Acessibilidade / Reportar erro

COVID-19 crítico e disfunção neurológica - uma análise comparativa direta entre o SARS-CoV-2 e outros agentes infecciosos

RESUMO

Objetivo:

Avaliar se a infecção grave pelo SARS-CoV-2 está mais comumente associada a sinais de disfunção do trato corticoespinhal e outros sinais, sintomas e síndromes neurológicas, em comparação com outros agentes infecciosos.

Métodos:

Este foi um estudo de coorte prospectivo com inclusão consecutiva de doentes admitidos a unidades de cuidados intensivos devido a síndrome do desconforto respiratório agudo infeccioso primário, com necessidade de ventilação mecânica invasiva por > 48 horas. Os doentes incluídos foram atribuídos aleatoriamente a três investigadores para a avaliação clínica, a qual incluía a pesquisa de sinais de disfunção do trato corticoespinhal. Os dados clínicos, incluindo outras complicações neurológicas e possíveis preditores, foram obtidos independentemente a partir dos registros clínicos.

Resultados:

Foram incluídos consecutivamente 54 doentes com síndrome do desconforto respiratório agudo, 27 devido a SARS-CoV-2 e 27 devido a outros agentes infecciosos. Os grupos eram comparáveis na maioria das características. Os doentes com COVID-19 apresentavam risco significativamente superior de complicações neurológicas (RR = 1,98; IC95% 1,23 - 3,26). Os sinais de disfunção do trato corticoespinhal tendiam a ser mais prevalentes em doentes com COVID-19 (RR = 1,62; IC95% 0,72 - 3,44).

Conclusão:

Este estudo foi a primeira análise comparativa visando avaliar disfunção neurológica, entre doentes com infecção SARS-CoV-2 e outros agentes infecciosos, em um contexto de unidade de cuidados intensivos. Reportamos um risco significativamente superior de disfunção neurológica em doentes com COVID-19. Como tal, sugere-se o rastreio sistemático de complicações neurológicas em doentes com COVID-19 crítico.

Descritores:
SARS-CoV-2; COVID-19; Síndrome do desconforto respiratório; Infecções por coronavírus; Manifestações neurológicas; Tratos piramidais; Cuidados intensivos

ABSTRACT

Objective:

To evaluate whether critical SARS-CoV-2 infection is more frequently associated with signs of corticospinal tract dysfunction and other neurological signs, symptoms, and syndromes, than other infectious pathogens.

Methods:

This was a prospective cohort study with consecutive inclusion of patients admitted to intensive care units due to primary infectious acute respiratory distress syndrome requiring invasive mechanical ventilation > 48 hours. Eligible patients were randomly assigned to three investigators for clinical evaluation, which encompassed the examination of signs of corticospinal tract dysfunction. Clinical data, including other neurological complications and possible predictors, were independently obtained from clinical records.

Results:

We consecutively included 54 patients with acute respiratory distress syndrome, 27 due to SARS-CoV-2 and 27 due to other infectious pathogens. The groups were comparable in most characteristics. COVID-19 patients presented a significantly higher risk of neurological complications (RR = 1.98; 95%CI 1.23 - 3.26). Signs of corticospinal tract dysfunction tended to be more prevalent in COVID-19 patients (RR = 1.62; 95%CI 0.72 - 3.44).

Conclusion:

Our study is the first comparative analysis between SARS-CoV-2 and other infectious pathogens, in an intensive care unit setting, assessing neurological dysfunction. We report a significantly higher risk of neurological dysfunction among COVID-19 patients. As such, we suggest systematic screening for neurological complications in severe COVID-19 patients.

Keywords:
SARS-CoV-2; COVID-19; Respiratory distress syndrome; Coronavirus infections; Neurological manifestations; Pyramidal tract; Intensive care

INTRODUÇÃO

A doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) constitui uma ameaça global à saúde. A maioria dos doentes infectados é assintomática ou paucissintomática. No entanto, até 15% têm doença grave e aproximadamente 5% ficam criticamente doentes.(11 Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, Liang WH, Ou CQ, He JX, Liu L, Shan H, Lei CL, Hui DSC, Du B, Li LJ, Zeng G, Yuen KY, Chen RC, Tang CL, Wang T, Chen PY, Xiang J, Li SY, Wang JL, Liang ZJ, Peng YX, Wei L, Liu Y, Hu YH, Peng P, Wang JM, Liu JY, Chen Z, Li G, Zheng ZJ, Qiu SQ, Luo J, Ye CJ, Zhu SY, Zhong NS; China Medical Treatment Expert Group for Covid-19. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020;382(18):1708-20.)

O vírus causa principalmente sinais e sintomas respiratórios, cuja severidade determina maioritariamente a gravidade e a mortalidade da doença. No entanto há relatos em todo o espectro clínico da COVID-19 de sinais, sintomas e síndromes neurológicas.(11 Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, Liang WH, Ou CQ, He JX, Liu L, Shan H, Lei CL, Hui DSC, Du B, Li LJ, Zeng G, Yuen KY, Chen RC, Tang CL, Wang T, Chen PY, Xiang J, Li SY, Wang JL, Liang ZJ, Peng YX, Wei L, Liu Y, Hu YH, Peng P, Wang JM, Liu JY, Chen Z, Li G, Zheng ZJ, Qiu SQ, Luo J, Ye CJ, Zhu SY, Zhong NS; China Medical Treatment Expert Group for Covid-19. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020;382(18):1708-20.,22 MadaniNeishaboori A, Moshrefiaraghi D, Mohamed Ali K, Toloui A, Yousefifard M, Hosseini M. Central nervous system complications in COVID-19 patients; a systematic review and meta-analysis based on current evidence. Arch Acad Emerg Med. 2020;8(1):e62.) As descrições incluem disfunção olfativa e gustativa, patologias do sistema nervoso periférico e dos nervos cranianos, sinais de disfunção do trato corticoespinhal (DTCE), alterações cognitivas, delirium, convulsões, meningite, encefalite, mielite e doença cerebrovascular aguda.(22 MadaniNeishaboori A, Moshrefiaraghi D, Mohamed Ali K, Toloui A, Yousefifard M, Hosseini M. Central nervous system complications in COVID-19 patients; a systematic review and meta-analysis based on current evidence. Arch Acad Emerg Med. 2020;8(1):e62.

3 Correia AO, Feitosa PW, Moreira JL, Nogueira SA, Fonseca RB, Nobre ME. Neurological manifestations of COVID-19 and other coronaviruses: a systematic review. Neurol Psychiatry Brain Res. 2020;37:27-32.

4 Helms J, Kremer S, Merdji H, Clere-Jehl R, Schenck M, Kummerlen C, et al. Neurologic features in severe SARS-CoV-2 infection. N Engl J Med. 2020;382(23):2268-70.
-55 Stiller K. Physiotherapy in intensive care: an updated systematic review. Chest. 2013;144(3):825-47.)

Ainda não está claro se as manifestações neurológicas são apenas um epifenômeno de doença respiratória ou se estão diretamente relacionadas à infecção pelo coronavírus com síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2).(33 Correia AO, Feitosa PW, Moreira JL, Nogueira SA, Fonseca RB, Nobre ME. Neurological manifestations of COVID-19 and other coronaviruses: a systematic review. Neurol Psychiatry Brain Res. 2020;37:27-32.,55 Stiller K. Physiotherapy in intensive care: an updated systematic review. Chest. 2013;144(3):825-47.) A escassez de estudos comparativos destinados a avaliar as manifestações neurológicas entre pacientes com e sem COVID-19 é a principal razão para a persistência dessa lacuna de conhecimento.

Nosso principal objetivo foi identificar se o SARS-CoV-2 está mais comumente associado a sinais de DTCE e outros sinais, sintomas e síndromes neurológicas do que outros agentes infeciosos causadores de insuficiência respiratória grave.

MÉTODOS

Desenho e definições do estudo

Este foi um estudo de coorte prospectivo com inclusão consecutiva de doentes internados em quatro unidades de cuidados intensivos (UCIs) de um departamento de medicina intensiva de um centro terciário entre maio de 2020 e setembro de 2021.

Os critérios de inclusão foram idade superior a 18 anos e diagnóstico de síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) infeccioso à admissão à UCI, com necessidade de ventilação mecânica invasiva (VMI) por mais de 48 horas.

A SDRA foi definida em conformidade com a definição de Berlim como uma síndrome aguda de inflamação pulmonar e aumento da permeabilidade alvéolo-capilar associada à hipóxia grave e a infiltrados bilaterais nas radiografias de tórax, sem evidência de insuficiência cardíaca esquerda.(66 ARDS Definition Task Force, Ranieri VM, Rubenfeld GD, Thompson BT, Ferguson ND, Caldwell E, Fan E, et al. Acute respiratory distress syndrome: the Berlin Definition. JAMA. 2012;307(23):2526-33.)

Os critérios de exclusão foram a presença de patologias neurológicas centrais ou periféricas prévias, registradas nos processos clínicos eletrônicos (PCE), e a morte ou alta hospitalar antes das primeiras 24 - 72 horas após o desmame ventilatório.

O estudo foi aprovado pela comissão de ética institucional (Comissão de Ética do Centro Hospitalar Universitário de São João da Faculdade de Medicina, Universidade do Porto - n° 169/20) e realizado de acordo com a Declaração de Helsinki. Considerando o contexto do estudo, renunciou-se ao Consentimento Livre e Esclarecido por escrito, tendo sido obtido consentimento verbal antes da avaliação clínica.

O método de amostragem foi uma inclusão consecutiva de doentes que cumprissem os critérios de inclusão e exclusão, até ser alcançado o tamanho calculado da amostra.

Considerava-se um caso de SDRA por COVID-19 quando existia um resultado positivo em ensaios em tempo real de reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa (RT-PCR) de amostras de esfregaços nasais e faríngeos durante as primeiras 24 horas após a admissão hospitalar. Outros casos infecciosos de SDRA foram assumidos quando a SDRA primária era causada por outros agentes (identificados através de amostras do trato respiratório, sangue ou culturas de urina), com teste negativo de RT-PCR para SARS-CoV-2.

A afasia foi definida como comprometimento da compreensão ou expressão da linguagem, incluindo problemas de semântica, gramática, fonologia, morfologia ou sintaxe.(77 Le H, Lui MY. Aphasia. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.) Considerou-se a presença de disartria quando detectada uma alteração motora da fala que cursasse com diminuição da velocidade, fraqueza e/ou imprecisão articulatória(88 Duffy JR. Motor speech disorders: substrates, differential diagnosis, and management. 2nd ed. St. Louis, Mo.: Elsevier Mosby; c2005.) e de disfonia quando existisse o comprometimento na produção vocal.(99 Neighbors C, Song SA. Dysphonia. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.) Assumiu-se fraqueza focal quando havia um défice de força muscular a envolver um ou mais membros.(1010 Tarulli A. Focal limb weakness. In: Tarulli A, editor. Neurology: A Clinician’s Approach. Cham: Springer International Publishing; 2016. p. 171-82.) Definiu-se delirium como uma alteração da atenção, consciência e cognição, com comprometimento na atenção focal, sustentada ou dirigida.(1111 Ramírez Echeverría MD, Schoo C, Paul M. Delirium. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.) As convulsões foram definidas como uma mudança no nível de consciência, comportamento, memória ou sentimentos relacionados à atividade elétrica descontrolada e/ou anômala cerebral.(1212 Huff JS, Murr N. Seizure. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.) As doenças cerebrovasculares foram classificadas de acordo com a American Heart Association (AHA),(1313 Sacco RL, Kasner SE, Broderick JP, Caplan LR, Connors JJ, Culebras A, Elkind MS, George MG, Hamdan AD, Higashida RT, Hoh BL, Janis LS, Kase CS, Kleindorfer DO, Lee JM, Moseley ME, Peterson ED, Turan TN, Valderrama AL, Vinters HV; American Heart Association Stroke Council, Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia; Council on Cardiovascular Radiology and Intervention; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Epidemiology and Prevention; Council on Peripheral Vascular Disease; Council on Nutrition, Physical Activity and Metabolism. An updated definition of stroke for the 21st century: a statement for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association. Stroke. 2013;44(7):2064-89.,1414 Easton JD, Saver JL, Albers GW, Alberts MJ, Chaturvedi S, Feldmann E, Hatsukami TS, Higashida RT, Johnston SC, Kidwell CS, Lutsep HL, Miller E, Sacco RL; American Heart Association; American Stroke Association Stroke Council; Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia; Council on Cardiovascular Radiology and Intervention; Council on Cardiovascular Nursing; Interdisciplinary Council on Peripheral Vascular Disease. Definition and evaluation of transient ischemic attack: a scientific statement for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association Stroke Council; Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia; Council on Cardiovascular Radiology and Intervention; Council on Cardiovascular Nursing; and the Interdisciplinary Council on Peripheral Vascular Disease. The American Academy of Neurology affirms the value of this statement as an educational tool for neurologists. Stroke. 2009;40(6):2276-93.) da seguinte forma: (1) acidente isquêmico transitório (AIT) - episódio transitório de manifestações neurológicas causado por isquemia cerebral focal; (2) acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico - episódio de manifestações neurológicas causado por um infarto cerebral focal e (3) AVC hemorrágico - episódio de manifestações neurológicas causado por acúmulo focal de sangue no parênquima cerebral ou do sistema ventricular, não causado por trauma. A encefalopatia foi considerada quando existia disfunção do nível ou conteúdo da consciência devido à disfunção cerebral, possivelmente resultante de insultos globais ao cérebro ou de uma lesão focal em relação a condições neurológicas primárias ou sistêmicas.(1515 Erkkinen MG, Berkowitz AL. A clinical approach to diagnosing encephalopathy. Am J Med. 2019;132(10):1142-7.) Considerou-se encefalite a infecção aguda cerebral, caracterizada clinicamente por febre, cefaleia e alteração do nível de consciência.(1616 Roos KL. Encephalitis. Neurol Clin. 1999;17(4):813-33.) A mielite foi definida como um distúrbio inflamatório da medula espinhal, caracterizado por disfunção aguda ou subaguda, afetando os sistemas motor, sensitivo e/ou autônomo.(1717 Frohman EM, Wingerchuk DM. Clinical practice. Transverse myelitis. N Engl J Med. 2010;363(6):564-72.) As neuropatias periféricas foram assumidas quando diagnosticados distúrbios de células e fibras nervosas periféricas, como mononeuropatias, neuropatias multifocais e polineuropatias.(1818 Hammi C, Yeung B. Neuropathy. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.)

Métodos de coleta de dados

O investigador principal, com suporte de dois médicos seniores de Medicina Física e Reabilitação (MFR) e de Medicina Intensiva, foi responsável por avaliar o PCE de todos os doentes admitidos diariamente em UCI, visando identificar os que preenchiam os critérios de inclusão para o estudo e avaliar o momento do seu desmame ventilatório (retirada do suporte ventilatório). Todos os pacientes estavam extubados no momento da avaliação clínica. Os dados dos doentes incluídos foram recolhidos numa base de dados eletrônica, na qual a cada doente foi atribuído um número de identificação para garantir seu anonimato.

Os doentes incluídos, 24 - 72 horas após o desmame ventilatório, foram atribuídos aleatoriamente por meio de uma sequência de alocação gerada por computador a um dos três investigadores independentes para avaliação clínica. Os investigadores estavam cegados para as características dos doentes e para a questão e os objetivos do estudo. Esses investigadores eram médicos de MFR com treino específico em reabilitação do doente crítico e em reabilitação neurológica. Para garantir métodos de avaliação comuns, realizou-se uma sessão educacional ministrada por uma especialista em MFR certificada pelo board europeu da especialidade antes do início do estudo. A avaliação clínica incluiu a avaliação do nível de consciência, usando a escala de agitação e sedação de Richmond (RASS) e avaliação de sinais de DTCE, ou seja, reflexos osteo-tendinosos (ROTs) e o sinal de Babinski. Cada paciente foi avaliado pelo mesmo investigador nas primeiras 24 - 72 horas após o desmame ventilatório e reavaliado a cada 24 - 72 horas, até completar três observações.

Os ROTs foram avaliados usando um martelo de reflexos predefinido, em forma de T, a nível bicipital, tricipital, estiloradial, rotuliano e aquiliano. A classificação da resposta reflexa foi realizada de acordo com uma adaptação da escala de reflexos miotáticos do National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS): 0 - ausente, 1 - hiporreflexia, 2 - normorreflexia, 3 - hiperreflexia, 4 - hiperreflexia com clônus esgotável (< 5 batidas) e 5 - hiperreflexia com clônus inesgotável (> 5 batidas).(1919 Litvan I, Mangone CA, Werden W, Bueri JA, Estol CJ, Garcea DO, et al. Reliability of the NINDS Myotatic Reflex Scale. Neurology. 1996;47(4):969-72.)

O sinal de Babinski foi avaliado usando a ponta do cabo do martelo de reflexos, subindo com leve pressão o lado plantar lateral do pé, do calcanhar até os dedos. A resposta do hálux e dedos do pé foi registrada como extensora (sinal de Babinski), flexora ou indiferente.(2020 Isaza Jaramillo SP, Uribe Uribe CS, García Jimenez FA, Cornejo-Ochoa W, Alvarez Restrepo JF, Román GC. Accuracy of the Babinski sign in the identification of pyramidal tract dysfunction. J Neurol Sci. 2014;343(1-2):66-8.)

Quando em dúvida, tanto nos ROTs como no sinal de Babinski, os investigadores poderiam repetir cada avaliação até três vezes, registrando a resposta mais consistente. Os investigadores registraram as avaliações anonimamente, por meio de um formulário eletrônico.

Desfechos e preditores

Os desfechos primários foram a presença de sinais de DTCE e de outros sinais, sintomas ou síndromes neurológicas (afasia, disartria, disfonia, fraqueza focal, delirium, convulsões, AVC, AIT, encefalopatia, encefalite, mielite e neuropatias periféricas). Os sinais de DTCE foram definidos como a presença de sinal de Babinski em pelo menos uma extremidade ou hiper-reflexia em pelo menos duas extremidades.(2121 Álvarez N, Díez L, Avellaneda C, Serra M, Rubio MA. Relevance of the pyramidal syndrome in amyotrophic lateral sclerosis. Neurologia (Engl Ed). 2018;33(1):8-12.) Considerou-se que os sinais de DTCE estavam presentes quando identificados em todas as avaliações clínicas. Informações relativas a outros sinais, sintomas ou síndromes neurológicas foram recolhidas a partir dos PCE. Primeiramente, analisou-se a presença de cada complicação neurológica individualmente. Posteriormente, realizaram-se análises adicionais considerando um desfecho dicotômico combinado (composite de manifestações neurológicas). Este considerava, para cada doente, a presença de pelo menos um sinal, sintoma ou síndrome neurológica, independentemente do número de manifestações presentes acima de um.

O investigador principal extraiu vários outros dados dos PCE antes de avaliar as informações relativas às avaliações clínicas, designadamente: idade; sexo; autonomia prévia nas atividades diárias avaliadas por meio da escala de Rankin modificada (ERm); comorbidades (hipertensão, diabetes mellitus, hiperlipidemia, obesidade, tabagismo, fibrilação atrial, doença cardíaca isquêmica, insuficiência cardíaca, doença vascular periférica, doença pulmonar obstrutiva crônica, asma, apneia do sono, transtornos psiquiátricos, doenças oncológicas e imunossupressão); número de dias na UCI e tempo total de internamento hospitalar; número de dias sob VMI, ventilação não invasiva e oxigenoterapia; necessidade de posicionamento em decúbito ventral (prone); necessidade, tipo e número de dias em oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO); e necessidade e número de dias em terapia de substituição renal, vasopressores, sedoanalgesia, bloqueadores neuromusculares e corticosteroides.

Adicionalmente, foi também avaliada a presença de outras complicações durante o internamento em UCI. As complicações cardiovasculares incluíram bradiarritmias, taquiarritmias (fibrilação atrial, flutter, outras), síndrome taquicardia-bradicardia, lesão miocárdica secundária, parada cardiorrespiratória, pericardite, derrame pericárdico, endocardite, insuficiência cardíaca e choque cardiogênico. As complicações abdominais incluíram hepatite, elevação das enzimas hepáticas, hemorragia digestiva, pseudo-obstrução e obstrução, diarreia e obstipação. Consideraram-se complicações infecciosas as infecções adquiridas na UCI, independentemente do diagnóstico de admissão. A força muscular foi avaliada 6 a 9 dias após o desmame ventilatório por meio da escala Medical Research Council-Sum Score (MRC-SS).

Cálculo do tamanho da amostra e análise estatística

Devido à falta de dados sobre as características e significância da avaliação dos ROTs no contexto de UCI, utilizaram-se dados de um estudo populacional.(44 Helms J, Kremer S, Merdji H, Clere-Jehl R, Schenck M, Kummerlen C, et al. Neurologic features in severe SARS-CoV-2 infection. N Engl J Med. 2020;382(23):2268-70.,2222 Lim KS, Bong YZ, Chaw YL, Ho KT, Lu KK, Lim CH, et al. Wide range of normality in deep tendon reflexes in the normal population. Neurology Asia. 2009;14(1):21-5.) Estimou-se o tamanho total da amostra de 54 pacientes (27 por grupo), considerando uma prevalência esperada nos não expostos de 0,36, um risco relativo (RR) de 2, um poder de 80% e um nível de significância de 0,05.

A análise estatística foi realizada com a versão 27 do software Statistical Pakage for the Social Sciences (SPSS). As variáveis categóricas encontram-se sumariadas como números absolutos e percentagens e as variáveis contínuas como média e desvio-padrão (se distribuição normal) ou mediana e âmbito interquartil (se distribuição assimétrica). A distribuição das variáveis contínuas foi avaliada através da análise visual de histograma. Para comparar variáveis categóricas, foram utilizados os testes de qui-quadrado ou exato de Fisher, de acordo com a situação. As variáveis contínuas foram comparadas entre grupos usando o teste t de amostras independentes ou o teste U de Mann-Whitney, de acordo com a distribuição das variáveis. Calcularam-se o RR, seu erro padrão e intervalo de confiança de 95% (IC95%) de acordo com Altman et al.(2323 Altman DG. Practical statistics for medical research. London: Chapman and Hall; 1991.) Realizou-se também análise univariada de logística binária, usando o composite de complicações neurológicas como a variável dependente. Todos os valores de p relatados são bicaudais; um valor de p < 0,05 indica significância estatística.

RESULTADOS

Foram admitidos na UCI 207 doentes com diagnóstico de SDRA infecciosa primária durante o período do estudo. Destes, foram excluídos 153 pacientes: 89 morreram, 42 foram transferidos para outros hospitais antes da avaliação neurológica e 22 tinham patologia neurológica prévia. Assim, foram incluídos consecutivamente 54 doentes, de acordo com o cálculo do tamanho da amostra: 27 com SDRA causada por COVID-19 e 27 com SDRA devido a outros agentes infecciosos.

No que se refere ao grupo de doentes com SDRA devido a outros agentes infecciosos, a maioria dos microrganismos (56%) eram bactérias Gram-negativas (Serratia, Rickettsia, Pseudomonas, Moraxella, Legionella, Klebsiella, Escherichia coli e Haemophilus influenzae); contudo, outros agentes, incluindo bactérias Gram-positivas (Staphylococcus, Streptococcus e Enterococcus) e fungos (Pneumocystis e Aspergillus) foram também identificados.

A tabela 1 detalha as características sociodemográficas e clínicas da amostra. Apesar de comparáveis na maioria das características, os pacientes com COVID-19 encontravam-se menos frequentemente imunodeprimidos (0% versus 26%; valor de p = 0,010). A imunossupressão no grupo de doentes com SDRA devido a outros agentes infecciosos era no contexto de estados pós transplante (n = 3), proteinose alveolar (n = 1), vasculite associada a anticorpos citoplasmáticos anti-neutrófilos subtipo mieloperoxidase (n = 1), neoplasias (n = 1) e infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (n = 1).

Tabela 1
Características sociodemográficas e clínicas

Quanto às características da doença respiratória crítica (Tabela 1), os grupos eram também comparáveis. Não obstante, os doentes com COVID-19 apresentavam um número significativamente maior de dias de internamento em UCI (valor de p = 0,006), de VMI (valor de p = 0,039), sedoanalgesia (valor de p = 0,025) e corticosteroides (valor de p = 0,004), além de maior necessidade de posicionamento em prone (valor de p < 0,001).

Em relação ao desfecho primário, 61% da amostra apresentou pelo menos um sinal, sintoma ou síndrome neurológica. No entanto, cada uma das complicações neurológicas era individualmente rara (< 5%), com exceção dos quadros de delirium (30%) e da presença de sinais de DTCE (33%).

Compararam-se os grupos quanto à presença de cada complicação neurológica e quanto ao conjunto de manifestações neurológicas (composite). Foram identificadas diferenças significativas entre os grupos ao analisar a variável composta (valor de p = 0,002), sendo que os doentes com COVID-19 apresentavam um RR 1,98 vezes superior (IC95% 1,23 - 3,26) do que os admitidos com SDRA devido a outras etiologias (85% versus 43%). Na análise de cada complicação, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas (Tabela 2). De fato, 44% dos doentes com COVID-19 apresentaram sinais de DTCE, enquanto sua prevalência foi de 27% em pacientes sem COVID-19. Embora os sinais de DTCE tendessem a ser mais prevalentes em doentes com COVID-19 (RR de 1,62; IC95% 0,72 - 3,44), essa diferença não alcançou significância estatística (valor de p = 0,20). No que se refere à pontuação na escala de RASS no momento da avaliação clínica, não foram encontradas diferenças entre os grupos em nenhuma das avaliações (valores de p na primeira observação de 0,649; na segunda observação de 0,093; e na terceira observação de 0,170).

Tabela 2
Complicações de doenças respiratórias críticas

Realizou-se uma análise univariada (Tabela 3) para identificar fatores potencialmente associados a complicações neurológicas. Além do diagnóstico de COVID-19, nenhuma outra variável se associou a este desfecho.

Tabela 3
Análise logística univariável de possíveis fatores associados a complicações neurológicas

Além disso, analisou-se se havia diferença entre grupos relativamente às complicações não neurológicas (Tabela 2). Não foram observadas diferenças significativas, exceto quanto à presença de complicações infecciosas (valor de p < 0,001), nas quais os doentes com COVID-19 apresentaram um risco 3,29 vezes superior (IC95% 1,70 - 6,34).

DISCUSSÃO

Os doentes críticos com COVID-19 apresentaram um risco 1,98 vezes maior de desenvolver complicações neurológicas do que os doentes admitidos em UCI por outras SDRAs infecciosas. Do nosso conhecimento, este é o primeiro estudo a comparar a presença de sinais de DTCE e outros sinais, sintomas e síndromes neurológicas entre doentes com SDRA grave por COVID-19 versus outros agentes infeciosos.

Vários sinais, sintomas e síndromes neurológicas têm sido reportados em até 80% dos doentes com COVID-19, em todo o espectro clínico da doença. Essas descobertas geraram considerável preocupação devido a seu possível impacto na mortalidade, na morbidade, na incapacidade e na qualidade de vida dos doentes críticos.(2424 Park J, Kwon YS, Kim HA, Kwon DH, Hwang J, Jang SH, et al. Clinical implications of neurological comorbidities and complications in ICU patients with COVID-19. J Clin Med. 2021;10(11):2281.)

Dados clínicos e pré-clínicos têm revelado que o SARS-CoV-2 tem algum grau de neurotropismo, tendo sido sugeridos diferentes mecanismos.(2525 Steardo L, Steardo L Jr, Zorec R, Verkhratsky A. Neuroinfection may contribute to pathophysiology and clinical manifestations of COVID-19. Acta Physiol (Oxf). 2020;229(3):e13473.,2626 Li YC, Bai WZ, Hirano N, Hayashida T, Taniguchi T, Sugita Y, et al. Neurotropic virus tracing suggests a membranous-coating-mediated mechanism for transsynaptic communication. J Comp Neurol. 2013;521(1):203-12.) Em primeiro lugar, pensa-se que o SARS-CoV-2 explora o receptor da enzima conversora de angiotensina 2 para entrar nas células, especificamente no sistema respiratório e no tecido neurológico.(2626 Li YC, Bai WZ, Hirano N, Hayashida T, Taniguchi T, Sugita Y, et al. Neurotropic virus tracing suggests a membranous-coating-mediated mechanism for transsynaptic communication. J Comp Neurol. 2013;521(1):203-12.) No entanto, não foram excluídas vias alternativas à da enzima conversora da angiotensina 2. Propuseram-se tanto uma via transináptica direta através do bulbo olfativo como uma via circulatória, por meio da qual a inflamação sistêmica compromete a barreira hematoencefálica.(2727 Wu Y, Xu X, Chen Z, Duan J, Hashimoto K, Yang L, et al. Nervous system involvement after infection with COVID-19 and other coronaviruses. Brain Behav Immun. 2020;87:18-22.) Outra explicação possível é que a combinação de hipóxia e neuroinflamação danifica as áreas do hipocampo e córtex, resultando em disfunção neuropsiquiátrica.(2525 Steardo L, Steardo L Jr, Zorec R, Verkhratsky A. Neuroinfection may contribute to pathophysiology and clinical manifestations of COVID-19. Acta Physiol (Oxf). 2020;229(3):e13473.)

De fato, vários estudos abordaram a frequência e as características de manifestações neurológicas entre pacientes com COVID-19,(2828 Severo Bem Junior L, do Rego Aquino PL, Nunes Rabelo N, do Rego Aquino MA, Veiga Silva AC, Ferreira Valenca Mota RC, et al. SARS-CoV-2 and nervous system - neurological manifestations in patients with COVID-19: a systematic review. J Neurol Res. 2020;10(4):113-21.,2929 Misra S, Kolappa K, Prasad M, Radhakrishnan D, Thakur KT, Solomon T, et al. Frequency of Neurologic manifestations in COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Neurology. 2021;97(23):e2269-81.) mas ainda há uma lacuna substancial de conhecimento em vários domínios, especificamente no que diz respeito aos doentes críticos. O envolvimento do sistema nervoso central e periférico tem sido amplamente relatado em pacientes internados em UCI, seja como manifestação de doença crítica sistêmica ou seu tratamento.(3030 Bleck TP, Smith MC, Pierre-Louis SJ, Jares JJ, Murray J, Hansen CA. Neurologic complications of critical medical illnesses. Crit Care Med. 1993;21(1):98-103.) Além disso, um em cada três doentes internados na UCI devido a entidades não neurológicas desenvolve complicações neurológicas, o que duplica o tempo de internamento e a taxa de mortalidade, aumentando a incapacidade pós-alta hospitalar.(3030 Bleck TP, Smith MC, Pierre-Louis SJ, Jares JJ, Murray J, Hansen CA. Neurologic complications of critical medical illnesses. Crit Care Med. 1993;21(1):98-103.) Dessa forma, doentes críticos com COVID-19 têm propensão a desenvolver não apenas as possíveis manifestações neurológicas associadas à infeção SARS-CoV-2 (neuro-COVID), mas também complicações neurológicas relacionadas ao internamento em UCI.

Neste estudo, ambos os grupos eram comparáveis em relação à maioria das características socio-demograficas e clínicas (comorbilidades e relacionadas com a doença crítica). No entanto, os doentes com COVID-19 eram menos frequentemente imunodeprimidos do que os doentes sem COVID-19. Além disso, os doentes com COVID-19 tiveram um número maior de dias de internamento em UCI, sob VMI e sob sedoanalgesia. Como esses fatores poderiam influenciar a frequência da disfunção neurológicas, analisou-se se algum deles estava associado a esta variável de desfecho, não tendo sido encontradas diferenças significativas. Além disso, ao avaliar as diferenças entre grupos no que se refere à pontuação na escala de RASS nos três momentos de avaliação clínica, também se procurou identificar o efeito dessas características sobre o estado clínico no momento da avaliação e, novamente, não foram encontradas diferenças significativas. Assim, os doentes com COVID-19 apresentavam maior risco de complicações neurológicas, independentemente da gravidade e tratamento dirigido à doença crítica.

Na nossa amostra, as manifestações neurológicas foram descritas em 85% dos doentes com COVID-19, valores similares à literatura.(2424 Park J, Kwon YS, Kim HA, Kwon DH, Hwang J, Jang SH, et al. Clinical implications of neurological comorbidities and complications in ICU patients with COVID-19. J Clin Med. 2021;10(11):2281.) Cada complicação neurológica per se era rara, dados estes compatíveis com o estudo de Deana et al.(3131 Deana C, Verriello L, Pauletto G, Corradi F, Forfori F, Cammarota G, et al. Insights into neurological dysfunction of critically ill COVID-19 patients. Trends Anaesth Crit Care. 2021;36:30-8.) Contudo, o delirium (33%) e os sinais de DTCE (44%) foram complicações comuns, apesar da menor frequência comparativamente com outros estudos.(3232 Helms J, Kremer S, Merdji H, Schenck M, Severac F, Clere-Jehl R, et al. Delirium and encephalopathy in severe COVID-19: a cohort analysis of ICU patients. Crit Care. 2020;24(1):491.) Em relação ao delirium, apesar da sua elevada incidência e impacto, o uso de instrumentos de rastreio permanece subótimo, resultando numa possível subestimação da sua real frequência na nossa amostra. Além disso, em relação aos sinais de DTCE, a frequência na nossa amostra também foi inferior à de estudos anteriores, o que pode estar relacionado à aplicação de diferentes critérios diagnósticos (por não existir um standard bem definido).

Neste estudo, avaliaram-se sinais de DTCE como uma medida objetiva de envolvimento neurológico. Na UCI, o exame neurológico pode ser extremamente difícil realizar. No entanto, a avaliação de sinais de DTCE pode ser uma ferramenta importante, uma vez que não requer a colaboração do paciente, a qual geralmente está comprometida neste contexto. A avaliação de ROTs permite a distinção rápida e clara entre patologia do neurónio motor superior e inferior (reflexos aumentados e deprimidos/ausentes, respectivamente), enquanto a presença do sinal de Babinski é um achado característico da doença do neurónio motor superior.(3333 Emos MC, Rosner J. Neuroanatomy, Upper Motor Nerve Signs. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.) Poucos estudos avaliaram a prevalência de DTCE e sua relevância clínica no ambiente de UCI, bem como a influência real da iatrogenia (nomeadamente do bloqueio neuromuscular) sobre estes sinais.(44 Helms J, Kremer S, Merdji H, Clere-Jehl R, Schenck M, Kummerlen C, et al. Neurologic features in severe SARS-CoV-2 infection. N Engl J Med. 2020;382(23):2268-70.,3434 Tezcan B, Turan S, Özgök A. Current use of neuromuscular blocking agents in intensive care units. Turk J Anaesthesiol Reanim. 2019;47(4):273-81.,3535 Murray MJ, DeBlock H, Erstad B, Gray A, Jacobi J, Jordan C, et al. Clinical Practice Guidelines for Sustained Neuromuscular Blockade in the Adult Critically Ill Patient. Crit Care Med. 2016;44(11):2079-103.) Além disso, a fraqueza muscular adquirida na UCI, cuja prevalência pode ser superior nessa população uma vez que os seus fatores de risco são significativamente mais comuns, pode também mascarar a presença de sinais de DTCE porque, quando esta entidade está presente, a resposta dos ROTs é hipoativa ou ausente, de modo que uma subestimação dos sinais de DTCE pode estar presente na nossa análise, dado o contexto do estudo.(44 Helms J, Kremer S, Merdji H, Clere-Jehl R, Schenck M, Kummerlen C, et al. Neurologic features in severe SARS-CoV-2 infection. N Engl J Med. 2020;382(23):2268-70.,3636 Bax F, Lettieri C, Marini A, Pellitteri G, Surcinelli A, Valente M, et al. Clinical and neurophysiological characterization of muscular weakness in severe COVID-19. Neurol Sci. 2021;42(6):2173-8.

37 Kress JP, Hall JB. ICU-acquired weakness and recovery from critical illness. N Engl J Med. 2014;370(17):1626-35.
-3838 Nordon-Craft A, Moss M, Quan D, Schenkman M. Intensive care unit-acquired weakness: implications for physical therapist management. Phys Ther. 2012;92(12):1494-506.) Contudo, estudos de ressonância magnética em doentes com COVID-19 mostraram que lesões no trato corticoespinhal eram lesões as comuns na substância branca.(3939 Parsons N, Outsikas A, Parish A, Clohesy R, D’Aprano F, Toomey F, et al. Modelling the anatomic distribution of neurologic events in patients with COVID-19: a systematic review of MRI findings. AJNR Am J Neuroradiol. 2021;42(7):1190-5.) De fato, nesta análise, os doentes com COVID-19 tenderam a apresentar taxas mais altas de sinais de DTCE, com RR 1,2 vezes superior.

Em relação às restantes complicações na UCI avaliadas neste trabalho, não houve diferenças nas taxas de fraqueza muscular, complicações cardiovasculares e abdominais, dados consistentes com a literatura.(4040 Scarpino M, Bonizzoli M, Lazzeri C, Lanzo G, Lolli F, Ciapetti M, et al. Electrodiagnostic findings in patients with non-COVID-19- and COVID-19-related acute respiratory distress syndrome. Acta Neurol Scand. 2021;144(2):161-9.)

Destaca-se que este é o primeiro estudo comparativo em UCI, destinado a avaliar disfunção neurológica e a estabelecer uma comparação direta entre doentes com SDRA a COVID-19 e a outros agentes infeciosos. O desenho do estudo e seus pontos fortes metodológicos reforçam as principais descobertas. Para assegurar a validade externa dos presentes resultados, houve uma amostragem consecutiva dos participantes e a inclusão de doentes de diferentes UCIs. Quanto à validade interna dos dados, enfatiza-se que o investigador principal recolheu dos PCE as variáveis preditoras antes de avaliar os dados referentes ao exame neurológico realizado à cabeceira do doente, sendo que os três investigadores associados eram independentes, portanto, alheios às características dos doentes. Além disso, em relação ao método de avaliação, foi utilizado o mesmo material, para diminuir o risco de viés instrumental. Ainda, os investigadores foram treinados pelo mesmo especialista, para garantir técnicas de avaliação comuns. Adicionalmente, para avaliar possíveis fatores confundidores, realizou-se análise univariada, que confirmou que nenhum outro fator além do diagnóstico de COVID-19 estava significativamente associado à presença de manifestações neurológicas.

Este estudo apresenta algumas limitações. O tamanho da amostra foi calculado com base nas taxas de sinais de DTCE na população geral, dada a ausência de estudos em pacientes internados em UCI quando do início do recrutamento deste estudo. No entanto, os dados de Helms et al., publicados durante nosso período de recrutamento, revelam prevalência superior de sinais de DTCE na população com COVID-19, o que provavelmente está relacionado à heterogeneidade dos critérios que definem a presença de sinais de DTCE.(44 Helms J, Kremer S, Merdji H, Clere-Jehl R, Schenck M, Kummerlen C, et al. Neurologic features in severe SARS-CoV-2 infection. N Engl J Med. 2020;382(23):2268-70.) De fato, em doentes críticos, o bloqueio neuromuscular é usado como padrão de cuidado, e a fraqueza adquirida na UCI está presente em mais de 50% dos casos. Como o efeito de ambos na resposta reflexogênica é a sua redução ou abolição, isso deve ser considerado quando estas avaliações são realizadas em contexto de UCI.(3434 Tezcan B, Turan S, Özgök A. Current use of neuromuscular blocking agents in intensive care units. Turk J Anaesthesiol Reanim. 2019;47(4):273-81.,3535 Murray MJ, DeBlock H, Erstad B, Gray A, Jacobi J, Jordan C, et al. Clinical Practice Guidelines for Sustained Neuromuscular Blockade in the Adult Critically Ill Patient. Crit Care Med. 2016;44(11):2079-103.) Além disso, no cálculo do tamanho da amostra, considerou-se um RR de 2, portanto a ausência de diferenças nesta população em relação a sinais de DTCE pode ser porque o RR é inferior ao esperado em cerca de 19% . Isto significa que a prevalência de sinais de DTCE na UCI é possivelmente menor do que o esperado e, portanto, o tamanho da amostra pode ter sido subestimado. Além disso, a avaliação e a classificação dos ROTs são subjetivas e operador-dependentes, o que implica a existência de variabilidade inter e intra-observador, cuja extensão raramente foi relatada.(4141 Manschot S, Van Passel L, Buskens E, Algra A, van Gijn J. Mayo and NINDS scales for assessment of tendon reflexes: between observer agreement and implications for communication. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1998;64(2):253-5.) Além disso, os sinais, sintomas e síndromes neurológicas incluídos no composite (afasia, disartria, disfonia, fraqueza focal, delirium, convulsões, AVC, AIT, encefalopatia, encefalite, mielite, neuropatias periféricas) só foram considerados quando registrados nos PCE, o que implica que seja considerada um possível viés de registro.

Dada a maior frequência de manifestações neurológicas em doentes com COVID-19, sugerimos que os casos com doença COVID-19 crítica devam ser sistematicamente rastreados quanto a manifestações neurológicas. Além disso, pensa-se que doentes com complicações neurológicas durante o internamento hospitalar têm desfechos funcionais significativamente menos favoráveis aos 6 meses.(4242 Frontera JA, Yang D, Lewis A, Patel P, Medicherla C, Arena V, et al. A prospective study of long-term outcomes among hospitalized COVID-19 patients with and without neurological complications. J Neurol Sci. 2021;426:117486.) A avaliação precoce por MFR pode permitir o diagnóstico precoce de complicações neurológicas e a subsequente implementação de intervenções terapêuticas dirigidas para reduzir o seu efeito a longo prazo.(3232 Helms J, Kremer S, Merdji H, Schenck M, Severac F, Clere-Jehl R, et al. Delirium and encephalopathy in severe COVID-19: a cohort analysis of ICU patients. Crit Care. 2020;24(1):491.,4242 Frontera JA, Yang D, Lewis A, Patel P, Medicherla C, Arena V, et al. A prospective study of long-term outcomes among hospitalized COVID-19 patients with and without neurological complications. J Neurol Sci. 2021;426:117486.)

Justificam-se estudos adicionais para avaliar o impacto a longo prazo de manifestações neurológicas em pacientes com COVID-19. A relação entre os sinais de DTCE e a presença de síndromes neurológicas, bem como a confiabilidade inter e intra-observador da avaliação de sinais de DTCE deve ser caracterizada em contexto de UCI. Além disso, permanecem controversas as relações causais entre a gravidade e a frequência da doença e as características do envolvimento neurológico.

CONCLUSÃO

Os doentes COVID-19 críticos apresentam um risco significativamente superior de desenvolver complicações neurológicas, em comparação com doentes admitidos por outras síndromes do desconforto respiratório agudo infecciosas. Assim, sugere-se que os doentes COVID-19 críticos sejam sistematicamente rastreados para detectar complicações neurológicas dado o seu impacto potencial na morbidade e qualidade de vida dos doentes.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Guan WJ, Ni ZY, Hu Y, Liang WH, Ou CQ, He JX, Liu L, Shan H, Lei CL, Hui DSC, Du B, Li LJ, Zeng G, Yuen KY, Chen RC, Tang CL, Wang T, Chen PY, Xiang J, Li SY, Wang JL, Liang ZJ, Peng YX, Wei L, Liu Y, Hu YH, Peng P, Wang JM, Liu JY, Chen Z, Li G, Zheng ZJ, Qiu SQ, Luo J, Ye CJ, Zhu SY, Zhong NS; China Medical Treatment Expert Group for Covid-19. Clinical characteristics of coronavirus disease 2019 in China. N Engl J Med. 2020;382(18):1708-20.
  • 2
    MadaniNeishaboori A, Moshrefiaraghi D, Mohamed Ali K, Toloui A, Yousefifard M, Hosseini M. Central nervous system complications in COVID-19 patients; a systematic review and meta-analysis based on current evidence. Arch Acad Emerg Med. 2020;8(1):e62.
  • 3
    Correia AO, Feitosa PW, Moreira JL, Nogueira SA, Fonseca RB, Nobre ME. Neurological manifestations of COVID-19 and other coronaviruses: a systematic review. Neurol Psychiatry Brain Res. 2020;37:27-32.
  • 4
    Helms J, Kremer S, Merdji H, Clere-Jehl R, Schenck M, Kummerlen C, et al. Neurologic features in severe SARS-CoV-2 infection. N Engl J Med. 2020;382(23):2268-70.
  • 5
    Stiller K. Physiotherapy in intensive care: an updated systematic review. Chest. 2013;144(3):825-47.
  • 6
    ARDS Definition Task Force, Ranieri VM, Rubenfeld GD, Thompson BT, Ferguson ND, Caldwell E, Fan E, et al. Acute respiratory distress syndrome: the Berlin Definition. JAMA. 2012;307(23):2526-33.
  • 7
    Le H, Lui MY. Aphasia. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
  • 8
    Duffy JR. Motor speech disorders: substrates, differential diagnosis, and management. 2nd ed. St. Louis, Mo.: Elsevier Mosby; c2005.
  • 9
    Neighbors C, Song SA. Dysphonia. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
  • 10
    Tarulli A. Focal limb weakness. In: Tarulli A, editor. Neurology: A Clinician’s Approach. Cham: Springer International Publishing; 2016. p. 171-82.
  • 11
    Ramírez Echeverría MD, Schoo C, Paul M. Delirium. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
  • 12
    Huff JS, Murr N. Seizure. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
  • 13
    Sacco RL, Kasner SE, Broderick JP, Caplan LR, Connors JJ, Culebras A, Elkind MS, George MG, Hamdan AD, Higashida RT, Hoh BL, Janis LS, Kase CS, Kleindorfer DO, Lee JM, Moseley ME, Peterson ED, Turan TN, Valderrama AL, Vinters HV; American Heart Association Stroke Council, Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia; Council on Cardiovascular Radiology and Intervention; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Epidemiology and Prevention; Council on Peripheral Vascular Disease; Council on Nutrition, Physical Activity and Metabolism. An updated definition of stroke for the 21st century: a statement for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association. Stroke. 2013;44(7):2064-89.
  • 14
    Easton JD, Saver JL, Albers GW, Alberts MJ, Chaturvedi S, Feldmann E, Hatsukami TS, Higashida RT, Johnston SC, Kidwell CS, Lutsep HL, Miller E, Sacco RL; American Heart Association; American Stroke Association Stroke Council; Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia; Council on Cardiovascular Radiology and Intervention; Council on Cardiovascular Nursing; Interdisciplinary Council on Peripheral Vascular Disease. Definition and evaluation of transient ischemic attack: a scientific statement for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association Stroke Council; Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia; Council on Cardiovascular Radiology and Intervention; Council on Cardiovascular Nursing; and the Interdisciplinary Council on Peripheral Vascular Disease. The American Academy of Neurology affirms the value of this statement as an educational tool for neurologists. Stroke. 2009;40(6):2276-93.
  • 15
    Erkkinen MG, Berkowitz AL. A clinical approach to diagnosing encephalopathy. Am J Med. 2019;132(10):1142-7.
  • 16
    Roos KL. Encephalitis. Neurol Clin. 1999;17(4):813-33.
  • 17
    Frohman EM, Wingerchuk DM. Clinical practice. Transverse myelitis. N Engl J Med. 2010;363(6):564-72.
  • 18
    Hammi C, Yeung B. Neuropathy. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
  • 19
    Litvan I, Mangone CA, Werden W, Bueri JA, Estol CJ, Garcea DO, et al. Reliability of the NINDS Myotatic Reflex Scale. Neurology. 1996;47(4):969-72.
  • 20
    Isaza Jaramillo SP, Uribe Uribe CS, García Jimenez FA, Cornejo-Ochoa W, Alvarez Restrepo JF, Román GC. Accuracy of the Babinski sign in the identification of pyramidal tract dysfunction. J Neurol Sci. 2014;343(1-2):66-8.
  • 21
    Álvarez N, Díez L, Avellaneda C, Serra M, Rubio MA. Relevance of the pyramidal syndrome in amyotrophic lateral sclerosis. Neurologia (Engl Ed). 2018;33(1):8-12.
  • 22
    Lim KS, Bong YZ, Chaw YL, Ho KT, Lu KK, Lim CH, et al. Wide range of normality in deep tendon reflexes in the normal population. Neurology Asia. 2009;14(1):21-5.
  • 23
    Altman DG. Practical statistics for medical research. London: Chapman and Hall; 1991.
  • 24
    Park J, Kwon YS, Kim HA, Kwon DH, Hwang J, Jang SH, et al. Clinical implications of neurological comorbidities and complications in ICU patients with COVID-19. J Clin Med. 2021;10(11):2281.
  • 25
    Steardo L, Steardo L Jr, Zorec R, Verkhratsky A. Neuroinfection may contribute to pathophysiology and clinical manifestations of COVID-19. Acta Physiol (Oxf). 2020;229(3):e13473.
  • 26
    Li YC, Bai WZ, Hirano N, Hayashida T, Taniguchi T, Sugita Y, et al. Neurotropic virus tracing suggests a membranous-coating-mediated mechanism for transsynaptic communication. J Comp Neurol. 2013;521(1):203-12.
  • 27
    Wu Y, Xu X, Chen Z, Duan J, Hashimoto K, Yang L, et al. Nervous system involvement after infection with COVID-19 and other coronaviruses. Brain Behav Immun. 2020;87:18-22.
  • 28
    Severo Bem Junior L, do Rego Aquino PL, Nunes Rabelo N, do Rego Aquino MA, Veiga Silva AC, Ferreira Valenca Mota RC, et al. SARS-CoV-2 and nervous system - neurological manifestations in patients with COVID-19: a systematic review. J Neurol Res. 2020;10(4):113-21.
  • 29
    Misra S, Kolappa K, Prasad M, Radhakrishnan D, Thakur KT, Solomon T, et al. Frequency of Neurologic manifestations in COVID-19: a systematic review and meta-analysis. Neurology. 2021;97(23):e2269-81.
  • 30
    Bleck TP, Smith MC, Pierre-Louis SJ, Jares JJ, Murray J, Hansen CA. Neurologic complications of critical medical illnesses. Crit Care Med. 1993;21(1):98-103.
  • 31
    Deana C, Verriello L, Pauletto G, Corradi F, Forfori F, Cammarota G, et al. Insights into neurological dysfunction of critically ill COVID-19 patients. Trends Anaesth Crit Care. 2021;36:30-8.
  • 32
    Helms J, Kremer S, Merdji H, Schenck M, Severac F, Clere-Jehl R, et al. Delirium and encephalopathy in severe COVID-19: a cohort analysis of ICU patients. Crit Care. 2020;24(1):491.
  • 33
    Emos MC, Rosner J. Neuroanatomy, Upper Motor Nerve Signs. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022.
  • 34
    Tezcan B, Turan S, Özgök A. Current use of neuromuscular blocking agents in intensive care units. Turk J Anaesthesiol Reanim. 2019;47(4):273-81.
  • 35
    Murray MJ, DeBlock H, Erstad B, Gray A, Jacobi J, Jordan C, et al. Clinical Practice Guidelines for Sustained Neuromuscular Blockade in the Adult Critically Ill Patient. Crit Care Med. 2016;44(11):2079-103.
  • 36
    Bax F, Lettieri C, Marini A, Pellitteri G, Surcinelli A, Valente M, et al. Clinical and neurophysiological characterization of muscular weakness in severe COVID-19. Neurol Sci. 2021;42(6):2173-8.
  • 37
    Kress JP, Hall JB. ICU-acquired weakness and recovery from critical illness. N Engl J Med. 2014;370(17):1626-35.
  • 38
    Nordon-Craft A, Moss M, Quan D, Schenkman M. Intensive care unit-acquired weakness: implications for physical therapist management. Phys Ther. 2012;92(12):1494-506.
  • 39
    Parsons N, Outsikas A, Parish A, Clohesy R, D’Aprano F, Toomey F, et al. Modelling the anatomic distribution of neurologic events in patients with COVID-19: a systematic review of MRI findings. AJNR Am J Neuroradiol. 2021;42(7):1190-5.
  • 40
    Scarpino M, Bonizzoli M, Lazzeri C, Lanzo G, Lolli F, Ciapetti M, et al. Electrodiagnostic findings in patients with non-COVID-19- and COVID-19-related acute respiratory distress syndrome. Acta Neurol Scand. 2021;144(2):161-9.
  • 41
    Manschot S, Van Passel L, Buskens E, Algra A, van Gijn J. Mayo and NINDS scales for assessment of tendon reflexes: between observer agreement and implications for communication. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1998;64(2):253-5.
  • 42
    Frontera JA, Yang D, Lewis A, Patel P, Medicherla C, Arena V, et al. A prospective study of long-term outcomes among hospitalized COVID-19 patients with and without neurological complications. J Neurol Sci. 2021;426:117486.

Editado por

Editor responsável: Viviane Cordeiro Veiga

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2022
  • Aceito
    07 Ago 2022
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br