Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação hemodinâmica não invasiva por ecocardiograma Doppler

RESUMO

A abordagem do doente hemodinamicamente instável constitui um desafio diagnóstico e terapêutico. A estabilização do doente deve ser rápida e eficaz, não existindo muita margem para erro. Esta estreita janela de intervenção faz com que seja necessário recorrer a métodos de avaliação hemodinâmica rápidos e precisos. A ecocardiografia constitui o método de eleição para a avaliação, à beira do leito, do doente em choque circulatório. De fato, foram os médicos intensivistas que cedo reconheceram as potencialidades do ecocardiograma com estudo Doppler para a abordagem inicial do doente em falência circulatória. O ecocardiograma permite uma avaliação cardíaca anatômica e funcional rápida, a qual pode incluir avaliação hemodinâmica não invasiva por meio do estudo Doppler. Tal estudo integrado pode fornecer dados de extrema importância para a compreensão dos mecanismos subjacentes à instabilidade hemodinâmica do doente, permitindo a instituição célere das medidas terapêuticas apropriadas. No presente artigo, propomo-nos a descrever os achados ecocardiográficos mais relevantes em uma abordagem prática e dirigida ao doente crítico com instabilidade hemodinâmica.

Descritores:
Ecocardiografia Doppler; Hemodinâmica

ABSTRACT

The approach for treating a hemodynamically unstable patient remains a diagnostic and therapeutic challenge. Stabilization of the patient should be rapid and effective, but there is not much room for error. This narrow window of intervention makes it necessary to use rapid and accurate hemodynamic evaluation methods. Echocardiography is the method of choice for the bedside evaluation of patients in circulatory shock. In fact, it was intensive care physicians who recognized the potential of Doppler echocardiography for the initial approach to patients in circulatory failure. An echocardiogram allows rapid anatomical and functional cardiac evaluation, which may include non-invasive hemodynamic evaluation using a Doppler study. Such an integrated study may provide data of extreme importance for understanding the mechanisms underlying the hemodynamic instability of the patient to allow the rapid institution of appropriate therapeutic measures. In the present article, we describe the most relevant echocardiographic findings using a practical approach for critical patients with hemodynamic instability.

Keywords:
Echocardiography, Doppler; Hemodynamic

INTRODUÇÃO

O paciente hemodinamicamente instável é um doente grave com o potencial de evoluir para choque circulatório e morte em poucas horas. Assim, devem ser utilizados métodos de diagnóstico rápidos, precisos e reprodutíveis, de forma a instituir rapidamente as atitudes terapêuticas adequadas.

Por meio de uma avaliação cardíaca anatômica e funcional dirigida, o ecocardiograma pode fornecer dados de extrema importância para a compreensão dos mecanismos subjacentes à instabilidade hemodinâmica de determinado doente, ou mesmo em contexto de pós-parada cardiorrespiratória, permitindo a instituição célere das medidas terapêuticas apropriadas.(11 Neskovic AN, Hagendorff A, Lancellotti P, Guarracino F, Varga A, Cosyns B, Flachskampf FA, Popescu BA, Gargani L, Zamorano JL, Badano LP; European Association of Cardiovascular Imaging. Emergency echocardiography: the European Association of Cardiovascular Imaging recommendations. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2013;14(1):1-11.,22 Lancellotti P, Price S, Edvardsen T, Cosyns B, Neskovic AN, Dulgheru R, et al. The use of echocardiography in acute cardiovascular care: recommendations of the European Association of Cardiovascular Imaging and the Acute Cardiovascular Care Association. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2015;16(2):119-46.)

Foram os médicos intensivistas que cedo reconheceram as potencialidades do ecocardiograma com estudo Doppler (eco-Doppler) para a abordagem inicial do doente em falência circulatória.(33 Jardin F, Valtier B, Beauchet A, Dubourg O, Bourdarias JP. Invasive monitoring combined with two-dimensional echocardiographic study in septic shock. Intensive Care Med. 1994;20(8):550-4.) À avaliação anatômica e funcional classicamente realizada foi acrescentada a avaliação hemodinâmica com o estudo Doppler, nomeadamente cálculo do débito cardíaco (DC), estimativa da pressão venosa central (PVC), cálculo das resistências vasculares periféricas (RVP) e estimativa das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo (VE). Ao longo das últimas décadas, o eco-Doppler tornou-se ferramenta cada vez mais disseminada nos cuidados intensivos, na abordagem do doente em choque circulatório.(11 Neskovic AN, Hagendorff A, Lancellotti P, Guarracino F, Varga A, Cosyns B, Flachskampf FA, Popescu BA, Gargani L, Zamorano JL, Badano LP; European Association of Cardiovascular Imaging. Emergency echocardiography: the European Association of Cardiovascular Imaging recommendations. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2013;14(1):1-11.

2 Lancellotti P, Price S, Edvardsen T, Cosyns B, Neskovic AN, Dulgheru R, et al. The use of echocardiography in acute cardiovascular care: recommendations of the European Association of Cardiovascular Imaging and the Acute Cardiovascular Care Association. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2015;16(2):119-46.

3 Jardin F, Valtier B, Beauchet A, Dubourg O, Bourdarias JP. Invasive monitoring combined with two-dimensional echocardiographic study in septic shock. Intensive Care Med. 1994;20(8):550-4.

4 Vieillard-Baron A, Slama M, Cholley B, Janvier G, Vignon P. Echocardiography in the intensive care unit: from evolution to revolution? Intensive Care Med. 2008;34(2):243-9.
-55 Dias FS, Rezende EA, Mendes CL, Silva JM Jr, Sanches JL. Hemodynamic monitoring in the intensive care unit: a Brazilian perspective. Rev Bras Ter Intensiva; 2014;26(4):360-6.)

A competência para realização de ecocardiograma é habitualmente separada em três níveis de experiência, reconhecendo-se ainda um nível prévio, mais básico, de ecocardiografia de emergência.(66 Price S, Via G, Sloth E, Guarracino F, Breitkreutz R, Catena E, Talmor D; World Interactive Network Focused on Critical UltraSound ECHO-ICU Group. Echocardiography practice, training and accreditation in the intensive care: document for the World Interactive Network Focused on Critical Ultrasound (WINFOCUS). Cardiovasc Ultrasound. 2008;6:49.) Esta última remete-nos para a identificação de achados de fácil visualização, enquadrando-se o exame no despiste de diagnósticos específicos, como o tamponamento cardíaco ou a embolia pulmonar. A ecocardiografia de emergência pode configurar-se como competência básica do médico de emergência, integrada nos protocolos de avaliação inicial dos doentes graves, principalmente em contexto de suporte avançado de vida. No entanto, a realização de exames mais exaustivos requer níveis superiores de competência. A figura 1 sumariza os diferentes níveis de competência em ecocardiografia.

Figura 1
Níveis de competência em ecocardiografia.

ETT - ecocardiograma transtorácico; ETE - ecocardiograma transesofágico. Fonte: adaptado de Price S, Via G, Sloth E, Guarracino F, Breitkreutz R, Catena E, Talmor D; World Interactive Network Focused on Critical UltraSound ECHO-ICU Group. Echocardiography practice, training and accreditation in the intensive care: document for the World Interactive Network Focused on Critical Ultrasound (WINFOCUS). Cardiovasc Ultrasound. 2008;6:49.(66 Price S, Via G, Sloth E, Guarracino F, Breitkreutz R, Catena E, Talmor D; World Interactive Network Focused on Critical UltraSound ECHO-ICU Group. Echocardiography practice, training and accreditation in the intensive care: document for the World Interactive Network Focused on Critical Ultrasound (WINFOCUS). Cardiovasc Ultrasound. 2008;6:49.)


Esta revisão destina-se principalmente aos médicos que realizam ecocardiografia de emergência e de nível I.

Choque circulatório: uma apresentação comum para várias realidades hemodinâmicas

O choque circulatório é a expressão clínica de um estado de falência circulatória resultando em inadequada perfusão tecidular e deficiente fornecimento celular de oxigênio, podendo levar à lesão e à morte celular.(77 Vincent JL, De Backer D. Circulatory shock. N Engl J Med. 2013;369(18):1726-34.) É classicamente caracterizada por uma hipotensão persistente (pressão arterial sistólica < 90mmHg) e hipoperfusão periférica (alteração do estado de consciência, extremidades frias e cianosadas e/ou diminuição do débito urinário − < 0,5mL/kg/hora).(77 Vincent JL, De Backer D. Circulatory shock. N Engl J Med. 2013;369(18):1726-34.,88 Reynolds HR, Hochman JS. Cardiogenic shock: current concepts and improving outcomes. Circulation. 2008;117(5):686-97.) Neste contexto, a hiperlactacidemia é um achado analítico típico resultante do metabolismo celular anormal de oxigênio.

São várias as causas de choque, com diferentes perfis hemodinâmicos e consequentemente variadas necessidades terapêuticas. Alguns perfis hemodinâmicos são classicamente associados a algumas etiologias, como o choque cardiogênico (baixo DC e RVP aumentadas, na presença de pressões de enchimento ventricular elevadas) e o choque séptico (DC aumentado e RVP diminuídas). No entando, os perfis hemodinâmicos de cada tipo de choque nem sempre são tão lineares (Tabela 1).

Tabela 1
Características hemodinâmicas, de acordo com a etiologia de choque

O choque cardiogênico possui componente de inflamação sistêmica que pode originar uma diminuição das RVP, sendo os doentes com choque cardiogênico também mais suscetíveis a complicações sépticas.(88 Reynolds HR, Hochman JS. Cardiogenic shock: current concepts and improving outcomes. Circulation. 2008;117(5):686-97.

9 Kohsaka S, Menon V, Lowe AM, Lange M, Dzavik V, Sleeper LA, Hochman JS, SHOCK Investigators. Systemic inflammatory response syndrome after acute myocardial infarction complicated by cardiogenic shock. Arch Intern Med. 2005;165(14):1643-50.
-1010 Brunkhorst FM, Clark AL, Forycki ZF, Anker SD. Pyrexia, procalcitonin, immune activation and survival in cardiogenic shock: the potential importance of bacterial translocation. Int J Cardiol. 1999;72(1):3-10.) É de referir que, no estudo SHOCK, houve suspeita de sepse em 18% dos doentes, e 74% dos quais vieram a desenvolver hemoculturas positivas. Estes doentes apresentaram RVP mais baixas dias antes do diagnóstico de infecção.

Por seu lado, o choque séptico pode apresentar-se como um estado hipodinâmico em cerca de um terço dos casos, caracterizando-se por diminuição transitória da fração de ejeção (FE) e do DC e RVP mais elevadas que o expectável.(33 Jardin F, Valtier B, Beauchet A, Dubourg O, Bourdarias JP. Invasive monitoring combined with two-dimensional echocardiographic study in septic shock. Intensive Care Med. 1994;20(8):550-4.,1111 Parker MM, Shelhamer JH, Bacharach SL, Green MV, Natanson C, Frederick TM, et al. Profound but reversible myocardial depression in patients with septic shock. Ann Intern Med. 1984;100(4):483-90.,1212 Vieillard-Baron A, Prin S, Chergui K, Dubourg O, Jardin F. Hemodynamic instability in sepsis: bedside assessment by Doppler echocardiography. Am J Respir Crit Care Med. 2003;168(11):1270-6.) Assim, além da etiologia do choque, é necessário determinar o perfil hemodinâmico preciso de cada doente, que não se limita à hipotensão observada.

O suporte adequado e precoce do doente em choque é essencial para prevenir a evolução para disfunção multiorgânica.(77 Vincent JL, De Backer D. Circulatory shock. N Engl J Med. 2013;369(18):1726-34.) No entanto, também não é menos verdade que uma ressuscitação exagerada ou mal orientada, por exemplo por meio de fluidoterapia excessiva, pode acarretar efeitos deletérios.(1313 National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS) Clinical Trials Network, Wiedemann HP, Wheeler AP, Bernard GR, Thompson BT, Hayden D, deBoisblanc B, et al. Comparison of two fluid-management strategies in acute lung injury. N Engl J Med. 2006;354(24):2564-75.)

A avaliação diagnóstica deve ser a mais precisa e objetiva possível, para determinar rapidamente e com precisão as medidas de suporte mais adequadas à etiologia do choque e ao seu perfil hemodinâmico. O eco-Doppler tem se imposto como o método de diagnóstico de eleição neste contexto.

Abordagem prática para a avaliação do doente hemodinamicamente instável por ecocardiograma Doppler

O contexto clínico e o exame físico permitem frequentemente inferir quanto à etiologia mais provável da instabilidade hemodinâmica em determinado doente. Nestes doentes, o eco-Doppler constitui ferramenta importante para a estratificação do choque e a definição da terapêutica de suporte mais adequada. Em outros doentes, a falência circulatória apresenta-se inicialmente como de causa não esclarecida. Neste último contexto, o eco-Doppler configura-se como um método de diagnóstico muito atrativo para o estudo inicial do doente.

No presente artigo, propomo-nos a descrever os achados ecocardiográficos mais relevantes em uma abordagem prática e dirigida ao doente com instabilidade hemodinâmica.

Câmaras cardíacas e aparelhos valvulares

A avaliação da morfologia das câmaras cardíacas permite-nos inferir o tempo de evolução de uma eventual cardiopatia, sendo que a presença de dilatação delas favorece uma patologia crônica enquanto câmaras cardíacas de dimensões normais apontam para uma afeção aguda ou subaguda (Figura 2).

Figura 2
Cardiomiopatia dilatada.

Por sua vez, a avaliação anatômica e funcional dos aparelhos valvulares pode colocar em evidência uma lesão regurgitante ou estenótica suficientemente importante para justificar ou, pelo menos, contribuir para a instabilidade hemodinâmica do doente. A descrição dos métodos qualitativos e quantitativos para sua avaliação pode ser consultada nas diversas recomendações da European Association of Echocardiography.(1414 Lancellotti P, Tribouilloy C, Hagendorff A, Moura L, Popescu BA, Agricola E, Monin JL, Pierard LA, Badano L, Zamorano JL; European Association of Echocardiography. European Association of Echocardiography recommendations for the assessment of valvular regurgitation. Part 1: aortic and pulmonary regurgitation (native valve disease). Eur J Echocardiogr. 2010;11(3):223-44.

15 Lancellotti P, Moura L, Pierard LA, Agricola E, Popescu BA, Tribouilloy C, Hagendorff A, Monin JL, Badano L, Zamorano JL; European Association of Echocardiography. European Association of Echocardiography recommendations for the assessment of valvular regurgitation. Part 2: mitral and tricuspid regurgitation (native valve disease). Eur J Echocardiogr. 2010;11(4):307-32.
-1616 Baumgartner H, Hung J, Bermejo J, Chambers JB, Evangelista A, Griffin BP, Iung B, Otto CM, Pellikka PA, Quiñones M; American Society of Echocardiography; European Association of Echocardiography. Echocardiographic assessment of valve stenosis: EAE/ASE recommendations for clinical practice. J Am Soc Echocardiogr. 2009;22(1):1-23; quiz 101-2. Erratum in: J Am Soc Echocardiogr. 2009;22(5):442.)

É importante relembrar que são as patologias valvulares agudas e subagudas as que mais frequentemente originam instabilidade hemodinâmica significativa, tal fato devendo-se à ausência de tempo para os mecanismos fisiológicos de adaptação atuarem. Tipicamente observa-se uma disfunção valvular importante com câmaras cardíacas não dilatadas.

Quando a instabilidade hemodinâmica ocorre no contexto de infarto agudo do miocárdio (IAM), deve ser dada particular ênfase ao despiste de complicações mecânicas, fundamentalmente rotura de parede livre, do septo interventricular ou de músculo papilar (Figura 3).

Figura 3
Rotura de septo interventricular em contexto de infarto agudo do miocárdio da parede inferior.

Função sistólica ventricular esquerda e direita

A avaliação da função sistólica de ambos os ventrículos é habitualmente parte integrante da avaliação de qualquer doente hemodinamicamente instável.

Em contexto de urgência, são vários os métodos disponíveis para avaliação da função sistólica do VE, destacando-se a fração de ejeção (FE) por método de Simpson, a excursão sistólica do plano do anel mitral (MAPSE - mitral annular plane systolic excursion), a fração de encurtamento e a velocidade da onda S no anel mitral por Doppler tecidular (TDI - Doppler tissue imaging).(1717 Slama M, Maizel J. Echocardiographic measurement of ventricular function. Curr Opin Crit Care. 2006;12(3):241-8.,1818 Mogelvang R, Sogaard P, Pedersen SA, Olsen NT, Marott JL, Schnohr P, et al. Cardiac dysfunction assessed by echocardiographic tissue Doppler imaging is an independent predictor of mortality in the general population. Circulation. 2009;119(20):2679-85.)

Quanto à função sistólica do ventrículo direito (VD), esta pode ser avaliada por meio da excursão sistólica do plano do anel tricúspide (TAPSE - tricuspid annular plane systolic excurtion), a fração da área de encurtamento (FAC - fractional area change) e a velocidade da onda S no anel tricúspide por TDI.(1919 Lindqvist P, Calcutteea A, Henein M. Echocardiography in the assessment of right heart function. Eur J Echocardiogr. 2008;9(2):225-34.)

A avaliação da função sistólica inclui ainda o estudo da cinética segmentar. Alterações da motilidade regional do VE traduzem frequentemente a presença de doença coronária, podendo esta ser a causa, ou não, da instabilidade em estudo. A hipocinésia dos segmentos médio-basal da parede livre do VD, conhecida como sinal de McConnell, é um achado característico de tromboembolismo pulmonar (TEP) agudo e infarto do VD. Sua presença aumenta a especificidade de outros achados ecocardiográficos para o diagnóstico de TEP, nomeadamente a dilatação de câmaras cardíacas direitas e a hipertensão pulmonar.(2020 Casazza F, Bongarzoni A, Capozi A, Agostoni O. Regional right ventricular dysfunction in acute pulmonary embolism and right ventricular infarction. Eur J Echocardiogr. 2005;6(1):11-4.)

Derrame pericárdico

O ecocardiograma constitui o método de eleição para o diagnóstico e a avaliação de um derrame pericárdico.

De acordo com sua espessura em diástole, um derrame circunferencial pode ser genericamente classificado em mínimo (< 5mm), pequeno (5 a 10mm), moderado (10 a 20mm) ou de grande volume (> 20mm). Por vezes, principalmente em contexto de pós-cirurgia cardíaca, o derrame pode se encontrar acumulado preferencialmente sobre uma ou duas câmaras cardíacas.

A acumulação de líquido no espaço pericárdico leva a um aumento da pressão intrapericárdica, que, por sua vez, pode limitar o enchimento cardíaco, se for ultrapassada a pressão intracardíaca de enchimento, conduzindo ao tamponamento cardíaco. O tamponamento cardíaco é um contínuo hemodinâmico, cuja expressão máxima é a falência circulatória (Figura 4).

Figura 4
Tamponamento cardíaco.

Embora o tamponamento cardíaco seja um diagnóstico clínico, este último deve ser confirmado ecocardiograficamente por meio da demonstração de derrame pericárdico com evidência de repercussão na função cardíaca, nomeadamente no enchimento ventricular direito: dilatação da veia cava inferior (VCI) e veias supra-hepáticas e ausência de variabilidade respiratória das mesmas; variabilidade respiratória exagerada (> 30%) dos fluxos transtricúspide e transmitral; e, finalmente, colapso diastólico das câmaras direitas (inicialmente a aurícula e, em uma fase mais adiantada, o ventrículo).(2121 Imazio M, Adler Y. Management of pericardial effusion. Eur Heart J. 2013;3(16):1186-97.)

Determinação da volemia e resposta à fluidoterapia

A fluidoterapia é classicamente a primeira linha terapêutica na fase inicial da abordagem do doente hemodinamicamente instável, principalmente na sepse e no choque séptico.(2222 Rivers E, Nguyen B, Havstad S, Ressler J, Muzzin A, Knoblich B, Peterson E, Tomlanovich M; Early Goal-Directed Therapy Collaborative Group. Early goal-directed therapy in the treatment of severe sepsis and septic shock. N Engl J Med. 2001;345(19):1368-77.) O objetivo da fluidoterapia é a otimização da pré-carga, um dos quatro determinantes principais da função cardíaca (pré-carga, pós-carga, contratilidade e frequência cardíaca - FC). No entanto, a fluidoterapia excessiva em um doente em que a pré-carga já é elevada pode ter efeitos deletérios, principalmente para o coração direito.(1313 National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS) Clinical Trials Network, Wiedemann HP, Wheeler AP, Bernard GR, Thompson BT, Hayden D, deBoisblanc B, et al. Comparison of two fluid-management strategies in acute lung injury. N Engl J Med. 2006;354(24):2564-75.,2323 Rudski LG, Lai WW, Afilalo J, Hua L, Handschumacher MD, Chandrasekaran K, et al. Guidelines for the echocardiographic assessment of the right heart in adults: a report from the American Society of Echocardiography endorsed by the European Association of Echocardiography, a registered branch of the European Society of Cardiology, and the Canadian Society of Echocardiography. J Am Soc Echocardiogr. 2010;23(7):685-713; quiz 786-8.)

Vários parâmetros ecocardiográficos têm sido usados para estimar a volemia. A obliteração na sístole do VE pode ser um sinal extremo de hipovolemia (kissing papillary muscles sign). Não sendo, no entanto, um achado específico, deve ser complementado com outros dados ecocardiográficos e enquadrado no contexto clínico do doente, para orientar as medidas de ressuscitação. Por outro lado, a presença de câmaras dilatadas não exclui eventual resposta à fluidoterapia.

O diâmetro da VCI e a análise de sua variabilidade respiratória têm sido usados para inferir quanto à pressão da aurícula direita e, consequentemente, a PVC.(2424 Muller L, Bobbia X, Toumi M, Louart G, Molinari N, Ragonnet B, Quintard H, Leone M, Zoric L, Lefrant JY; AzuRea group. Respiratory variations of inferior vena cava diameter to predict fluid responsiveness in spontaneously breathing patients with acute circulatory failure: need for a cautious use. Crit Care. 2012;16(5):R188.) No entanto, a estimativa da volemia por meio deste método apresenta várias limitações, principalmente nos doentes com patologia respiratória prévia ou que se encontrem sob ventilação com pressão positiva. De forma genérica, uma VCI dilatada sem variabilidade respiratória sugere PVC elevada, enquanto VCI de diâmetro reduzido e com grande variabilidade sugere PVC reduzida.

Mais importante do que a estimativa da volemia, é, porém, conseguir determinar se o aumento dela trará um aumento do DC.

Em doentes em respiração espontânea, um índice de distensibilidade da VCI ([diâmetro máximo − diâmetro mínimo]/diâmetro máximo) > 40% associou-se a resposta à fluidoterapia, sendo que valor < 40% não excluiu resposta.(2424 Muller L, Bobbia X, Toumi M, Louart G, Molinari N, Ragonnet B, Quintard H, Leone M, Zoric L, Lefrant JY; AzuRea group. Respiratory variations of inferior vena cava diameter to predict fluid responsiveness in spontaneously breathing patients with acute circulatory failure: need for a cautious use. Crit Care. 2012;16(5):R188.) Também em doentes em respiração espontânea, o aumento do DC em 15% com a elevação passiva dos membros inferiores acima de 30º (passive leg raising) foi preditor de resposta à fluidoterapia, com sensibilidade de 77% e especificidade de 100%.(2525 Lamia B, Ochagavia A, Monnet X, Chemla D, Richard C, Teboul JL. Echocardiographic prediction of volume responsiveness in critically ill patients with spontaneously breathing activity. Intensive Care Med. 2007;33(7):1125-32.) Nos doentes sob ventilação mecânica, índice de distensibilidade da VCI ([diâmetro máximo - diâmetro mínimo]/[(diâmetro máximo + diâmetro mínimo)/2]) > 12% permitiu identificar respondedores à expansão de volume com valores preditivos positivo e negativo de 93 e 92%, respectivamente.(2626 Feissel M, Michard F, Faller JP, Teboul JL. The respiratory variation in inferior vena cava diameter as a guide to fluid therapy. Intensive Care Med. 2004;30(9):1834-7.) No entanto, esta acuidade na previsão da resposta à fluidoterapia não foi observada em outros estudos com populações mais heterogêneas, apontando limitações à generalização destes índices.(2727 Charbonneau H, Riu B, Faron M, Mari A, Kurrek MM, Ruiz J, et al. Predicting preload responsiveness using simultaneous recordings of inferior and superior vena cavae diameters. Crit Care. 2014;18(5):473.)

A avaliação da resposta à fluidoterapia também pode ser realizada por meio da avaliação do volume de ejecção (VolEj) por ecocardiografia antes e após administração de fluid challenge. O aumento do VolEj em > 15% em resposta a fluid challenge provavelmente é a maior evidência de resposta à fluidoterapia.(2828 Marik PE. Fluid responsiveness and the six guiding principles of fluid resuscitation. Crit Care Med. 2016;44(10):1920-2.) Tendo em conta que o DC depende das variações não só do VolEj, mas também da FC, aconselhamos que seja verificado um aumento do DC em > 15% como critério de resposta ao fluid challenge. Os cálculos do VolEj e DC por ecocardiografia, assim como as formas de agilizá-los em reavaliações sucessivas, são explicados em pormenor na seção seguinte.

No entanto, o papel da ecocardiografia na orientação da fluidoterapia pode ainda ser complementado pela ultrassonografia pulmonar.(2929 Lichtenstein DA. BLUE-protocol and FALLS-protocol: two applications of lung ultrasound in the critically ill. Chest. 2015;147(6):1659-70.) O aparecimento de padrão B na ecografia pulmonar pode permitir suspender a fluidoterapia antes que ela se torne excessiva e deletéria. Baseando-se nesta premissa, Lichtenstein desenvolveu o protocolo FALLS, acrônimo de Fluid Administration Limited by Lung Sonography. Não sendo o propósito desta revisão abordar a ultrassonografia pulmonar, recomendamos os leitores para a recente revisão de Lichtenstein sobre o tema.(2929 Lichtenstein DA. BLUE-protocol and FALLS-protocol: two applications of lung ultrasound in the critically ill. Chest. 2015;147(6):1659-70.)

Muitos dos parâmetros utilizados na determinação da volemia e na orientação da fluidoterapia não são específicos e, como tal, apresentam limitações.(2727 Charbonneau H, Riu B, Faron M, Mari A, Kurrek MM, Ruiz J, et al. Predicting preload responsiveness using simultaneous recordings of inferior and superior vena cavae diameters. Crit Care. 2014;18(5):473.,2828 Marik PE. Fluid responsiveness and the six guiding principles of fluid resuscitation. Crit Care Med. 2016;44(10):1920-2.) Devem ser integrados os vários achados clínicos, do exame físico e da ultrassonografia, de forma a aumentar a acuidade diagnóstica e o valor preditivo dos vários parâmetros.

Determinação do débito cardíaco e resistências vasculares periféricas

Embora a avaliação da função sistólica biventricular seja um elemento importante da avaliação do doente em choque, ela apresenta algumas limitações. De fato, não existe correlação linear entre este último e o estado hemodinâmico, podendo existir depressão severa da função sistólica do VE sem choque circulatório e, pelo contrário, choque circulatório com depressão apenas moderada da função sistólica do VE.(88 Reynolds HR, Hochman JS. Cardiogenic shock: current concepts and improving outcomes. Circulation. 2008;117(5):686-97.) O DC é, sem dúvida, o parâmetro hemodinâmico mais importante no doente crítico.

O eco-Doppler permite-nos calcular o DC de forma relativamente fácil (Figura 5). Considerando o corte seccional do trato de saída do VE (tsve) um círculo, sua área é calculada por meio da fórmula (Dtsve/2)2 x π, onde Dtsve é o diâmetro do tsve medido em parasternal eixo longo. A área seccional do tsve multiplicada pela integral tempo-velocidade do fluxo no tsve (ITVtsve), medida em incidência apical 5 câmaras no mesmo local que a medição do tsve, dá-nos o VolEj. Por sua vez, o DC é obtido multiplicando o VolEj pela FC. O índice cardíaco (IC) pode ser derivado dividindo o DC pela superfície corporal (SupCorp). Assim, temos:

VolEj = tsve / 2 2 × π × ITVtsve ( mL ) DC = VolEj × FC ( mL / minuto ) IC = DC / SupCorp ( mL / minuto / m 2 )

Figura 5
Cálculo do débito cardíaco e das resistências vasculares periféricas por ecocardiograma Doppler.

TSVE - trato de saída do ventrículo esquerdo em paraesternal eixo longo; ITVtsve - integral tempo-velocidade do fluxo no trato de saída do ventrículo esquerdo em paraesternal eixo longo em apical de 5 câmaras; VolEj - volume de ejeção; DC - débito cardíaco; FC - frequência cardíaca; IC - índice cardíaco; SupCorp - superfície corporal; RVP - resistências vasculares periféricas; PAM - pressão arterial média.


O cálculo do DC por eco-Doppler foi validado em diversos estudos, sendo confrontado com o método de termodiluição como padrão-ouro.(3030 Lewis JF, Kuo LC, Nelson JG, Limacher MC, Quinones MA. Pulsed Doppler echocardiographic determination of stroke volume and cardiac output: clinical validation of two new methods using the apical window. Circulation. 1984;70(3):425-31.,3131 Dubin J, Wallerson DC, Cody RJ, Devereux RB. Comparative accuracy of Doppler echocardiographic methods for clinical stroke volume determination. Am Heart J. 1990;120(1):116-23.) No entanto, existem algumas fontes potenciais de erro na estimativa do DC, principalmente na medição do tsve, com a presença de arritmias originando grande variabilidade da ITVtsve. Assim, mais do que um método para obter um valor preciso, a estimativa do DC por eco-Doppler deve ser encarada como um método semiquantitativo, catalogando o DC em muito baixo, baixo, normal ou elevado.

Por sua vez, a estimativa do DC permite calcular as RVP pela fórmula:

RVP = ( PAM PVC )/ DC × 79 , 9 dyn . s . cm 5

A estimativa do DC e RVP permite definir o perfil hemodinâmico de um determinado doente. Uma vez que a tensão arterial deriva do produto do DC e RVP, a definição do perfil hemodinâmico (DC e RVP) permite definir a origem da hipotensão, ou seja se está dependente de baixo DC e/ou vasoplegia.

O eco-Doppler permite-nos ainda reavaliar o doente e aferir a eficácia das terapêuticas instituídas, fundamentalmente na ausência de monitorização hemodinâmica contínua. Para este efeito, sugere-se que seja mantida a mesma medição do tsve, valorizando-se essencialmente as variações no produto ITV×FC como equivalente do DC. De fato, em avaliações seriadas, são as variações neste produto ITV × FC que terão importância na prática clínica.

Pressão sistólica da artéria pulmonar

A pressão sistólica da artéria pulmonar (PSAP) pode ser obtida do fluxo de uma insuficiência tricúspide. Utilizando a equação modificada de Bernoulli (4 × velocidade2), é obtido o gradiente de pressão entre o VD e aurícula direita que, somado à pressão da aurícula direita, permite a estimativa da PSAP (na ausência de estenose pulmonar ou outra obstrução do trato de saída do VD).

Uma PSAP > 35mmHg sugere a presença de hipertensão pulmonar enquanto que valores acima de 60mmHg apontam para uma hipertensão pulmonar de grau severo.

O VD é uma câmara preparada para ejetar sangue em um sistema de baixa pressão, sendo intolerante a elevações abruptas de pós-carga.(3232 Ramanathan K, Harkness SM, Nayar AC, Cosmi JE, Sleeper LS, White HD, et al. Cardiogenic shock in patients with preserved left ventricular systolic function: characteristics and insight into mechanisms. J Am Coll Cardiol. 2004;43(5 Suppl 1):A241.,3333 MacNee W. Pathophysiology of cor pulmonale in chronic obstructive pulmonary disease. Part One. Am J Respir Crit Care Med. 1994;150(3):833-52.) Em contexto de emergência ou de cuidados intensivos, as duas causas mais frequentes de falência ventricular direita aguda são o TEP e a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). Nestes contextos, um VD normal será incapaz de manter uma função normal perante a abrupta elevação da pós-carga. Verifica-se diminuição do VolEj do VD em cerca de 25% quando a pressão média da artéria pulmonar atinge cerca de 30mmHg (correspondendo a uma PSAP de cerca de 45mmHg), observando-se declínio acentuado e rápido do mesmo com elevação adicional, mesmo que ligeira, da pós-carga.(3333 MacNee W. Pathophysiology of cor pulmonale in chronic obstructive pulmonary disease. Part One. Am J Respir Crit Care Med. 1994;150(3):833-52.,3434 Haddad F, Hunt SA, Rosenthal DN, Murphy DJ. Right ventricular function in cardiovascular disease, part I: Anatomy, physiology, aging, and functional assessment of the right ventricle. Circulation. 2008;117(11):1436-48.) A resposta compensatória imediata será a dilatação do VD, com retilinização do septo interventricular para o VE, de forma a tentar manter o DC (Figura 6).

Figura 6
Dilatação do ventrículo direito com retilinização sistodiastólica do septo interventricular em contexto de tromboembolismo pulmonar agudo.

No entanto, a determinação da PSAP encontra-se limitada em certas situações, como a falência do VD ou a presença de insuficiência tricúspide livre.(3535 Minagoe S, Rahimtoola SH, Chandraratna PA. Significance of laminar systolic regurgitant flow in patients with tricuspid regurgitation: a combined pulsed-wave, continuous-wave Doppler and two-dimensional echocardiographic study. Am Heart J. 1990;119(3 Pt 1):627-35.)

Estimativa das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo

As pressões de enchimento do VE (PEVE) são classicamente inferidas pelas pressões obtidas da colocação de um cateter pulmonar, principalmente por meio da pressão de encravamento capilar pulmonar (PECP).

O eco-Doppler permite estimar, de forma semiquantitativa, as PEVE em normais ou elevadas, tendo sido esta abordagem resumida em recomendações conjuntas da American Society of Echocardiography e European Association of Cardiovascular Imaging.(3636 Nagueh SF, Smiseth OA, Appleton CP, Byrd BF 3rd, Dokainish H, Edvardsen T, et al. Recommendations for the Evaluation of Left Ventricular Diastolic Function by Echocardiography: An Update from the American Society of Echocardiography and the European Association of Cardiovascular Imaging. J Am Soc Echocardiogr. 2016;29(4):277-314.)

O primeiro parâmetro a ser avaliado é o fluxo transmitral, nomeadamente a razão entre a velocidade de enchimento precoce E do fluxo transmitral e a velocidade de enchimento tardio A no Doppler pulsado (ratio E/A). Uma razão E/A < 1 com E < 50cm/s indica PEVE normal, enquanto uma razão E/A > 2 com tempo de desaceleração da onda E < 150ms favorece PEVE elevada. Para uma razão E/A entre 1 e 2, ou E/A < 1 mas com velocidade de E > 50cm/s, parâmetros adicionais (razão entre a velocidade de enchimento precoce E do fluxo mitral no Doppler pulsado e a velocidade diastólica precoce Ea no Doppler tecidular coletada ao nível do anel mitral - E/Ea ; velocidade da regurgitação tricúspide - Vel RT; e volume indexado da aurícula esquerda) são necessários para a estimativa da PEVE, sendo necessários pelo menos dois de três parâmetros para definir as PEVE (Figura 7).

Figura 7
Estimativa das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo.

E/A - razão entre velocidade de enchimento precoce E do fluxo transmitral e velocidade de enchimento tardio A no Doppler pulsado; E/Ea - razão entre velocidade de enchimento precoce E do fluxo mitral no Doppler pulsado e velocidade diastólica precoce Ea no Doppler tecidular coletada ao nível do anel mitral; Vel RT - velocidade da regurgitação tricúspide; Vol AE - volume da aurícula esquerda; PEVE - pressões de enchimento do ventrículo esquerdo. Fonte: adaptado de Nagueh SF, Smiseth OA, Appleton CP, Byrd BF 3rd, Dokainish H, Edvardsen T, et al. Recommendations for the Evaluation of Left Ventricular Diastolic Function by Echocardiography: An Update from the American Society of Echocardiography and the European Association of Cardiovascular Imaging. J Am Soc Echocardiogr. 2016;29(4):277-314.(3636 Nagueh SF, Smiseth OA, Appleton CP, Byrd BF 3rd, Dokainish H, Edvardsen T, et al. Recommendations for the Evaluation of Left Ventricular Diastolic Function by Echocardiography: An Update from the American Society of Echocardiography and the European Association of Cardiovascular Imaging. J Am Soc Echocardiogr. 2016;29(4):277-314.)


Existem, no entanto, limitações para a estimativa das PEVE, principalmente nos doentes com insuficiência cardíaca avançada com volumes ventriculares muito aumentados.(3737 Mullens W, Borowski AG, Curtin RJ, Thomas JD, Tang WH. Tissue Doppler imaging in the estimation of intracardiac filling pressure in decompensated patients with advanced systolic heart failure. Circulation. 2009;119(1):62-70.) Nestes casos, pode ser necessário complementar a avaliação do doente com métodos invasivos para validação da avaliação ecocardiográfica.

Em contexto de cuidados intensivos, a avaliação da função diastólica e a consequente estimativa das PEVE podem ainda ser simplificadas, considerando apenas a velocidade precoce de relaxamento Ea do Doppler tecidular e a razão E/Ea.(3838 Greenstein YY, Mayo PH. Evaluation of left ventricular diastolic function by the intensivist. Chest. 2018;153(3):723-32.) Baseado nestes dois parâmetros, uma disfunção diastólica pode ser assumida quando Ea < 8cm/s e E/Ea > 14. Apesar de algumas limitações, esta avaliação simplificada demonstrou ter papel na estratificação dos doentes graves, como os doentes com sepse grave, nos quais a presença de disfunção diastólica identificou doentes com pior prognóstico.(3939 Sanfilippo F, Corredor C, Arcadipane A, Landesberg G, Vieillard-Baron A, Cecconi M, et al. Tissue Doppler assessment of diastolic function and relationship with mortality in critically ill septic patients: a systematic review and meta-analysis. Br J Anaesth. 2017;119(4):583-94.) A disfunção diastólica pode ainda permitir a identificação dos doentes com maior probabilidade de falência no desmame ventilatório.(4040 Papanikolaou J, Makris D, Saranteas T, Karakitsos D, Zintzaras E, Karabinis A, et al. New insights into weaning from mechanical ventilation: left ventricular diastolic dysfunction is a key player. Intensive Care Med. 2011;37(12):1976-85.) Finalmente, a avaliação da função diastólica pode também ter um papel na orientação da rescussitação com fluidoterapia, sobretudo na limitação dela nos doentes sépticos.(4141 Santos TM, Franci D, Gontijo-Coutinho CM, Ozahata TM, de Araújo Guerra Grangeia T, Matos-Souza JR, et al. Inflammatory lung edema correlates with echocardiographic estimation of capillary wedge pressure in newly diagnosed septic patients. J Crit Care. 2018;44:392-7.)

Algoritmo para avaliação inicial do doente hemodinamicamente instável

Na figura 8, propomos um algoritmo para a avaliação sistemática do doente com instabilidade hemodinâmica.

Figura 8
Algoritmo para avaliação ecocardiográfica sistemática do doente hemodinamicamente instável.

IAM - infarto agudo do miocárdio; DC - débito cardíaco; RVP - resistências vasculares periféricas. Fonte: Adaptado de: Lichtenstein DA. BLUE-protocol and FALLS-protocol: two applications of lung ultrasound in the critically ill. Chest. 2015;147(6):1659-70.(2929 Lichtenstein DA. BLUE-protocol and FALLS-protocol: two applications of lung ultrasound in the critically ill. Chest. 2015;147(6):1659-70.)


Alguns achados do exame ecocardiográfico são de fácil visualização, fundamentalmente o tamponamento cardíaco, a embolia pulmonar com cor pulmonale agudo e a disfunção ventricular esquerda severa, podendo estar disponíveis para ecocardiografia de emergência. Outros elementos são de maior complexidade e exigem maior nível de treino (nível I pelo menos), como será o caso do cálculo de DC e da estimativa das PEVE.

Papel do ecocardiograma transesofágico

O ecocardiograma transtorácico (ETT) possui boa acuidade diagnóstica na avaliação do doente grave, mesmo quando ele encontra-se sob ventilação mecânica, sendo, por isto, a primeira opção. No entanto, nem sempre é possível a aquisição de imagens adequadas do ETT. Causas frequentes de má janela ecocardiográfica transtorácica incluem obesidade, enfisema, níveis elevados de pressão expiratória positiva ou presença de pensos e drenos cirúrgicos. Neste contexto, o ecocardiograma transesofágico (ETE) constitui a alternativa ideal.

O ETE permanece o exame ecocardiográfico de referência em situações como a disfunção de prótese valvular, suspeita de endocardite infecciosa, dissecção da aorta e despiste de shunts intracardíacos ou fontes cardioembólicas.

No entanto, o ETE demanda um nível mais avançado de treino em ecocardiografia - pelo menos nível I e preferencialmente acima.(66 Price S, Via G, Sloth E, Guarracino F, Breitkreutz R, Catena E, Talmor D; World Interactive Network Focused on Critical UltraSound ECHO-ICU Group. Echocardiography practice, training and accreditation in the intensive care: document for the World Interactive Network Focused on Critical Ultrasound (WINFOCUS). Cardiovasc Ultrasound. 2008;6:49.)

CONCLUSÃO

O eco-Doppler constitui a ferramenta ideal para a abordagem inicial do doente com instabilidade hemodinâmica. Para além de uma caracterização cardíaca morfológica e funcional, permite uma avaliação compreensiva do status hemodinâmico do doente crítico.

A realização de um eco-Doppler é frequentemente necessária na avaliação dos doentes hemodinamicamente instáveis. O eco-Doppler, utilizado como ferramenta hemodinâmica, permite obter muita informação, o que lhe confere papel não só diagnóstico, mas também terapêutico, por meio do auxílio na definição das estratégias de ressuscitação circulatória.

Por fim, o eco-Doppler não deve ser encarado como um substituto dos métodos de monitorização contínua, invasivos ou semi-invasivos. Tratando-se de métodos complementares, o eco-Doppler impõe-se naturalmente como preferencial na avaliação inicial do doente instável, enquanto os métodos contínuos terão seu papel na monitorização contínua deste paciente.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Neskovic AN, Hagendorff A, Lancellotti P, Guarracino F, Varga A, Cosyns B, Flachskampf FA, Popescu BA, Gargani L, Zamorano JL, Badano LP; European Association of Cardiovascular Imaging. Emergency echocardiography: the European Association of Cardiovascular Imaging recommendations. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2013;14(1):1-11.
  • 2
    Lancellotti P, Price S, Edvardsen T, Cosyns B, Neskovic AN, Dulgheru R, et al. The use of echocardiography in acute cardiovascular care: recommendations of the European Association of Cardiovascular Imaging and the Acute Cardiovascular Care Association. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2015;16(2):119-46.
  • 3
    Jardin F, Valtier B, Beauchet A, Dubourg O, Bourdarias JP. Invasive monitoring combined with two-dimensional echocardiographic study in septic shock. Intensive Care Med. 1994;20(8):550-4.
  • 4
    Vieillard-Baron A, Slama M, Cholley B, Janvier G, Vignon P. Echocardiography in the intensive care unit: from evolution to revolution? Intensive Care Med. 2008;34(2):243-9.
  • 5
    Dias FS, Rezende EA, Mendes CL, Silva JM Jr, Sanches JL. Hemodynamic monitoring in the intensive care unit: a Brazilian perspective. Rev Bras Ter Intensiva; 2014;26(4):360-6.
  • 6
    Price S, Via G, Sloth E, Guarracino F, Breitkreutz R, Catena E, Talmor D; World Interactive Network Focused on Critical UltraSound ECHO-ICU Group. Echocardiography practice, training and accreditation in the intensive care: document for the World Interactive Network Focused on Critical Ultrasound (WINFOCUS). Cardiovasc Ultrasound. 2008;6:49.
  • 7
    Vincent JL, De Backer D. Circulatory shock. N Engl J Med. 2013;369(18):1726-34.
  • 8
    Reynolds HR, Hochman JS. Cardiogenic shock: current concepts and improving outcomes. Circulation. 2008;117(5):686-97.
  • 9
    Kohsaka S, Menon V, Lowe AM, Lange M, Dzavik V, Sleeper LA, Hochman JS, SHOCK Investigators. Systemic inflammatory response syndrome after acute myocardial infarction complicated by cardiogenic shock. Arch Intern Med. 2005;165(14):1643-50.
  • 10
    Brunkhorst FM, Clark AL, Forycki ZF, Anker SD. Pyrexia, procalcitonin, immune activation and survival in cardiogenic shock: the potential importance of bacterial translocation. Int J Cardiol. 1999;72(1):3-10.
  • 11
    Parker MM, Shelhamer JH, Bacharach SL, Green MV, Natanson C, Frederick TM, et al. Profound but reversible myocardial depression in patients with septic shock. Ann Intern Med. 1984;100(4):483-90.
  • 12
    Vieillard-Baron A, Prin S, Chergui K, Dubourg O, Jardin F. Hemodynamic instability in sepsis: bedside assessment by Doppler echocardiography. Am J Respir Crit Care Med. 2003;168(11):1270-6.
  • 13
    National Heart, Lung, and Blood Institute Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS) Clinical Trials Network, Wiedemann HP, Wheeler AP, Bernard GR, Thompson BT, Hayden D, deBoisblanc B, et al. Comparison of two fluid-management strategies in acute lung injury. N Engl J Med. 2006;354(24):2564-75.
  • 14
    Lancellotti P, Tribouilloy C, Hagendorff A, Moura L, Popescu BA, Agricola E, Monin JL, Pierard LA, Badano L, Zamorano JL; European Association of Echocardiography. European Association of Echocardiography recommendations for the assessment of valvular regurgitation. Part 1: aortic and pulmonary regurgitation (native valve disease). Eur J Echocardiogr. 2010;11(3):223-44.
  • 15
    Lancellotti P, Moura L, Pierard LA, Agricola E, Popescu BA, Tribouilloy C, Hagendorff A, Monin JL, Badano L, Zamorano JL; European Association of Echocardiography. European Association of Echocardiography recommendations for the assessment of valvular regurgitation. Part 2: mitral and tricuspid regurgitation (native valve disease). Eur J Echocardiogr. 2010;11(4):307-32.
  • 16
    Baumgartner H, Hung J, Bermejo J, Chambers JB, Evangelista A, Griffin BP, Iung B, Otto CM, Pellikka PA, Quiñones M; American Society of Echocardiography; European Association of Echocardiography. Echocardiographic assessment of valve stenosis: EAE/ASE recommendations for clinical practice. J Am Soc Echocardiogr. 2009;22(1):1-23; quiz 101-2. Erratum in: J Am Soc Echocardiogr. 2009;22(5):442.
  • 17
    Slama M, Maizel J. Echocardiographic measurement of ventricular function. Curr Opin Crit Care. 2006;12(3):241-8.
  • 18
    Mogelvang R, Sogaard P, Pedersen SA, Olsen NT, Marott JL, Schnohr P, et al. Cardiac dysfunction assessed by echocardiographic tissue Doppler imaging is an independent predictor of mortality in the general population. Circulation. 2009;119(20):2679-85.
  • 19
    Lindqvist P, Calcutteea A, Henein M. Echocardiography in the assessment of right heart function. Eur J Echocardiogr. 2008;9(2):225-34.
  • 20
    Casazza F, Bongarzoni A, Capozi A, Agostoni O. Regional right ventricular dysfunction in acute pulmonary embolism and right ventricular infarction. Eur J Echocardiogr. 2005;6(1):11-4.
  • 21
    Imazio M, Adler Y. Management of pericardial effusion. Eur Heart J. 2013;3(16):1186-97.
  • 22
    Rivers E, Nguyen B, Havstad S, Ressler J, Muzzin A, Knoblich B, Peterson E, Tomlanovich M; Early Goal-Directed Therapy Collaborative Group. Early goal-directed therapy in the treatment of severe sepsis and septic shock. N Engl J Med. 2001;345(19):1368-77.
  • 23
    Rudski LG, Lai WW, Afilalo J, Hua L, Handschumacher MD, Chandrasekaran K, et al. Guidelines for the echocardiographic assessment of the right heart in adults: a report from the American Society of Echocardiography endorsed by the European Association of Echocardiography, a registered branch of the European Society of Cardiology, and the Canadian Society of Echocardiography. J Am Soc Echocardiogr. 2010;23(7):685-713; quiz 786-8.
  • 24
    Muller L, Bobbia X, Toumi M, Louart G, Molinari N, Ragonnet B, Quintard H, Leone M, Zoric L, Lefrant JY; AzuRea group. Respiratory variations of inferior vena cava diameter to predict fluid responsiveness in spontaneously breathing patients with acute circulatory failure: need for a cautious use. Crit Care. 2012;16(5):R188.
  • 25
    Lamia B, Ochagavia A, Monnet X, Chemla D, Richard C, Teboul JL. Echocardiographic prediction of volume responsiveness in critically ill patients with spontaneously breathing activity. Intensive Care Med. 2007;33(7):1125-32.
  • 26
    Feissel M, Michard F, Faller JP, Teboul JL. The respiratory variation in inferior vena cava diameter as a guide to fluid therapy. Intensive Care Med. 2004;30(9):1834-7.
  • 27
    Charbonneau H, Riu B, Faron M, Mari A, Kurrek MM, Ruiz J, et al. Predicting preload responsiveness using simultaneous recordings of inferior and superior vena cavae diameters. Crit Care. 2014;18(5):473.
  • 28
    Marik PE. Fluid responsiveness and the six guiding principles of fluid resuscitation. Crit Care Med. 2016;44(10):1920-2.
  • 29
    Lichtenstein DA. BLUE-protocol and FALLS-protocol: two applications of lung ultrasound in the critically ill. Chest. 2015;147(6):1659-70.
  • 30
    Lewis JF, Kuo LC, Nelson JG, Limacher MC, Quinones MA. Pulsed Doppler echocardiographic determination of stroke volume and cardiac output: clinical validation of two new methods using the apical window. Circulation. 1984;70(3):425-31.
  • 31
    Dubin J, Wallerson DC, Cody RJ, Devereux RB. Comparative accuracy of Doppler echocardiographic methods for clinical stroke volume determination. Am Heart J. 1990;120(1):116-23.
  • 32
    Ramanathan K, Harkness SM, Nayar AC, Cosmi JE, Sleeper LS, White HD, et al. Cardiogenic shock in patients with preserved left ventricular systolic function: characteristics and insight into mechanisms. J Am Coll Cardiol. 2004;43(5 Suppl 1):A241.
  • 33
    MacNee W. Pathophysiology of cor pulmonale in chronic obstructive pulmonary disease. Part One. Am J Respir Crit Care Med. 1994;150(3):833-52.
  • 34
    Haddad F, Hunt SA, Rosenthal DN, Murphy DJ. Right ventricular function in cardiovascular disease, part I: Anatomy, physiology, aging, and functional assessment of the right ventricle. Circulation. 2008;117(11):1436-48.
  • 35
    Minagoe S, Rahimtoola SH, Chandraratna PA. Significance of laminar systolic regurgitant flow in patients with tricuspid regurgitation: a combined pulsed-wave, continuous-wave Doppler and two-dimensional echocardiographic study. Am Heart J. 1990;119(3 Pt 1):627-35.
  • 36
    Nagueh SF, Smiseth OA, Appleton CP, Byrd BF 3rd, Dokainish H, Edvardsen T, et al. Recommendations for the Evaluation of Left Ventricular Diastolic Function by Echocardiography: An Update from the American Society of Echocardiography and the European Association of Cardiovascular Imaging. J Am Soc Echocardiogr. 2016;29(4):277-314.
  • 37
    Mullens W, Borowski AG, Curtin RJ, Thomas JD, Tang WH. Tissue Doppler imaging in the estimation of intracardiac filling pressure in decompensated patients with advanced systolic heart failure. Circulation. 2009;119(1):62-70.
  • 38
    Greenstein YY, Mayo PH. Evaluation of left ventricular diastolic function by the intensivist. Chest. 2018;153(3):723-32.
  • 39
    Sanfilippo F, Corredor C, Arcadipane A, Landesberg G, Vieillard-Baron A, Cecconi M, et al. Tissue Doppler assessment of diastolic function and relationship with mortality in critically ill septic patients: a systematic review and meta-analysis. Br J Anaesth. 2017;119(4):583-94.
  • 40
    Papanikolaou J, Makris D, Saranteas T, Karakitsos D, Zintzaras E, Karabinis A, et al. New insights into weaning from mechanical ventilation: left ventricular diastolic dysfunction is a key player. Intensive Care Med. 2011;37(12):1976-85.
  • 41
    Santos TM, Franci D, Gontijo-Coutinho CM, Ozahata TM, de Araújo Guerra Grangeia T, Matos-Souza JR, et al. Inflammatory lung edema correlates with echocardiographic estimation of capillary wedge pressure in newly diagnosed septic patients. J Crit Care. 2018;44:392-7.

Editado por

Editor responsável: Luciano César Pontes de Azevedo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sept 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2017
  • Aceito
    01 Abr 2018
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br