos para pessoas que perderam suas moradias e estavam em abrigos. Visando a proteção dos empregos e dos trabalhadores, foram lançados programas emergenciais de apoio financeiro a empresas, de diversas fontes.

Uma parceria entre diversos bancos internacionais multilaterais (Banco mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, Banco do BRICS, Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe, entre outros) juntamente a órgãos federais e estaduais, anunciou fundos emergenciais, em valores acima de U$ 15 bilhões para financiar o projeto de reconstrução do RS, estruturado em três fases39:

  1. Emergência: atendimento à população afetada, limpeza de estradas e -outras necessidades. Elaboração de um Damage and Loss Assessment (DALA), com estimativa dos efeitos (avaliação dos danos e custos), dos impactos (domiciliares e macroeconômicos) e recomendações para a reconstrução resiliente.

  2. Recuperação: recuperação de alguns serviços e implementação do DALA.

  3. Reconstrução: a partir do relatório DALA, elaborar o plano de reconstrução39.

Para as próximas fases da reconstrução existem várias frentes, sendo recomendável uma definição coletiva (municípios atingidos, estado e sociedade civil) para o planejamento e execução das ações de reconstrução, que devem incluir abordagem interdisciplinar de base técnica, envolvimento comunitário e transparência. O governo estadual, em parceria técnica com a Universidade do Vale do Taquari, tem coordenado a revisão dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano de sete municípios do Vale do Taquari, região frequentemente atingida por inundações. O projeto está sendo discutido em audiências públicas e vai incluir três etapas: identificação das zonas de risco e definição de diretrizes para ocupação segura; elaboração de Plano Diretor e de Perímetro Urbano, por município; e diretrizes para o Código de Obras e Edificações.

Pesquisadores do IPH/UFRGS produziram e disponibilizaram o “Repositório de informações geográficas para suporte à decisão – Rio Grande do Sul ”, com mapas e bancos de dados e análises, com o mapeamento dos movimentos de massa por imagens de satélite, avaliação do risco geológico e outras. Estas informações podem ajudar no planejamento e na análise de dados, embasando tecnicamente as decisões emergenciais17 e ajudando a preparar o futuro.

Os estudiosos da questão climática alertam que vão ocorrer novos eventos climáticos extremos no futuro1,8, por isso a reconstrução do RS precisa considerar quais as áreas mais seguras e resistentes, que vieram para ficar. Com planejamento ambiental e sistemas de alertas, pode-se saber onde o evento se tornará mais grave e afastar as pessoas das áreas de risco com antecedência7. “É preciso afastar as infraestruturas urbanas, as estruturas das cidades e a população dos ambientes de maior risco, que são as áreas mais baixas, planas e úmidas, as áreas de encostas, as margens de rios e as cidades que estão dentro de vales7. Por outro lado, as áreas úmidas podem ter papel importante na prevenção de inundações e deveriam servir como “esponja” em períodos de chuvas fortes.

O conceito de “cidades esponja” foi desenvolvido e implementado em situações de frequentes inundações, como na China, Nova York e Holanda40. Esta proposta envolve técnicas de reter a água da chuva, diminuir a velocidade dos rios e adaptar as cidades, para que tenham áreas alagadas, quando for necessário. O modelo também pode ser útil durante os períodos de seca, já que a água armazenada pode ser utilizada para irrigação e para manter a vegetação urbana em boas condições. Assim, a proposta de reconstrução, em especial dos sistemas de saúde, precisa ser adaptada às mudanças climáticas, sustentável e resiliente ao clima.

Deve-se ressaltar a importância de incluir técnicos e representantes dos trabalhadores de diferentes inserções no mercado de trabalho no processo de planejamento, de prevenção, resposta e reconstrução. Muitos aspectos são mais bem dimensionados por quem vivencia as peculiaridades do cotidiano do trabalho.

Conclusão

As mudanças climáticas representam atualmente importantes ameaças globais à saúde, em particular à ST2,3,28. Os eventos climáticos extremos estão aumentando em frequência e intensidade, provocando danos em diversos aspectos da vida e do trabalho2. E os trabalhadores estão enfrentando um aumento de morbidade e mortalidade relacionado às mudanças climáticas8,27.

Esta temática ambiental, incluindo propostas de ação, ainda não está devidamente contemplada na formação dos profissionais de ST. Em todos os tipos de risco climático para os trabalhadores, em especial os eventos extremos, são necessárias pesquisas sobre a causalidade e prevalência de riscos, juntamente com vigilância para identificar e planejar ações de prevenção e controle27. Os profissionais de ST precisam se preparar para as futuras crises climáticas, analisando os eventos ocorridos, aprofundando conhecimentos, definindo e treinando protocolos de urgência, aprendendo com as catástrofes e planejando ações no campo da saúde.

Além de melhorar rede de estações e radares meteorológicos6, sugerem-se medidas como: aplicativos de realidade virtual, dispositivos portáteis para suporte ao treinamento de saúde e segurança de trabalhadores, equipes de emergência e pessoal de suporte qualificado; preparação e resiliência da comunidade e do cidadão; disponibilização de sites institucionais para pesquisa, que possam subsidiar equipes de saúde para atuar em emergências, e nos efeitos dos desastres na saúde, agudos e de longo prazo. Em estudo multicêntrico, trabalhadores da saúde consideraram que educação profissional continuada, treinamento em comunicação, materiais de educação para pacientes, alertas de ação e orientação sobre como tornar sustentáveis os locais de trabalho ligados à assistência médica41 seriam ações importantes para o enfrentamento dos desafios climáticos e seus impactos na ST.

Além disso, sugere-se a realização de estudos que examinem efeitos tardios dos eventos climáticos extremos, subsidiando abordagens preventivas e de mitigação dos danos. Não menos importante, recomenda-se ampliar medidas de atenção à saúde mental, para a população atingida e em especial os trabalhadores, públicos e privados, visando apoio psicossocial e prevenção de transtornos mentais relacionados ao trabalho.

Referências

  • Disponibilidade de dados:
    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • Apresentação do estudo em evento científico:
    As autoras informam que o estudo não foi apresentado em evento científico.
  • Financiamento:
    As autoras declaram que o estudo não foi subvencionado.

Editado por

  • Editora-Chefe:
    Leila Posenato Garcia

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2024
  • Revisado
    09 Dez 2024
  • Aceito
    16 Dez 2024
location_on
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO Rua Capote Valente, 710 , 05409 002 São Paulo/SP Brasil, Tel: (55 11) 3066-6076 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbso@fundacentro.gov.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro