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Encefalopatia hemorrágica hipernatrêmica: relato de caso e revisão da literatura

Resumos

Hipernatremia é um distúrbio hidro-eletrolítico frequente em pessoas nas quais o mecanismo da sede ou o acesso à água está comprometido podendo causar desde morbidades mínimas até coma. Entre as morbidades causadas pela hipernatremia, a hemorragia do sistema nervoso central é infreqüente e pouco estudada. Relatamos um caso de paciente admitido na unidade de terapia intensiva com redução do nível de consciência, hipernatremia e tomografia computadorizada de crânio evidenciando hemorragia intraparenquimatosa bilateral. Foi realizada revisão de literatura de encefalopatia hemorrágica hipernatrêmica.

Hipernatremia; Hemorragia cerebral; Encefalopatias


Hypernatremia is a common electrolyte disorder in people with impaired thirst control mechanism or access to water, and may lead from minimal disorders until coma. Among the hypernatremia morbidities, central nervous system hemorrhage is uncommon and poorly studied. We report a case involving a patient admitted to the intensive care unit with reduced consciousness level, hypernatremia and head computed tomography scan showing bilateral parenchyma hemorrhage. A literature review of hypernatremia hemorrhagic encephalopathy was conducted.

Hypernatremia; Cerebral hemorrhage; Brain diseases


RELATO DE CASO

Encefalopatia hemorrágica hipernatrêmica: relato de caso e revisão da literatura

Lucas Sampaio MataI; Dimitri GusmãoII; Antônio Raimundo Pinto de AlmeidaIII

IMédico do Serviço de Clínica Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia - UFBa - Salvador (BA), Brasil

IIMédico do Hospital Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia - UFBa - Salvador (BA), Brasil

IIIProfessor do Departamento de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia - UFBa -Salvador (BA), Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Dimitri Gusmão Rua Eng. Celso Torres, 18 - Apt. 601 -Graça CEP: 40150-280 - Salvador (BA), Brasil Email: dimitrigusmao@gmail.com

RESUMO

Hipernatremia é um distúrbio hidro-eletrolítico frequente em pessoas nas quais o mecanismo da sede ou o acesso à água está comprometido podendo causar desde morbidades mínimas até coma. Entre as morbidades causadas pela hipernatremia, a hemorragia do sistema nervoso central é infreqüente e pouco estudada. Relatamos um caso de paciente admitido na unidade de terapia intensiva com redução do nível de consciência, hipernatremia e tomografia computadorizada de crânio evidenciando hemorragia intraparenquimatosa bilateral. Foi realizada revisão de literatura de encefalopatia hemorrágica hipernatrêmica.

Descritores: Hipernatremia; Hemorragia cerebral; Encefalopatias

RELATO DE CASO

Caucasiano de 58 anos, masculino, com história prévia de HAS e transtorno psiquiátrico mal-definido, admitido no Hospital Universitário Professor Edgard Santos - Universidade Federal da Bahia (HUPES) em 05/02/2010, proveniente de outra unidade de saúde. Há 20 dias da admissão, foi encontrado com rebaixamento do sensório, oliguria, piúria e elevação dos níveis de uréia e creatinina (Cr:5,0mg/dL Ur:180md/dL). Por não ter apresentado melhora do quadro urinário e neurológico na outra unidade, foi transferido para hospital de maior complexidade.

Seu passado médico envolve diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e histórico psiquiátrico, mal caracterizado pela família semelhante ao transtorno bipolar desde os 14 anos de idade. Faz uso regular de Haloperidol, Clorpromazina e Fenergan prescrito por médico assistente. Familiares relataram que três dias antes de ser encontrado com rebaixamento do nível de consciência, desapareceu de casa durante crise de agitação.

À admissão, o paciente apresentava-se em precário estado geral, eupneico, boa perfusão periférica, descorado +/IV, restrito ao leito, sem sinais de trauma, com freqüência cardíaca de 96 bpm, freqüência respiratória de 24ipm e pressão arterial de 110/70 mmHg. O exame cardiovascular, respiratório e abdominal não apresentava alterações. Ao exame neurológico apresentava Glasgow 10 (4-1-5), com abertura ocular espontânea, afásico e movimentação ocular aos comandos. Tetraparético, sem sinais de hiperreflexia. Pupilas isocóricas e fotorreagentes. Demais nervos cranianos e teste de sensibilidades não foram realizados, pois o paciente apresentava alteração do nível de consciência.

Exames laboratoriais iniciais mostraram hemoglobina 9,5 g/dL, leucograma 9500/mm3 sem desvios e plaquetas 210.000/mm3. Creatinina de 5,1mg/dL (vn:0,5-1,3mg/dL) e uréia: 181mg/dL (vn:<40mg/dL). Ionograma revelou sódio de 196mEq/L (vn:135-145 mEq/L), potássio 3,3mEq/L (vn:3,5-5,5 mEq/L) e hemogasometria com PO2 limítrofe sem alterações metabólicas.

O paciente foi transferido para unidade de terapia intensiva (UTI) no 2° dia de hospitalização, onde foi colocado em ventilação mecânica e ampliado cobertura antimicrobia-na, sendo então encaminhado para realização de tomografia computadorizada (TC) de crânio sem contraste que evidenciou hemorragia cerebelar e na cápsula externa bilateralmente (Figura 1).


O paciente evoluiu na unidade de terapia intensiva (UTI) com melhora dos níveis de uréia e creatina (Gráfico 1), além de aumento do débito urinário após hidratação parenteral com cristalóides, sem necessidade de terapia de substituição renal. Após correção da volemia foi iniciado terapia com solução hipotônica para correção da hipernatremia respeitando a correção máxima diária (Gráfico 1). Durante a correção do distúrbio hidroeletrolítico, e após suspensão da sedação, o paciente evoluiu com abertura ocular espontânea e recuperação do drive respiratório. Realizada traqueostomia em 24 de fevereiro, sendo evoluído desmame da ventilação mecânica, recebendo alta da UTI em 09 de Março e alta hospitalar alerta sem deficits neurológicos em 14 de Abril.


DISCUSSÃO

A concentração do sódio plasmática e a osmolaridade sérica são controladas pela homeostase da água, mediada pela sede, vasopressina e pelos rins. Hipernatremia é um distúrbio hidroeletrolítico frequente, definido por uma concentração plasmática de sódio superior a 145 mmol/L.(1) Pode ser causada por perda de água livre ou fluidos hipotônicos, ingesta inadequada de água ou administração de grandes quantidades de solutos hipertônicos. Pelo fato de, comumente, envolver um déficit de água mais que propriamente um excesso de sódio, a hipernatremia ocorre de forma mais frequente em grupos de pessoas nas quais a sede ou o acesso à água está comprometido. Destacando-se no grupo de alto risco, pacientes com estado mental alterado, psiquiátricos, em ventilação mecânica, idosos e crianças.

Por ser um soluto basicamente do extracelular, o sódio contribui para hipertonicidade do plasma levando à movimentação de água pela membrana. Logo, o seu aumento plasmático leva à hiperosmolaridade hipertônica causando desidratação celular devido à passagem de água das células para o fluido extracelular.(1,2) As morbidades deste distúrbio variam de mínimas a sérias, podendo levar ao óbito. Tal gravidade é proporcional à severidade do distúrbio e à velocidade de aumento do sódio, sendo, entretanto, muitas vezes difícil de discernir a real contribuição da hipernatremia para o desfecho devido o envolvimento de outras comorbidades.

Hipernatremia e hemorragia do sistema nervoso central

O sistema nervoso central (SNC) frequentemente é envolvido em casos de hipernatremia. As manifestações clínicas descritas são diversas, podendo variar desde apatia, convulsão até o coma.

Hipernatremia como causa de distúrbio neurológico agudo é bem descrito e frequente. Entretanto, a hipernatremia como causa de hemorragia do SNC é pouco descrita na literatura. Em 1919, Weed e McKibben demonstraram retração e congestão capilar após infusão de NaCl hipertônico em animais, sem evidência de hemorragia.(3) Em 1979, Young relatou caso de adolescente com hipernatremia após infusão inadvertida de solução hipertônica. O jovem evoluiu após a infusão com convulsão e coma. A TC de crânio revelou pequenas hemorragias, difusas por toda área subcortical, e a necropsia confirmou os achados.(4) Em 1997 Han relatou achados ultrassonográficos e, também, tomográficos em 2 crianças admitidas com sintomas neurológicos e hipernatre-mia.(5) Os 2 pacientes apresentaram achados de imagem similares, com alterações no parênquima cerebral de hemorragia multifocal e infarto hemorrágico.

Luttrell, em 1958, descreveu três casos em crianças com hipernatremia e alteração do nível de consciência, variando de letargia a coma. A autópsia realizada evidenciou hemorragia do sistema nervoso central como a lesão patológica proeminente. Hemorragia subaracnóidea extensa, assim como intradural, intracerebral e intraventricular foram descritas neste estudo. À microscopia, foi demonstrada congestão vascular intensa em pequenos vasos e capilares do sistema nervoso com hemorragia petequial do tecido cerebral. Por ter relatado casos em crianças admitidas com sódio elevado e, muitas vezes, já com alteração do nível de consciência, não foi possível, neste estudo de Luttrell, afirmar que o distúrbio do sódio precedia a hemorragia, ou mesmo, que era o seu fator causal.(2)

Em 1959, este mesmo autor realizou estudo experimental em gatos, que foram divididos em 3 grupos. No grupo I foi realizada injeção peritoneal de solução hipertônica de sódio, no grupo II realizada injeção peritoneal de solução hipertônica de uréia, na mesma concentração do grupo I; e o grupo III foi o grupo controle onde parte do grupo foi restrito líquido e em outra parte foi injetado solução fisiológica no peritônio (3). Importante pontuar que os animais, nos quais foram infundidas soluções hipertônicas, não apresentaram pico hipertensivo em momento algum do estudo. Foi notada uma queda importante da pressão líquórica 60-80minutos após a injeção da solução hipertônica nos dois grupos de intervenção, sendo, esta queda de pressão, de menor duração no grupo da uréia. Retração do tecido cerebral e hemorragia intracraniana foram consistentemente encontradas e em graus similares nos 2 grupos, sem sinais de hemorragia em outros órgãos. Nos animais do grupo controle nenhuma destas alterações foram encontradas. Em seis animais do grupo de intervenção (4 do grupo de solução hipertônica de NaCl e 2 do grupo da uréia) tiveram a pressão liquórica mantida por 4 horas através da infusão de soluções na cisterna. Neste grupo, as variações da pressão arterial e venosa foram similares ao do grupo I e II, os quais não tiveram a pressão liquórica mantida por infusão de qualquer solução. À realização da autópsia, nenhum destes 6 animais apresentou evidência de hemorragia intracraniana(2).

Logo, a hemorragia do SNC determinado pela hipernatremia parece envolver uma série de fatores. A movimentação de água para fora das células e a lentificação do transporte de sódio entre o sangue e o liquido cefaloraquidiano (LCR), levaria a uma redução do volume cerebral e do LCR. Isso resulta na criação de uma pressão negativa em torno do tecido cerebral, levando a uma expansão venosa e capilar, com conseqüente ruptura de vasos.(3) Então, a hemorragia cerebral seria resultado de uma retração cerebral dentro de uma superfície rígida (o crânio) que, associada à negativação da pressão liquórica, levaria ao estiramento e distensão da rede vascular produzindo hemorragia em uma rede de capilares congesta, dilatada e, conseqüentemente, frágil.(2,3) Tal raciocínio corrobora os achados de autópsia, em que todos os órgãos, exceto o SNC, foram poupados da hemorragia. O fator vascular como causa da hemorragia cerebral seria algo secundário e conseqüente à redução da pressão liquórica. É admissível, contudo, que um dano vascular em áreas funcionalmente importantes possa ter algum papel primário no dano neurológico causado pela hipernatremia.(2)

Luttrell evidenciou uma relação temporal e de causa-efeito entre hipernatremia e hemorragia do SNC. Além disso, através deste estudo foi possível inferir que a redução da pressão no LCR é fator fundamental para induzir a hemorragia, já que a mesma foi completamente prevenida pela infusão de fluidos para manter a pressão liquórica positiva.

É importante observar que neste estudo de Luttrell, a hipernatremia no grupo de intervenção foi induzida exclusivamente através da administração de solução hipertônica (cloreto de sódio ou uréia). Logo, há carência de estudo demonstrando hipernatremia induzida por perda de água livre ou solutos hipotônicos como fator causal da hemorragia do SNC. Ademais, o estudo deixou a desejar no tamanho do grupo controle, que foi pequeno em relação à quantidade de animais do estudo. Todavia, há de se ressaltar, a consistência de hemorragia encontrada nos animais do grupo de intervenção (48/53 - 90,5%). Além disso, seria interessante ter-se mensurado o sódio plasmático antes e após a intervenção, para confirmar a mudança desses níveis nos animais e até mesmo demonstrar quais os valores de sódio associados à hemorragia cerebral.

Nos estudos disponíveis, os valores do nível de sódio associados à hemorragia craniana são consistentemente maiores que 160 mmol/l (Tabela 1). A maioria dos estudos que demonstram esses valores é em crianças. O fato do tecido cerebral da criança ter uma consistência mais macia e com maior conteúdo de água resulta em uma maior retração do tecido cerebral comparada ao adulto, justificando a maior frequência de hemorragia induzida pela hipernatremia nos jovens. Logo, é possível que no adulto, os valores de sódio associados à hemorragia do SNC sejam ainda maiores que os comumente descritos em crianças.

É de destaque que em nenhum dos relatos descritos em autópsias foi identificada a presença de mielinólise pontina ou extra-pontina, parecendo esta morbidade estar associada exclusivamente à correção excessiva da hiponatremia.

Não encontramos outro relato de encefalopatia hemorrágica hipernatrêmica em adultos (publicados em língua inglesa). Assim, este parece ser o primeiro relato em paciente adulto.

Submetido em 26 de Junho de 2010

Aceito em 8 de Setembro de 2010

Declaração de conflito de interesses: Nada a declarar.

Trabalho realizado no Serviço de Clínica Médica do Hospital Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia - UFBa - Salvador (BA), Brasil.

  • 1. Adrogué HJ, Madias NE. Hypernatremia. N Engl J Med. 2000;342(20):1493-9.
  • 2. Luttrell CN, Finberg L. Hemorrhagic encephalopathy induced by hypernatremia. I. Clinical, laboratory, and pathological observations. AMA Arch Neurol Psychiatry. 1959;81(4):424-32.
  • 3. Luttrell CN, Finberg L, Drawdy LP Hemorrhagic encephalopathy induced by hypernatremia. II. Experimental observations on hyperosmolarity in cats. Arch Neurol. 1959;1:153-60.
  • 4. Young RS, Truax BT. Hypernatremic hemorrhagic encephalopathy. Ann Neurol. 1979;5(6):588-91.
  • 5. Han BK, Lee M, Yoon HK. Cranial ultrasound and CT findings in infants with hypernatremic dehydration. Pediatr Radiol. 1997;27(9):739-42.
  • 6. Roberton NR, Howat P. Hypernatraemia as a cause of intracranial haemorrhage. 1975;50(12):938-42.
  • Autor para correspondência:
    Dimitri Gusmão
    Rua Eng. Celso Torres, 18 - Apt. 601 -Graça
    CEP: 40150-280 - Salvador (BA), Brasil
    Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Aceito
      08 Set 2010
    • Recebido
      26 Jun 2010
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