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Resposta para: Preditores de doença arterial coronária em sobreviventes à parada cardíaca: angiografia coronária para todos? Uma análise retrospectiva em centro único

AO EDITOR

Agradecemos aos doutores Barriuso, Irigaray, Rivera e Fernández-Rodríguez por seu interesse em nosso trabalho intitulado “Preditores de doença arterial coronária em sobreviventes à parada cardíaca: angiografia coronária para todos? Uma análise retrospectiva em centro único”, que visava identificar os preditores de doença arterial coronária em sobreviventes à parada cardíaca (PC), definir o melhor momento para a angiografia coronária e estabelecer a relação entre doença arterial coronária (DAC) e mortalidade.(11 Rigueira J, Aguiar-Ricardo I, Carrilho-Ferreira P, Menezes MN, Pereira S, Morais PS, et al. Predictors of coronary artery disease in cardiac arrest survivors: Coronary angiography for everyone? A single-center retrospective analysis. Rev Bras Ter Intensiva. 2021;33(2):251-60.)

Os autores dessa carta levantaram três questões importantes em relação ao nosso trabalho. Em primeiro lugar, em relação à definição de DAC significativa ter sido baseada exclusivamente em avaliações angiográficas. Em nosso trabalho, DAC significativa foi definida por uma redução do lúmen de pelo menos 50% no tronco comum e de pelo menos 70% nos vasos remanescentes, como recomendado nas diretrizes recentemente publicadas pela American Heart Association (AHA).(22 Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/AHA/SCAI Guideline for Coronary Artery Revascularization: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2022;145(3):e18-e114.) Em nosso centro, realizamos rotineiramente múltiplas incidências angiográficas para reduzir o erro de estimativa visual do grau de estenose coronária. Porém, entendemos o ponto de vista dos autores, e aqui é importante diferenciar o conceito de estenose com grau intermédio, que pode não causar isquemia, e placa instável, que pode ser a culpada pelo evento.

A estenose de grau intermédio é classicamente definida por uma redução do lúmen de 40% a 69%(22 Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/AHA/SCAI Guideline for Coronary Artery Revascularization: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2022;145(3):e18-e114.) em vasos que não o tronco comum, embora alguns estudos refiram um intervalo mais amplo. Para avaliar se tais lesões causam isquemia, recomenda-se um teste de estresse não invasivo ou uma avaliação invasiva com fluxo fracionado de reserva (FFR - fractional flow reserve) miocárdico ou índice instantâneo no período diastólico “sem ondas” (iFR - instantaneous wave-free ratio). No entanto, a PC recente é geralmente uma contraindicação para testes de estresse não invasivos. Em relação à fisiologia coronariana, há evidências muito limitadas para FFR, iFR ou outros índices nesse contexto clínico, principalmente porque pacientes instáveis, como os sobreviventes à PC, foram excluídos dos principais ensaios que avaliam essas técnicas, enquanto a maioria dos estudos tem se concentrado na síndrome coronariana crônica ou em lesões não culpadas pela síndrome coronariana aguda (SCA), como no ensaio iFR-SWEDEHEART.(33 Götberg M, Christiansen EH, Gudmundsdottir IJ, Sandhall L, Danielewicz M, Jakobsen L, et al. Instantaneous wave-free ratio versus fractional flow reserve to guide PCI. N Engl J Med. 2017;376(19):1813-23.) Além disso, não há dados concretos que sugiram que a utilização de FFR melhore os resultados clínicos na SCA. De fato, há algumas evidências que sugerem que a disfunção microvascular durante a SCA pode comprometer a realização da hiperemia máxima, aumentando o número de falsos-negativos com a FFR.(44 Niccoli G, Indolfi C, Davies JE. Evaluation of intermediate coronary stenoses in acute coronary syndromes using pressure guidewire. Open Heart. 2017;4(2):e000431.) Além disso, o recente estudo FLOWER-MI,(55 Puymirat E, Cayla G, Simon T, Steg PG, Montalescot G, Durand-Zaleski I, le Bras A, Gallet R, Khalife K, Morelle JF, Motreff P, Lemesle G, Dillinger JG, Lhermusier T, Silvain J, Roule V, Labèque JN, Rangé G, Ducrocq G, Cottin Y, Blanchard D, Charles Nelson A, De Bruyne B, Chatellier G, Danchin N; FLOWER-MI Study Investigators. Multivessel PCI guided by FFR or angiography for myocardial infarction. N Engl J Med. 2021;385(4):297-308.) o único ensaio a comparar diretamente a FFR com a angiografia para lesões não culpadas no contexto da SCA, não mostrou superioridade de uma estratégia baseada em FFR. Portanto, não há evidência que apoie a utilização dos métodos de fisiologia invasiva para identificar a lesão culpada pela SCA ou após a PC.

A discussão sobre placas estáveis e instáveis é muito interessante, pois há alguma evidência de que apenas a intervenção coronária percutânea (ICP) de lesões instáveis pode ser benéfica em pacientes sobreviventes à PC.(66 Pechmajou L, Marijon E, Varenne O, Dumas F, Beganton F, Jost D, Lamhaut L, Lecarpentier E, Loeb T, Agostinucci JM, Sideris G, Riant E, Baudinaud P, Hagege A, Bougouin W, Spaulding C, Cariou A, Jouven X, Karam N; ParisSudden Death Expertise Center Investigators. Impact of coronary lesion stability on the benefit of emergent percutaneous coronary intervention after sudden cardiac arrest. Circ Cardiovasc Interv. 2020;13(9):e009181.) Importa ressalvar que, no nosso trabalho, se os operadores encontrassem uma lesão claramente culpada por critérios angiográficos, esses pacientes seriam considerados como tendo DAC significativa - talvez isso não tenha sido suficientemente esclarecido. Em relação à imagem intracoronariana, havia pacientes em nossa amostra nos quais foram utilizados ultrassom intravascular (IVUS) e tomografia de coerência óptica (OCT), de acordo com a escolha do operador, nomeadamente, em pacientes com infarto do miocárdio tipo 4 e para planejar e otimizar os resultados da ICP. No entanto, como esse não era o objetivo de nosso trabalho, esses dados não foram detalhadamente revisados. Existe um artigo recentemente publicado(77 Choi IJ, Lim S, Choo EH, Hwang BH, Kim CJ, Park MW, et al. Impact of intravascular ultrasound on long-term clinical outcomes in patients with acute myocardial infarction. JACC Interv. 2021;14(22):2431-43.) baseado em um registro multicêntrico de infarto do miocárdio que corrobora a utilização de IVUS para reduzir eventos cardiovasculares major na SCA. Porém, a mortalidade (o desfecho avaliado em nosso estudo) não foi reduzida. Em resumo, as evidências para reforçar o uso rotineiro de IVUS e OCT para orientar a ICP primária em pacientes sobreviventes à PC ou SCA são muito escassas, mas certamente é uma área importante de pesquisa e um campo sobre o qual provavelmente aprenderemos mais nos próximos anos com os ensaios atualmente em curso.

É importante notar que tanto a fisiologia como a imagem intracoronariana requerem a cateterização dos vasos coronários, e a OCT requer contraste adicional. Ambas acrescentam mais complexidade, risco e duração em um cenário clínico já instável, e não se pode descartar que tais desvantagens possam afetar negativamente o prognóstico. A simplicidade e o risco muito baixo da angiografia coronária podem ser opções melhores do que o aumento de modalidades mais invasivas, uma vez que todos nós (especialmente os cardiologistas de intervenção) muitas vezes aprendemos da maneira mais difícil.

Em segundo lugar, quanto à definição da causa da PC, como mencionado em nosso trabalho,(11 Rigueira J, Aguiar-Ricardo I, Carrilho-Ferreira P, Menezes MN, Pereira S, Morais PS, et al. Predictors of coronary artery disease in cardiac arrest survivors: Coronary angiography for everyone? A single-center retrospective analysis. Rev Bras Ter Intensiva. 2021;33(2):251-60.) a etiologia da PC é muitas vezes difícil de ser determinada em um ambiente de emergência, pois a história clínica pode não estar disponível, e os resultados dos exames são difíceis de interpretar, com alterações do eletrocardiograma, ecocardiograma e troponina nem sempre causadas pela DAC. Em nossa amostra, apenas a elevação do segmento ST e a presença de alterações da contractilidade segmentar (WMA) foram preditores independentes de DAC, e mesmo nesses subgrupos de pacientes, 12% dos pacientes com elevação do segmento ST e 7% com WMA não tiveram DAC significativa. Portanto, concordamos que são necessários melhores métodos para diagnosticar a causa da PC, para melhorar a abordagem a esses pacientes e selecionar as terapias mais apropriadas, evitando ao mesmo tempo terapias desnecessárias. O desenvolvimento de protocolos mais rápidos de ressonância magnética cardíaca (RMC) e de equipamentos de suporte de órgãos compatíveis com RMC que possam ser aplicados a pacientes instáveis, como a utilização de sequências de mapping que permitam a caracterização miocárdica sem gadolínio, pode contribuir, no futuro, para uma melhor abordagem diagnóstica neste cenário. Essas técnicas, no entanto, não estão ainda amplamente disponíveis neste contexto clínico.

Em terceiro lugar, em relação ao impacto prognóstico da angiografia coronária e da ICP em pacientes sobreviventes à PC, como mencionado em nosso artigo(11 Rigueira J, Aguiar-Ricardo I, Carrilho-Ferreira P, Menezes MN, Pereira S, Morais PS, et al. Predictors of coronary artery disease in cardiac arrest survivors: Coronary angiography for everyone? A single-center retrospective analysis. Rev Bras Ter Intensiva. 2021;33(2):251-60.) e na literatura, a maioria dos pacientes morre de complicações neurológicas após a PC. Portanto, o desenvolvimento e a implementação precoce de medidas neuroprotetoras é provavelmente o fator com maior impacto na sobrevida desses pacientes. Nossos resultados estão de acordo com esse conceito e os de ensaios recentes, como o COACT(88 Lemkes JS, Janssens GN, van der Hoeven NW, Jewbali LS, Dubois EA, Meuwissen M, et al. Coronary angiography after cardiac arrest without ST-segment elevation. N Engl J Med. 2019;380(15):1397-407.) e TOMAHAWK,(99 Desch S, Freund A, Akin I, Behnes M, Preusch MR, Zelniker TA, Skurk C, Landmesser U, Graf T, Eitel I, Fuernau G, Haake H, Nordbeck P, Hammer F, Felix SB, Hassager C, Engstrøm T, Fichtlscherer S, Ledwoch J, Lenk K, Joner M, Steiner S, Liebetrau C, Voigt I, Zeymer U, Brand M, Schmitz R, Horstkotte J, Jacobshagen C, Pöss J, Abdel-Wahab M, Lurz P, Jobs A, de Waha-Thiele S, Olbrich D, Sandig F, König IR, Brett S, Vens M, Klinge K, Thiele H; TOMAHAWK Investigators. Angiography after outof-hospital cardiac arrest without ST-segment elevation. N Engl J Med. 2021;385(27):2544-53.) em que a angiografia imediata não proporcionou nenhum benefício no risco de morte por qualquer causa a 30 dias. Nosso estudo é uma análise retrospectiva com todas as limitações associadas a esse desenho. Concordamos que a definição da causa de morte teria sido interessante e útil. No entanto, esse não foi o objetivo do estudo, e às vezes é difícil inferir a causa da morte com base em registros clínicos, pois esses pacientes muitas vezes têm internamentos longos com múltiplas complicações e intercorrências. A morte por todas as causas foi, portanto, o único desfecho totalmente objetivo que poderíamos ter selecionado para reduzir o risco de um viés significativo associado à análise retrospectiva.

Em conclusão, concordamos que são necessárias ferramentas de diagnóstico melhores e mais confiáveis para estabelecer a causa da PC, a fim de selecionar os pacientes que mais se beneficiarão da angiografia coronária, identificando quais lesões coronárias podem beneficiar da revascularização, levando a melhorias prognósticas em pacientes tão desafiadores. Esperamos que nosso estudo do mundo real tenha assim sido uma contribuição útil para esta temática.

REFERÊNCIAS

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    Rigueira J, Aguiar-Ricardo I, Carrilho-Ferreira P, Menezes MN, Pereira S, Morais PS, et al. Predictors of coronary artery disease in cardiac arrest survivors: Coronary angiography for everyone? A single-center retrospective analysis. Rev Bras Ter Intensiva. 2021;33(2):251-60.
  • 2
    Lawton JS, Tamis-Holland JE, Bangalore S, Bates ER, Beckie TM, Bischoff JM, et al. 2021 ACC/AHA/SCAI Guideline for Coronary Artery Revascularization: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2022;145(3):e18-e114.
  • 3
    Götberg M, Christiansen EH, Gudmundsdottir IJ, Sandhall L, Danielewicz M, Jakobsen L, et al. Instantaneous wave-free ratio versus fractional flow reserve to guide PCI. N Engl J Med. 2017;376(19):1813-23.
  • 4
    Niccoli G, Indolfi C, Davies JE. Evaluation of intermediate coronary stenoses in acute coronary syndromes using pressure guidewire. Open Heart. 2017;4(2):e000431.
  • 5
    Puymirat E, Cayla G, Simon T, Steg PG, Montalescot G, Durand-Zaleski I, le Bras A, Gallet R, Khalife K, Morelle JF, Motreff P, Lemesle G, Dillinger JG, Lhermusier T, Silvain J, Roule V, Labèque JN, Rangé G, Ducrocq G, Cottin Y, Blanchard D, Charles Nelson A, De Bruyne B, Chatellier G, Danchin N; FLOWER-MI Study Investigators. Multivessel PCI guided by FFR or angiography for myocardial infarction. N Engl J Med. 2021;385(4):297-308.
  • 6
    Pechmajou L, Marijon E, Varenne O, Dumas F, Beganton F, Jost D, Lamhaut L, Lecarpentier E, Loeb T, Agostinucci JM, Sideris G, Riant E, Baudinaud P, Hagege A, Bougouin W, Spaulding C, Cariou A, Jouven X, Karam N; ParisSudden Death Expertise Center Investigators. Impact of coronary lesion stability on the benefit of emergent percutaneous coronary intervention after sudden cardiac arrest. Circ Cardiovasc Interv. 2020;13(9):e009181.
  • 7
    Choi IJ, Lim S, Choo EH, Hwang BH, Kim CJ, Park MW, et al. Impact of intravascular ultrasound on long-term clinical outcomes in patients with acute myocardial infarction. JACC Interv. 2021;14(22):2431-43.
  • 8
    Lemkes JS, Janssens GN, van der Hoeven NW, Jewbali LS, Dubois EA, Meuwissen M, et al. Coronary angiography after cardiac arrest without ST-segment elevation. N Engl J Med. 2019;380(15):1397-407.
  • 9
    Desch S, Freund A, Akin I, Behnes M, Preusch MR, Zelniker TA, Skurk C, Landmesser U, Graf T, Eitel I, Fuernau G, Haake H, Nordbeck P, Hammer F, Felix SB, Hassager C, Engstrøm T, Fichtlscherer S, Ledwoch J, Lenk K, Joner M, Steiner S, Liebetrau C, Voigt I, Zeymer U, Brand M, Schmitz R, Horstkotte J, Jacobshagen C, Pöss J, Abdel-Wahab M, Lurz P, Jobs A, de Waha-Thiele S, Olbrich D, Sandig F, König IR, Brett S, Vens M, Klinge K, Thiele H; TOMAHAWK Investigators. Angiography after outof-hospital cardiac arrest without ST-segment elevation. N Engl J Med. 2021;385(27):2544-53.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2022
  • Aceito
    30 Maio 2022
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