Acessibilidade / Reportar erro

Corticosteroides na PAC grave: pontos a favor

A pneumonia adquirida na comunidade (PAC) grave ocorre em cerca de 10% dos pacientes hospitalizados por PAC, e ainda hoje é responsável por elevados níveis de morbidade e mortalidade. A mortalidade observada na população de um estudo multicêntrico de PAC grave causada por pneumococos foi de 29%, apresentando também porcentagens elevadas de pacientes com necessidade de ventilação mecânica e presença de choque.(1Mongardon N, Max A, Bouglé A, Pène F, Lemiale V, Charpentier J, et al. Epidemiology and outcome of severe pneumococcal pneumonia admitted to intensive care unit: a multicenter study. Crit Care. 2012;16(4):R155.) Os pacientes com PAC grave podem morrer a despeito da terapia antibiótica precoce e adequada, o que provavelmente se deve, em parte, a respostas inflamatórias local e sistêmica desequilibradas e desproporcionais, fato que contribui para o comprometimento da troca gasosa alveolar, sepse e disfunção de órgãos-alvo.(2Rittirsch D, Flierl MA, Ward PA. Harmful molecular mechanisms in sepsis. Nat Rev Immunol. 2008;8(10):776-87. Review.)

Não há dúvidas de que a terapêutica corticosteroide sistêmica adjuvante atenua as respostas inflamatórias local e sistêmica,(3Montón C, Ewig S, Torres A, El-Ebiary M, Filella X, Rañó A, et al. Role of glucocorticoids on inflammatory response in nonimmunosuppressed patients with pneumonia: a pilot study. Eur Respir J. 1999;14(1):218-20.) e potencialmente diminui a ocorrência de síndrome da angústia respiratória, sepse e mortalidade. Em um modelo de pesquisa em porquinhos sob ventilação mecânica e infecção por Pseudomonas aeruginosa, observamos que, nos animais tratados com corticosteroides mais antibióticos, a pneumonia foi menos grave, do ponto de vista histológico, e a carga bacteriana pulmonar foi menor.(4Sibila O, Mortensen EM, Anzueto A, Laserna E, Restrepo MI. Prior cardiovascular disease increases long-term mortality in COPD patients with pneumonia. Eur Respir J. 2014;43(1):36-42.) Foram realizados diversos estudos clínicos controlados randomizados envolvendo seres humanos, sendo que os participantes eram, em sua maioria, hospitalizados e com PAC não grave. Os resultados desses estudos foram negativos(5Snijders D, Daniels JM, de Graaff CS, van der Werf TS, Boersma WG. Efficacy of corticosteroids in community-acquired pneumonia: a randomized double-blinded clinical trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;181(9):975-82.) ou demonstraram uma redução do tempo de permanência no hospital(6Meijvis SC, Hardeman H, Remmelts HH, Heijligenberg R, Rijkers GT, van Velzen-Blad H, et al. Dexamethasone and length of hospital stay in patients with community-acquired pneumonia: a randomised, doubleblind, placebo-controlled trial. Lancet. 2011;377(9782):2023-30.) ou do tempo necessário para obter estabilidade clínica.(7GBD 2013 Mortality and Causes of Death Collaborators. Global, regional, and national age-sex specific all-cause and cause-specific mortality for 240 causes of death, 1990-2013: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2013. Lancet. 2015;385(9963):117-71.) Foram previamente realizados quatro estudos clínicos em PAC grave.(8Confalonieri M, Urbino R, Potena A, Piattella M, Parigi P, Puccio G, et al. Hydrocortisone infusion for severe community-acquired pneumonia: a preliminary randomized study. Am J Respir Crit Care Med. 2005;171(3):242-8.

Nafae RM, Ragab MI, Amany FM, Rashed SB. Adjuvant role of corticosteroids in the treatment of community-acquired pneumonia. Egypt J Chest Dis Tuberc. 2013;62(3):439-45.

10 Sabry NA, Omar EE. Corticosteroids and ICU course of Community-Acquired Pneumonia in Egyptian Settings. Pharmacol Pharm. 2011;2:73-81.
-1111 Marik P, Kraus P, Sribante J, Havlik I, Lipman J, Johnson DW. Hydrocortisone and tumor necrosis factor in severe community-acquired pneumonia. A randomized controlled study. Chest. 1993;104(2):389-92.) Uma metanálise, que incluiu um destes estudos,(1212 Nie W, Zhang Y, Cheng J, Xiu Q. Corticosteroids in the treatment of community-acquired pneumonia in adults: a meta-analysis. PLoS One. 2012;7(10):e47926.) demonstrou que o efeito combinado de esteroides na PAC grave é uma redução da mortalidade.

No entanto, na maior parte dos estudos clínicos controlados randomizados, estão presentes as seguintes falhas:

  1. A inclusão de pacientes com PAC de baixa gravidade, isto é, classes PORT I a III. Tais pacientes têm baixa mortalidade e, consequentemente, seria muito difícil a realização de um estudo controlado randomizado nessa população utilizando mortalidade como parâmetro primário.

  2. A inclusão de pacientes independentemente de seu nível inicial de inflamação. Segundo a justificativa para uso de esteroides em PAC, é imperativa a ocorrência de elevada resposta inflamatória. Até aqui, essa variável não foi levada em conta. Além disso, pacientes com alta resposta inflamatória (como proteína C-reativa - PCR - elevada) têm taxas mais elevadas de falha do tratamento(1313 Menéndez R, Martínez R, Reyes S, Mensa J, Filella X, Marcos MA, et al. Biomarkers improve mortality prediction by prognostic scales in community-acquired pneumonia. Thorax. 2009;64(7):587-91.) e mortalidade.(1414 Chalmers JD, Smith MP, McHugh BJ, Doherty C, Govan JR, Hill AT. Short- and long-term antibiotic treatment reduces airway and systemic inflammation in non-cystic fibrosis bronchiectasis. Am J Respir Crit Care Med. 2012;186(7):657-65.)

  3. A posologia, o tipo e a duração dos tratamentos são muito diferentes entre os diferentes estudos controlados randomizados, o que torna muito difícil estabelecer comparações entre eles.

  4. Os parâmetros finais primários são diferentes entre os estudos. Alguns deles são “fáceis”, como a duração da hospitalização ou estabilidade clínica. O primeiro é muito subjetivo, enquanto o segundo é guiado pela abolição da febre pelos corticosteroides.

Conduzimos um estudo clínico randomizado controlado(1515 Torres A, Sibila O, Ferrer M, Polverino E, Menendez R, Mensa J, et al. Effect of corticosteroids on treatment failure among hospitalized patients with severe community-acquired pneumonia and high inflammatory response: a randomized clinical trial. JAMA. 2015;313(7):677-86.) que comparou metilprednisolona (0,5mg/kg a cada 12 horas por 5 dias) ao placebo, com as seguintes importantes características diferenciais:

  1. Só incluímos pacientes com PAC grave, que apresentavam critérios para PAC grave (critérios maiores ou menores modificados da American Thoracic Society - ATS - ou Pneumonia Severity Index - PSI - V).

  2. Selecionamos um limite de PCR no sangue de 15mg/L.

  3. Em vez de considerar mortalidade como parâmetro final primário, escolhemos falha do tratamento. A falha do tratamento na PAC é associada com elevada mortalidade, o que nosso grupo já demonstrou previamente. No presente estudo, utilizamos um parâmetro final composto que incluía falha precoce ou tardia do tratamento.

  4. Monitoramos a resposta inflamatória sistêmica (PCR, IL6, IL8, IL10 e fator de necrose tumoral alfa -TNF-α) até o sétimo dia após a inclusão do paciente no estudo.

Observamos uma redução de 31 para 13% nas falhas do tratamento (p = 0,02). Em outras palavras, os corticosteroides reduziram o risco de falha do tratamento com odds ratio de 0,34. A mortalidade não diferiu entre os grupos (10% no braço com metilprednisolona versus 15% no braço com placebo; p = 0,37). Essa redução na falha do tratamento foi mais evidente na falha tardia do tratamento (3% versus 25%; p = 0,001) e, especialmente, na progressão radiográfica, uma das variáveis incluídas na definição composta de falha tardia do tratamento (2% versus 15%; p = 0,007). As taxas de ocorrência de efeitos colaterais não foram importantes e foram similares entre os braços de tratamento.

Potenciais pontos falhos em nosso estudo foram o período longo de recrutamento (8 anos) e o uso de metilprednisolona por apenas 5 dias, com uma interrupção abrupta do tratamento. Porém monitoramos a inflamação até o sétimo dia e não observamos rebote da resposta inflamatória.

Qual a interpretação de nossos resultados?

Em concordância com o editorial que acompanha o artigo,(1616 Wunderink R. Corticosteroids for severe community-acquired pneumonia: not for everyone. JAMA. 2015;313(7):673-4.) explicamos que as baixas taxas de falha do tratamento, particularmente falha tardia, e de progressão radiográfica podem ser devidas à interrupção da progressão da síndrome de angústia respiratória aguda ou ao potencial bloqueio da reação de Jarisch-Herxheimer, os quais são considerados ocorrerem em razão das elevadas concentrações de liberação de citocinas após iniciar a antibioticoterapia. Esse processo é, possivelmente, influenciado pela liberação de endotoxinas ou outros mediadores bacterianos em pacientes com uma elevada carga bacteriana, considerando que isso também ocorre na doença meningocócica.(1717 Darton T, Guiver M, Naylor S, Jack DL, Kaczmarski EB, Borrow R, et al. Severity of meningococcal disease associated with genomic bacterial load. Clin Infect Dis. 2009;48(5):587-94.)

Diante do exposto, é tempo de começar a introduzir corticosteroides na prática clínica para tratar a PAC grave. Para fazê-lo, precisamos selecionar pacientes com PAC grave e elevada resposta inflamatória sistêmica avaliada por meio da PCR. Em nosso estudo, necessitamos também excluir pacientes com pneumonia por influenza.(1818 Lee N, Leo YS, Cao B, Chan PK, Kyaw WM, Uyeki TM, et al. Neuraminidase inhibitors, superinfection and corticosteroids affect survival of influenza patients. Eur Respir J. 2015;45(6):1642-52.) Desconhecemos o que ocorreria em casos de outras pneumonias puramente virais (adenovírus, rinovírus e vírus sincicial respiratório). Em todo caso, uma PCR elevada assegura que a pneumonia não é puramente viral.

Os próximos passos são os seguintes:

  1. Investigar as potenciais sinergias entre macrolídeo e corticosteroides. Em um modelo de pneumonia por Mycoplasma pneumoniae em animais, a associação de um macrolídeo com esteroides foi benéfica do ponto de vista histológico.(1919 Tagliabue C, Techasaensiri C, Torres JP, Katz K, Meek C, Kannan TR, et al. Efficacy of increasing dosages of clarithromycin for treatment of experimental Mycoplasma pneumoniae pneumonia. J Antimicrob Chemother. 2011;66(10):2323-9.) Essas investigações podem ser realizadas em modelos de pneumonia em animais.

  2. Realizar uma metanálise utilizando os dados individuais com foco particular em PAC grave, o que pode fornecer informações clínicas úteis.

Em resumo, os corticosteroides são úteis no tratamento de PAC grave e podem ajudar a reduzir a falha do tratamento e, provavelmente, a mortalidade. As duas premissas importantes para sua utilização são a presença de elevada resposta inflamatória sistêmica e descartar a presença de pneumonia por influenza.

  • Editor responsável: Felipe Dal Pizzol

REFERÊNCIAS

  • 1
    Mongardon N, Max A, Bouglé A, Pène F, Lemiale V, Charpentier J, et al. Epidemiology and outcome of severe pneumococcal pneumonia admitted to intensive care unit: a multicenter study. Crit Care. 2012;16(4):R155.
  • 2
    Rittirsch D, Flierl MA, Ward PA. Harmful molecular mechanisms in sepsis. Nat Rev Immunol. 2008;8(10):776-87. Review.
  • 3
    Montón C, Ewig S, Torres A, El-Ebiary M, Filella X, Rañó A, et al. Role of glucocorticoids on inflammatory response in nonimmunosuppressed patients with pneumonia: a pilot study. Eur Respir J. 1999;14(1):218-20.
  • 4
    Sibila O, Mortensen EM, Anzueto A, Laserna E, Restrepo MI. Prior cardiovascular disease increases long-term mortality in COPD patients with pneumonia. Eur Respir J. 2014;43(1):36-42.
  • 5
    Snijders D, Daniels JM, de Graaff CS, van der Werf TS, Boersma WG. Efficacy of corticosteroids in community-acquired pneumonia: a randomized double-blinded clinical trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;181(9):975-82.
  • 6
    Meijvis SC, Hardeman H, Remmelts HH, Heijligenberg R, Rijkers GT, van Velzen-Blad H, et al. Dexamethasone and length of hospital stay in patients with community-acquired pneumonia: a randomised, doubleblind, placebo-controlled trial. Lancet. 2011;377(9782):2023-30.
  • 7
    GBD 2013 Mortality and Causes of Death Collaborators. Global, regional, and national age-sex specific all-cause and cause-specific mortality for 240 causes of death, 1990-2013: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2013. Lancet. 2015;385(9963):117-71.
  • 8
    Confalonieri M, Urbino R, Potena A, Piattella M, Parigi P, Puccio G, et al. Hydrocortisone infusion for severe community-acquired pneumonia: a preliminary randomized study. Am J Respir Crit Care Med. 2005;171(3):242-8.
  • 9
    Nafae RM, Ragab MI, Amany FM, Rashed SB. Adjuvant role of corticosteroids in the treatment of community-acquired pneumonia. Egypt J Chest Dis Tuberc. 2013;62(3):439-45.
  • 10
    Sabry NA, Omar EE. Corticosteroids and ICU course of Community-Acquired Pneumonia in Egyptian Settings. Pharmacol Pharm. 2011;2:73-81.
  • 11
    Marik P, Kraus P, Sribante J, Havlik I, Lipman J, Johnson DW. Hydrocortisone and tumor necrosis factor in severe community-acquired pneumonia. A randomized controlled study. Chest. 1993;104(2):389-92.
  • 12
    Nie W, Zhang Y, Cheng J, Xiu Q. Corticosteroids in the treatment of community-acquired pneumonia in adults: a meta-analysis. PLoS One. 2012;7(10):e47926.
  • 13
    Menéndez R, Martínez R, Reyes S, Mensa J, Filella X, Marcos MA, et al. Biomarkers improve mortality prediction by prognostic scales in community-acquired pneumonia. Thorax. 2009;64(7):587-91.
  • 14
    Chalmers JD, Smith MP, McHugh BJ, Doherty C, Govan JR, Hill AT. Short- and long-term antibiotic treatment reduces airway and systemic inflammation in non-cystic fibrosis bronchiectasis. Am J Respir Crit Care Med. 2012;186(7):657-65.
  • 15
    Torres A, Sibila O, Ferrer M, Polverino E, Menendez R, Mensa J, et al. Effect of corticosteroids on treatment failure among hospitalized patients with severe community-acquired pneumonia and high inflammatory response: a randomized clinical trial. JAMA. 2015;313(7):677-86.
  • 16
    Wunderink R. Corticosteroids for severe community-acquired pneumonia: not for everyone. JAMA. 2015;313(7):673-4.
  • 17
    Darton T, Guiver M, Naylor S, Jack DL, Kaczmarski EB, Borrow R, et al. Severity of meningococcal disease associated with genomic bacterial load. Clin Infect Dis. 2009;48(5):587-94.
  • 18
    Lee N, Leo YS, Cao B, Chan PK, Kyaw WM, Uyeki TM, et al. Neuraminidase inhibitors, superinfection and corticosteroids affect survival of influenza patients. Eur Respir J. 2015;45(6):1642-52.
  • 19
    Tagliabue C, Techasaensiri C, Torres JP, Katz K, Meek C, Kannan TR, et al. Efficacy of increasing dosages of clarithromycin for treatment of experimental Mycoplasma pneumoniae pneumonia. J Antimicrob Chemother. 2011;66(10):2323-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2015
  • Aceito
    06 Ago 2015
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br