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Comportamento durante o desmame de peixe-boi-da-amazônia Trichechus inunguis (Natterer, 1883) em cativeiro1 1 Parte da dissertação de mestrado do primeiro autor.

Behavior during weaning of Amazonian manatee “Trichechus inunguis” (Natterer, 1883) in captivity

RESUMO

O peixe-boi-da-amazônia Trichechus inunguis (Natterer, 1883) é uma espécie que foi amplamente explorada pela caça, sendo um dos mamíferos aquáticos mais caçados no século XX. Atualmente sua caça é proibida. Todavia, os dispositivos legais não impedem que espécimes jovens, por razões diversas, encalhem e necessitem de cuidados nos cativeiros destinados à reabilitação dessa espécie. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) manteve uma base do Centro de Pesquisa Conservação e Manejo de Mamíferos Aquáticos (CMA) instalada no campus da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) com recintos destinados à reabilitação de peixes-boi-da-amazônia. Como alguns animais chegam pequenos, em fase de amamentação, conforme crescem, são submetidos ao desmame que, no cativeiro em tela, ocorreu em trinta dias. O comportamento de sete exemplares dessa espécie foi objeto deste estudo, comparando os padrões de execução de alguns comportamentos antes (mamando), durante (desmamando) e depois (herbivoria) da fase de desmame. Os resultados da análise de variância apontam diferença significativa para as frequências de execução do comportamento relacionado à alimentação pelo teste estatístico de Kruskal-Wallis (p valor <0,0001) havendo resposta comportamental dos animais para a diminuição da oferta de nutrientes proporcionada pelas mamadas. Com o mesmo teste estatístico, um dos comportamentos que foi classificado como uma estereotipia de cativeiro (deslocar-se em círculos) foi diminuindo à medida que o animal saia da fase de amamentação para herbivoria (p < 0,0023).

Palavras-chave:
comportamento animal; estereotipia de cativeiro; sirênios

SUMMARY

The Amazonian manatee Trichechus inunguis (Natterer, 1883) is a species that was widely exploited by hunting, one of the most hunted aquatic mammals in the twentieth century. Currently its hunting is prohibited. However, the regulations do not prevent young specimens, for various reasons, beached and require care in captivity for rehabilitation of this species. The Chico Mendes Institute for Biodiversity Conservation (ICMBio) maintained a base of the Center for Research and Conservation of Aquatic Mammals Management (CMA) installed on the campus of the Federal Rural University of Amazonia (UFRA) with enclosures for rehabilitation of the Amazonian manatees. As some small animals arrive in breastfeeding, as they grow, are submitted to weaning that in the screen in captivity occurred in thirty days. The seven examples of behavior of this species has been the subject of this study, comparing the behavior of some performance standards before (nursing), during (weaning) and after (herbivory) of weaning. The results of the variance analysis indicate, among other behaviors, significant difference to the behavior of the execution frequencies related to food by the statistical test of Kruskal-Wallis test (p value <0.0001) having behavioral response of animals to decrease the supply of nutrients provided by breastfeeding. With the same statistical test, a behavior that has been classified as a stereotype captivity (moving in circles) was decreasing as the animal leaves the breastfeeding to herbivory (p <0.0023).

Keywords:
animal behavior; stereotypy of captivity; sirenians

INTRODUÇÃO

A ordem Sirênia Lllinger, 1811, é constituída por duas famílias, Trichechidae Gil, 1872 e Dugongidae Cintra, 1821. No Brasil ocorrem duas das atuais espécies de sirênios da família Trichechidae: o peixe-boi marinho Trichechus manatus manatus Linnaeus, 1758 e o peixe-boi-da-amazônia Trichechus inunguis (Natterer, 1883) (LUNA et al., 2011LUNA, F.O.; SILVA, V.M.F.; ANDRADE, M.C.M.; MARQUES, C.C.; NORMANDE, I.C.; VELOSO, T.M.G.; SEVERO, M.M. Plano de ação nacional para a conservação dos Sirênios: peixe-boi-da-Amazônia: Trichechus inunguis e peixe-boi-marinho: Trichechus manatus. Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2011.p.80. (Espécies Ameaçadas).). Atualmente, T. inunguis está classificado como “vulnerável” na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Portaria n° 444, de 17 de dezembro de 2014. Reconhece espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção aquelas constantes da "Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção” - Lista. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18dez. n. 245. Seção 1, p. 121, 2014.).

A vulnerabilidade da espécie se deve à caça antes indiscriminada, sem distinção de tamanho, resultou na ausência da espécie em lagos e ambientes diversos onde antes eram abundantes (FERREIRA, 1903FERREIRA, A.R. Memória sobre o peixe-boi e o uso que lhe dão no estado do Grão Pará. Rio de Janeiro: Arquivo Museu Nacional. 1903. p.169-174.). Em razão do abate das fêmeas com filhotes, o Centro de Mamíferos Aquáticos/ICMBio, em Belém-PA, resgatava e reabilitava em cativeiro, filhotes órfãos de T. inunguis (LUNA et al., 2011LUNA, F.O.; SILVA, V.M.F.; ANDRADE, M.C.M.; MARQUES, C.C.; NORMANDE, I.C.; VELOSO, T.M.G.; SEVERO, M.M. Plano de ação nacional para a conservação dos Sirênios: peixe-boi-da-Amazônia: Trichechus inunguis e peixe-boi-marinho: Trichechus manatus. Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2011.p.80. (Espécies Ameaçadas).).

A maioria dos estudos aborda parâmetros relacionados à alimentação (BARBOSA et al., 2013BARBOSA, P.S.; DA SILVA, V.M.F.; JUNIOR, G.P. Tempo de passagem de duas dietas no trato gastrointestinal do peixe-boi da Amazônia Trichechus inunguis (Natterer, 1883) em cativeiro. Acta Amazônica, v.43, n.3, p.365-370, 2013.; GUTERRES-PAZIN et al. 2013GUTERRES-PAZIN, M.G.; PAZIN, V.F.V.; ROSAS, F.C.W.; MARMONTEL, M. Plants with toxic principles eaten by the Amazonian manatee (Trichechus inunguis) (Mammalia, Sirenia). Uakari, v.9, n.1, p.61-66, 2013.), sendo escassos os estudos que relacionem a alimentação com parâmetros comportamentais.

Considerando o fato de a espécie ter desenvolvido importante papel no desenvolvimento da região amazônica, sendo abatido para utilização de sua carne, além de possibilitar produtos diversos tais como, manteiga, óleo e couro (BEST, 1984) pode-se relacionar seu uso no passado com o uso de espécies de produção com fins comerciais. Buscando estudos sobre o desmame de mamíferos em cativeiro, são mais observados análises com espécies domésticas, dentre os quais se observa o desmame de leitões onde houve a variação no comportamento e nas características do sistema digestório. (ARAÚJO et al., 2011ARAÚJO, W.A.G.; BRUSTOLINI, P.C.; FERREIRA, A.S.; SILVA, F.C.O.; ABREU, M.L.T.; LANNA, E.A. Comportamento de leitões em função da idade de desmame. Revista Brasileira de Saúde e Produção Animal [online], v.12, n.3, p.758-769, 2011.; ROBLES-HUAYNATE et al., 2013ROBLES-HUAYNATE, R.A.; THOMAZ, M.C.; SANTANA, Á.E.; MASSON, G.C.I.H.; AMORIM, A.B.; SILVA, S.Z.; RUIZ, U.S.; WATANABE, P.H.; BUDIÑO, F.E.L. Efeito da adição de probiótico em dietas de leitões desmamados sobre as características do sistema digestório e de desempenho. Revista Brasileira de Saúde e Produção Animal [online], v.14, n.1, p.248-258, 2013.).

Estudo do comportamento animal são importantes no campo científico e se mostram relevantes para conservação de espécies ameaçadas de extinção como embasamento para reintrodução de animais e para promover o bem-estar animal (SNOWDON, 1999SNOWDON, C.T. O significado da pesquisa em comportamento animal. Estudos de Psicologia, v.4, n.2, p.365– 373, 1999.).

Nesse contexto, há a necessidade de se avaliar os diferentes comportamentos de T. inunguis visando constatar possíveis diferenças no padrão e execução dos mesmos nas duas fases nutricionais dos Sirênios que vivem em cativeiro (amamentação e herbivoria), fases estas intercaladas por um período de desmame.

MATERIAL E MÉTODOS

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) manteve ativa de 2008 a dezembro de 2013 uma base compartilhada do Centro Nacional de Pesquisa, Conservação e Manejo de Mamíferos Aquáticos – CMA/PA. Nessa base eram mantidos recintos para reabilitação de peixes-boi-da-amazônia formados por piscinas de fibra de vidro de tamanhos variados. Três recintos eram utilizados para animais na fase de desmame e herbivoria.

Os animais acolhidos no cativeiro em tela invariavelmente chegavam filhotes, oriundos de encalhes em regiões diversas (Tabela 1). Para execução do presente trabalho foi obtida pelo SISBIO/MMA a autorização para atividades com finalidade científica n° 30791-2.

Tabela 1
Características e procedência dos espécimes de Trichechus inunguis mantidos a Base Compartilhada do Centro Nacional de Pesquisa, Conservação e Manejo de Mamíferos Aquáticos - PA

Os filhotes chegaram em fase de lactação ao CMA/PA, sendo submetidos a ingerir, com uso de mamadeiras, um sucedâneo elaborado com leite integral (para maior parte dos animais) e/ou leite de soja, óleo de canola, água morna e um suplemento vitamínico mineral aminoacídico comercial adicionado a dieta apenas na primeira alimentação do dia (Tabela 2).

Tabela 2
Composição da alimentação ministrada para cada espécime de Trichechus inunguis em cativeiro na base do CMA/PA durante amamentação artificial

A dieta líquida da fase de amamentação foi sendo substituída gradualmente ocorrendo um aumento no fornecimento de vegetais. O peixe-boi-da-amazônia é um animal herbívoro, que na natureza se alimenta especialmente de plantas emergentes, representadas principalmente por gramíneas (COLARES & COLARES, 2002COLARES, I.G.; COLARES, E.P. Food Plants Eaten by Amazonian Manatees (Trichechus inunguis, Mammalia: Sirenia). Brasilian Archives of Biology and Tecnology, v.45, n.1, p.67-72, 2002.). Quando em cativeiro, os filhotes são alimentados com fórmulas artificiais fornecidas por meio de mamadeiras ou com plantas dos gêneros Urochloa, Halodule, Gracilaria, Cryptonema, dentre outros, além de frutos, legumes e verduras (COLARES et al., 2000COLARES, E.P.; COLARES, I.G.; BIANCHINI, A.; SANTOS, E.A. Seasonal variations in blood parameters of the amazonian manatee, Trichechus inunguis. Brasilian Archives of Biology and Tecnology, v.43, n.2, p.165-171, 2000.; PANTOJA et al., 2010PANTOJA, T.M.A.; ROSAS, F.C.W.; DA SILVA, V.M.F.; DOS SANTOS, A.M.F. Urinary parameters of Trichechus inunguis (Mammalia, Sirenia): reference values for the Amazonian Manatee. Brazilian Journal of Biology, v.70, n.3, p.607-615, 2010.; ANZOLIN et al., 2014ANZOLIN, D.G.; CARVALHO, P.S.M.; VIANAJR, P.C.; NORMANDE, I.C.; SOUTO, A.S. Stereotypical behaviour in captive West Indian manatee (Trichechus manatus). Jornal of the Marine Biological Association of the U K, v.94, n.6, p. 1133-1137, 2014.; BARBOSA et al., 2013BARBOSA, P.S.; DA SILVA, V.M.F.; JUNIOR, G.P. Tempo de passagem de duas dietas no trato gastrointestinal do peixe-boi da Amazônia Trichechus inunguis (Natterer, 1883) em cativeiro. Acta Amazônica, v.43, n.3, p.365-370, 2013.). No presente trabalho, três espécies de plantas foram ofertadas: Pistia stratiotes L., conhecida como “alface d'água”; Eichornia crassipes (Mart.) Solms, popularmente conhecida como “mururé” ou “aguapé”; Hymenachne amplexicaulis (Rudge) Nees, conhecida como “rabo de rato”. Todas eram coletadas em dois lagos (Água Preta e Bolonha) de uma Unidade de Conservação Estadual próxima ao cativeiro (Parque Estadual do Utinga – PEUt). Pistia stratiotes também era coletada em um pequeno lago que fica dentro do campus da UFRA.

Os exemplares de T. inunguis que chegaram filhotes, em fase de amamentação, em razão do manejo implementado na base do CMA/PA. Passaram por três fases nutricionais: amamentação, quando os animais eram alimentados com quatro refeições ao dia; desmame, quando tiveram suas refeições retiradas de forma paulatina, sendo uma retirada a cada dez dias; herbivoria, quando eram submetidos à dieta com três espécies de vegetais.

A coleta de dados relacionados aos aspectos comportamentais (monitoramento etológico) ocorreu nas três fases nutricionais, O repertório de comportamentos observados foi baseado em um etograma elaborado para T. manatus cativos (MEDINA, 2008MEDINA, V.E.H. Comportamento do peixe-boi (Trichechus manatus manatus) nos oceanários de Itamaracá: manejo e condições abióticas. 98f. 2008. Dissertação (Mestrado em Oceanografia) - Universidade Federal de Pernambuco.) e aspectos comportamentais analisados por Araujo & Marcondes (2003)ARAUJO, J.P.; MARCONDES, M.C. Comportamento de dois peixes-bois marinhos (Trichechus manatus manatus) em sistemas de cativeiro no ambiente natural da Barra de Mamanguape, Estado da Paraiba, Brasil, Bioikos. v.17, n.1/2;, p.21-32, 2003., assim como estereotipias analisadas por Anzolin et al. (2013). No presente trabalho foram realizadas observações de animal focal, método usado para animais ou grupo de animais que podem ser facilmente observados, como proposto por Araújo et al. (2010)ARAÚJO, W.A.G.; FERREIRA, A.S.; RENAUDEAU, D.; BRUSTOLINI, P.C.; SILVA, B.A.N. Effects of diet protein source on the behavior of piglets after weaning. Livestock Science, v.132, p.35-40, 2010..

Durante o monitoramento comportamental no período de desmame os animais foram agrupados em três recintos: recinto 1 - 3 animais (Malu, Guri, Vitória - 7,2m3); Recinto 2 - 2 animais (Eva e Guerreiro - 7,2m3); Recinto 3 - 2 animais (Ana e Kiko - 5,2m3).

A coleta de dados comportamentais realizada em outubro e novembro de 2011, que ocorreu antes do desmame, obedeceu horários e critérios em todos os momentos (antes, durante e pós desmame). Tal qual Araujo & Marcondes (2003)ARAUJO, J.P.; MARCONDES, M.C. Comportamento de dois peixes-bois marinhos (Trichechus manatus manatus) em sistemas de cativeiro no ambiente natural da Barra de Mamanguape, Estado da Paraiba, Brasil, Bioikos. v.17, n.1/2;, p.21-32, 2003., quando analisaram vinte e um comportamentos de dois peixes-boi marinhos (Trichechus manatus), os comportamentos foram anotados em planilhas de checagem previamente elaboradas, com registros em intervalos de 5 minutos.

Durante o período de desmame, cada animal teve o comportamento observado durante quatro horas após a retirada de cada uma das quatro mamadeiras totalizando dezesseis horas de coleta por animal focal, ocorrendo três dias de monitoramento em cada um dos três recintos. Também foi realizada a observação contínua do comportamento dos animais novamente, com o mesmo número de horas por animal e nos mesmos horários, cento e vinte dias após o desmame completo. Essa coleta de dados, com animais desmamados em herbivoria plena, ocorreu um ano depois da coleta realizada durante a fase de amamentação.

O número de execuções dos comportamentos distintos realizados a cada duas horas forneceram o N amostral que originou a planilha submetida à análise estatística. Para verificar possíveis variações na execução de comportamentos ao longo das três etapas de nutrição foi realizada análise de variância Kruskal-Wallis, sendo as médias comparadas pelo Teste Dunn a 5% no BIOESTAT 5.0.

Também efetuou-se o teste de Mann-Whitney pares de categorias (mamando x desmamando; mamando x herbivoria; desmamando x herbivoria) para a diferença entre as amostras comportamentais

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Alimentar-se foi um dos comportamentos onde se observa grande diferença nas médias, ocorrendo igualdade estatística entre os períodos nutricionais de desmame e herbivoria. Como esperado, o padrão de execução desse comportamento durante a amamentação difere estatisticamente das outras fases nutricionais, quando passa a se tornar mais frequente. A média menor para o período de amamentação caracteriza uma busca maior por alimentos quando o animal está desmamando ou em fase de plena herbivoria. A resposta com variação comportamental relacionada às condições de amamentação e desmame pôde ser observada em estudo com cordeiros. Os animais que não receberam suplementos alimentares tiveram um tempo de pastejo superior (SILVA et al., 2011SILVA, M.G.B.; MONTEIRO, A.L.G.; SILVA, C.J.A.; FERNANDES, S.R.; SILVA, A.L.P.; PAULA, E.F.E. Estratégias de desmame precoce e de suplementação concentrada no comportamento diário de cordeiros produzidos em pastagem de Tifton-85. Revista Brasileira de Saúde e Produção Animal [online], v.12, n.4, p.1084-1094, 2011.).

A coprofagia (ingestão de fezes) foi mais observada no período de amamentação, apesar de não apresentar diferença estatística significativa quando comparada com dados de frequência levantados nas outras etapas nutricionais através do teste de Kruskal-Wallis e no teste comparativo de Dunn. A comparação das frequências aos pares (mamando x desmamando; mamando x herbivoria; desmamando x herbivoria) pelo teste de Mann-Whitney resultou em diferença estatística entre os períodos nutricionais de amamentação e herbivoria (p valor unilateral = 0,009; p valor bilateral = 0,018), tendo maior ocorrência na fase de amamentação.

O girar em parafuso e o repouso na superfície ocorreram mais no período de amamentação, sem diferenças significativas para os outros períodos. Já o comportamento repousar no fundo apresentou diferença estatística significativa entre os três períodos, ocorrendo mais durante a fase de desmame, seguido do período de plena herbivoria e de amamentação. Em exemplares de T. manatus mantidos em semi-cativeiros na Paraiba (Tabela 3), o repouso no fundo foi mais observado no período de baixa-mar que nos períodos de maré alta (ARAUJO & MARCONDES, 2003ARAUJO, J.P.; MARCONDES, M.C. Comportamento de dois peixes-bois marinhos (Trichechus manatus manatus) em sistemas de cativeiro no ambiente natural da Barra de Mamanguape, Estado da Paraiba, Brasil, Bioikos. v.17, n.1/2;, p.21-32, 2003.).

Tabela 3
Frequências médias de ocorrência dos diferentes comportamentos de T. inunguis em cativeiro em três fases nutricionais

Repousar na coluna d'água foi um comportamento com diferença significativa no padrão de execução entre o período de amamentação e os demais períodos. Os animais executaram mais esse comportamento quando amamentavam e praticamente deixaram de fazer quando estavam desmamando e em herbivoria plena. Provavelmente, o maior investimento de tempo no forrageamento levou ao abandono desse comportamento. Durante o período de desmame os animais se deslocaram mais em círculos, apresentando diferença estatística entre as fases de amamentação e desmame (p= 0,007).

Do total de quatro comportamentos caracterizados pelo repouso (na superfície, no fundo, de lado e na coluna d'água) o único que foi aumentado nas fases de desmame e herbivoria foi o repouso no fundo. Este padrão nos mostra que a novidade, imposta pela ausência do sucedâneo ofertado por meio de mamadeiras e maior oferta de vegetais, faz os animais ficarem mais ativos. Notadamente houve a modificação dos comportamentos relacionados ao repouso. Talvez o repouso mais próximo aos tratadores, que antes eram os responsáveis por praticamente todo alimento que recebiam, não mais seja importante ao ponto de ser necessário repousar próximo de onde se recebe as mamadeiras, que é o caso do repouso na coluna d'água, na superfície e de lado. Outra razão pode estar associada à quantidade de material vegetal ingerido, que pode sugerir diminuição da flutuabilidade.

Mergulhar com exposição de cauda foi mais observados na fase de plena herbivoria, divergindo das demais fases nutricionais (mamando e desmamando), as quais apresentam igualdade estatística. A interação com objetos, que nos recintos estudados se limitava ao cano da água de abastecimento, também foi mais frequente durante as fases de desmame e de herbivoria plena, iguais estatisticamente, diferindo da fase onde os animais mamavam.

O comportamento de executar um giro incompleto foi mais frequente durante a fase de desmame, sendo de ocorrência distinta dos períodos de amamentação e herbivoria plena.

Virar de ventre para cima foi mais um dos comportamentos que apresentou variação entre os três períodos nutricionais dos animais cativos estudados, ocorrendo mais quando estavam mamando ou desmamando.

Os comportamentos mexer o focinho, mamar, coçar, deslocar-se em círculo no fundo, deslocar-se de ventre para cima, deslocar-se de lado, vai e vem na parede, deslocar-se em parafuso, executar giro completo, virar de lado, virar de ventre para cima e pular e o comportamento repousar de lado, não apresentaram diferenças entre as três fases nutricionais.

Os comportamentos da categoria afiliativa foram diminuídos à medida que os animais saíram da amamentação para herbivoria (Tabela 4). Os animais tenderam a diminuir o contato entre si, pois provavelmente a busca por alimento trouxe o desinteresse na interação. O único comportamento da categoria afiliativa que ocorreu menos durante a amamentação e herbivoria e mais durante a fase de desmame foi o deslocamento em círculos juntos. Os comportamentos, abraçar, tocar com nadadeira, cheirar, apresentaram diferença significativa entre a fase que os animais mamavam e as demais fases (desmamando e herbivoria plena - iguais entre si), ocorrendo com maior frequência na fase de amamentação.

Tabela 4
Frequências de ocorrência dos diferentes comportamentos de T. inunguis em cativeiro, da categoria afiliativa, nas três fases nutricionais, em 2 horas de monitoramento

Os comportamentos beijar, limpar o corpo, tocar o focinho, repousar na superfície juntos, deslocar-se em círculo juntos e repousar de ventre pra cima abraçado, não apresentaram diferença estatística significativa nas três distintas fases

Repousar no fundo juntos foi mais comum quando os animais mamavam, apresentando diferença com os demais momentos.

Analisando os comportamentos da categoria estereotipia de cativeiro aferidos na Tabela 5, o comportamento dar cabeçada na parede foi mais observado durante a fase de desmame, apresentando diferença entre os períodos (p valor = 0,041). Porém, o teste posterior de Dunn não revelou divergência entre períodos. Pelo teste de Mann-Whitney, houve diferença estatística entre a fase nutricional amamentando e desmamando (p valor unilateral = 0,01 e p valor bilateral = 0,02). Essa estereotipia de cativeiro foi estudada por Anzolin et al. (2013) em Trichechus manatus cativos, onde o comportamento só foi observado em dois dos sete animais alocados em oceanários (tanques interconectados com 67,84m3 31,80m3), não sendo observado no grupo de quatro animais que ficavam em currais de madeira no estuário do rio Mamanguape no estado da Paraiba, com uma área de lâmina d'água de 2500m2, ou no outro grupo de quatro animais que estavam alocados no estuário do rio Tatuamunha, no estado de Alagoas.

Tabela 5
Frequências de ocorrência dos diferentes comportamentos de T. inunguis em cativeiro, da categoria estereotipia de cativeiro, nas três fases nutricionais, em 2 horas de monitoramento

Deslocar-se em círculos foi um comportamento que apresentou maior ocorrência durante a fase de amamentação, divergindo estatisticamente da fase de plena herbivoria, (Tabela 2). Anzolin et al. (2013) observaram que esse mesmo comportamento (“vai e volta na parede” e “deslocar-se em círculos”) foram mais frequentes em T. manatus do grupo de animais de cativeiros menores, nos oceanários artificiais de fibra, quando comparados aos animais cativos alocados em grandes currais de madeira em ambiente estuarino natural. Kastelein & Wiepkema (1989)KASTELEIN, R.A.; WIEPKEMA, P.R. A digging trough as occupational therapy for Pacific Walrusses (Odobenus rosmarus divergens) in human care. Aquatic Mammals, v.15, n.1, p.9-17, 1989., num estudo com morsas em cativeiro observaram redução do comportamento de nadar em círculos, com o enriquecimento proporcionado pelo acesso dificultado para obtenção de alimento.

Buscar o alimento se mostra como uma atividade capaz de reduzir o estresse e provavelmente fez diminuir significativamente a execução de um comportamento classificado como uma estereotipia de cativeiro.

As estereotipias de cativeiro tem o importante papel de indicar o bem-estar dos animais cativos. Os comportamentos classificados nessa categoria (vai e volta, dar cabeçada na parede, vai e volta na parede e deslocar-se em círculos) no presente trabalho também foram objeto de estudo para outras espécies de mamíferos aquáticos (ANZOLIN et al., 2013; KASTELEIN; WIEPKEMA,1989KASTELEIN, R.A.; WIEPKEMA, P.R. A digging trough as occupational therapy for Pacific Walrusses (Odobenus rosmarus divergens) in human care. Aquatic Mammals, v.15, n.1, p.9-17, 1989.).

  • 1
    Parte da dissertação de mestrado do primeiro autor.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2015
  • Aceito
    01 Dez 2016
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