Acessibilidade / Reportar erro

Endocardite pneumocócica em válvula aórtica nativa - apresentação fulminante

RESUMO

A endocardite pneumocócica é uma entidade rara, cuja incidência se situa entre 1% e 3% dos casos de endocardite de válvula nativa. Esta patologia tem um prognóstico naturalmente adverso, com elevada mortalidade. Relata-se predileção pela válvula aórtica, de forma que é frequente que se apresente com insuficiência cardíaca. Apresentamos o caso de uma paciente do sexo feminino com 60 anos de idade e história pregressa de sinusite, admitida com diagnóstico de pneumonia. Após rápida deterioração, com sinais de choque séptico, ela foi transferida para a unidade de terapia intensiva. O ecocardiograma transesofágico revelou grave refluxo aórtico, devido à presença de vegetações valvares. As hemoculturas foram positivas para Streptococcus pneumoniae. A paciente foi submetida à cirurgia cardíaca e apresentou múltiplas complicações pós-operatórias. Apesar disso, apresentou lenta, porém completa recuperação. A endocardite infecciosa deve ser afastada em caso do surgimento de qualquer suspeita, e a ecocardiografia deve ser realizada precocemente nos pacientes com resposta insuficiente aos vasopressores e inotrópicos. Pacientes com endocardite pneumocócica se beneficiam de uma abordagem agressiva, com realização precoce da intervenção cirúrgica.

Descritores:
Endocardite bacteriana/diagnóstico; Infecções pneumocócicas/diagnóstico; Valva aórtica; Relatos de casos

ABSTRACT

Pneumococcal endocarditis is a rare entity, corresponding to 1 to 3% of native valve endocarditis cases. It has a typically adverse prognosis, with high mortality. There is a reported predilection for the aortic valve; thus, a common presentation is acute left heart failure. We present a case of a 60-year-old woman with a history of sinusitis, who was admitted with the diagnosis of pneumonia. She rapidly deteriorated with signs of septic shock and was transferred to the critical care unit. The transesophageal echocardiogram revealed severe aortic regurgitation due to valve vegetations. Blood cultures were positive for Streptococcus pneumoniae. She underwent cardiac surgery and had multiple postoperative complications. Nonetheless, the patient made a slow and complete recovery. Infectious endocarditis should be ruled out if any suspicion arises, and echocardiography should be performed in an early stage in patients with poor response to vasopressors and inotropes. Patients with pneumococcal endocarditis benefit from an aggressive approach, with performance of early surgery.

Keywords:
Endocarditis, bacterial/diagnosis; Pneumococcal infections/diagnosis; Aortic valve; Case reports

INTRODUÇÃO

A endocardite pneumocócica é um tipo raro de endocardite, e representa entre 1 e 3% dos casos de endocardite de válvula nativa.(11 Aronin SI, Mukherjee SK, West JC, Cooney EL. Review of pneumococcal endocarditis in adults in the penicillin era. Clin Infect Dis. 1998;26(1):165-71.,22 Bor DH, Woolhandler S, Nardin R, Brusch J, Himmelstein DU. Infective endocarditis in the U.S., 1998-2009: a nationwide study. PLoS One. 2013;8(3):e60033.) Ela tem um prognóstico tipicamente adverso, com elevada taxa de mortalidade. A válvula aórtica é o local mais comumente afetado. Apresentamos o caso de uma paciente admitida inicialmente ao nosso hospital com o diagnóstico de pneumonia adquirida na comunidade, mas cuja rápida deterioração nos levou a realizar uma ecocardiografia, que revelou o verdadeiro diagnóstico.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino com 60 anos de idade e história pregressa de sinusite crônica apresentou-se ao pronto-socorro com história de 12 dias de vômitos pós-prandiais e dispneia, tosse seca, dor epigástrica e mal-estar há 1 dia. Ao exame, apresentava-se febril (38,5ºC), taquicárdica (110bpm), ritmo sinusal ao eletrocardiograma e pressão arterial normal. A ausculta torácica revelou crepitações na base do pulmão direito e ausência de sopros cardíacos. Ela apresentava parâmetros inflamatórios elevados e leve hipoxemia. A radiografia do tórax realizada na admissão apresentava congestão hilar à direita (Figura 1A). A paciente foi admitida à enfermaria de clínica médica com diagnóstico de pneumonia adquirida na comunidade. Foram coletadas amostras para hemocultura, e ela foi medicada empiricamente com ceftriaxona e azitromicina. No decorrer dos 2 dias seguintes ela teve uma rápida deterioração, com piora progressiva dos parâmetros clínicos, analíticos (Tabela 1) e radiológicos (Figuras 1A a 1C). Por atender aos critérios de choque séptico e de síndrome da angústia respiratória aguda, a paciente foi transferida para a unidade de terapia intensiva, onde foram iniciados ventilação mecânica, e suporte com vasopressores e inotrópicos. Em razão da ausência de melhora, foi realizado, no dia seguinte, um ecocardiograma transtorácico, que, a despeito da má qualidade da imagem, mostrou um importante refluxo aórtico (Figura 1D). O ecocardiograma transesofágico confirmou a grave regurgitação aórtica e a presença de duas vegetações, aderentes às cúspides coronária direita e não coronária da válvula aórtica (Figura 1E). Iniciou-se terapia empírica com uso de vancomicina e gentamicina ajustadas ao peso. As hemoculturas foram positivas para Streptococcus pneumoniae sensível a ambos os antibióticos; as culturas do aspirado brônquico foram negativas. Apesar de 6 dias de tratamento direcionado, a paciente permanecia febril e dependente de suporte inotrópico, sendo transferida ao centro cirúrgico cardiológico, onde se identificou grande destruição valvar. A válvula aórtica foi removida e substituída por uma prótese valvar de tecido, sendo o antibiótico alterado para penicilina por via endovenosa. O período pós-operatório foi complicado por choque cardiogênico (com índice cardíaco inicial de 0,9L/min/m2 e fração de ejeção ventricular esquerda estimada em 20% devido à hipocinesia difusa, com boa resposta ao suporte inotrópico), fibrilação atrial com rápida resposta ventricular, lesão renal aguda (com necessidade de hemofiltração venovenosa contínua) e pneumonia associada ao ventilador (tendo Morganella morganii como agente causal). Embora a recuperação da paciente tenha sido lenta, foi completa, e ela recebeu alta hospitalar 40 dias após a admissão. Suas condições clínica e funcional foram consideradas excelentes na reavaliação de seguimento, após 3 meses. Seu ecocardiograma mais recente mostrou função ventricular sistólica esquerda normal e funcionamento normal da válvula prostética. Mais tarde, foi administrada vacina pneumocócica.

Figura 1
(A a C) Evolução radiográfica. Piora progressiva do edema intersticial pulmonar. (D) Ecocardiograma transtorácico. Grave refluxo aórtico medido por Doppler contínuo. (E) Ecocardiograma transesofágico. Vegetações na válvula aórtica nas cúspides não coronária e coronária direita.

Tabela 1
Evolução dos parâmetros analíticos durante a hospitalização

DISCUSSÃO

Na era da penicilina, o S. pneumoniae é um microrganismo raro como causa de endocardite. Esse agente tem sido associado a abuso de álcool, senilidade e cardiopatia valvar preexistente,(11 Aronin SI, Mukherjee SK, West JC, Cooney EL. Review of pneumococcal endocarditis in adults in the penicillin era. Clin Infect Dis. 1998;26(1):165-71.) apresentando-se concomitantemente à pneumonia e à meningite, como parte da síndrome de Austrian.(33 Ugolini V, Pacifico A, Smitherman TC, Mackowiak PA. Pneumococcal endocarditis update: analysis of 10 cases diagnosed between 1974 and 1984. Am Heart J. 1986;112(4):813-9.) Nesse caso, essas condições não parecem ter contribuído para a ocorrência de endocardite pneumocócica. A bacteremia pneumocócica é comumente consequência da infecção pulmonar, mas raramente aparece em decorrência de otite média e sinusite (13,7%).(11 Aronin SI, Mukherjee SK, West JC, Cooney EL. Review of pneumococcal endocarditis in adults in the penicillin era. Clin Infect Dis. 1998;26(1):165-71.) Em razão de sua apresentação tipicamente aguda, raramente se evidenciam sinais cutâneos da endocardite infecciosa (stigmata).(11 Aronin SI, Mukherjee SK, West JC, Cooney EL. Review of pneumococcal endocarditis in adults in the penicillin era. Clin Infect Dis. 1998;26(1):165-71.) Conforme revisões prévias, existe uma predileção da endocardite pneumocócica pela válvula aórtica (74,4%); assim, é comum que se apresente como insuficiência cardíaca aguda,(11 Aronin SI, Mukherjee SK, West JC, Cooney EL. Review of pneumococcal endocarditis in adults in the penicillin era. Clin Infect Dis. 1998;26(1):165-71.,44 Lefort A, Mainardi JL, Selton-Suty C, Casassus P, Guillevin L, Lortholary O. Streptococcus pneumoniae endocarditis in adults. A multicenter study in France in the era of penicillin resistance (1991-1998). The Pneumococcal Endocarditis Study Group. Medicine (Baltimore). 2000;79(5):327-37.) associada com taxas mais elevadas de mortalidade.(55 Martínez E, Miró JM, Almirante B, Aguado JM, Fernandez-Viladrich P, Fernandez-Guerrero ML, Villanueva JL, Dronda F, Moreno-Torrico A, Montejo M, Llinares P, Gatell JM; Spanish Pneumococcal Endocarditis Study Group. Effect of penicillin resistance of Streptococcus pneumoniae on the presentation, prognosis, and treatment of pneumococcal endocarditis in adults. Clin Infect Dis. 2002;35(2):130-9.) Nestes pacientes, é essencial que se busquem opções terapêuticas agressivas. Uma abordagem combinada clínica e cirúrgica parece apresentar os melhores desfechos.(55 Martínez E, Miró JM, Almirante B, Aguado JM, Fernandez-Viladrich P, Fernandez-Guerrero ML, Villanueva JL, Dronda F, Moreno-Torrico A, Montejo M, Llinares P, Gatell JM; Spanish Pneumococcal Endocarditis Study Group. Effect of penicillin resistance of Streptococcus pneumoniae on the presentation, prognosis, and treatment of pneumococcal endocarditis in adults. Clin Infect Dis. 2002;35(2):130-9.)

CONCLUSÃO

Este caso representa o tratamento bem-sucedido de um raro caso de endocardite pneumocócica agressiva e demonstra como ela pode imitar outras doenças, como a pneumonia. É essencial que se mantenha um elevado grau de suspeita para facilitar a realização precoce de ecocardiografia e a opção pela melhor estratégia terapêutica. Pacientes com endocardite pneumocócica se beneficiam de abordagens agressivas, com a realização precoce do procedimento cirúrgico.

  • Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

REFERÊNCIAS

  • 1
    Aronin SI, Mukherjee SK, West JC, Cooney EL. Review of pneumococcal endocarditis in adults in the penicillin era. Clin Infect Dis. 1998;26(1):165-71.
  • 2
    Bor DH, Woolhandler S, Nardin R, Brusch J, Himmelstein DU. Infective endocarditis in the U.S., 1998-2009: a nationwide study. PLoS One. 2013;8(3):e60033.
  • 3
    Ugolini V, Pacifico A, Smitherman TC, Mackowiak PA. Pneumococcal endocarditis update: analysis of 10 cases diagnosed between 1974 and 1984. Am Heart J. 1986;112(4):813-9.
  • 4
    Lefort A, Mainardi JL, Selton-Suty C, Casassus P, Guillevin L, Lortholary O. Streptococcus pneumoniae endocarditis in adults. A multicenter study in France in the era of penicillin resistance (1991-1998). The Pneumococcal Endocarditis Study Group. Medicine (Baltimore). 2000;79(5):327-37.
  • 5
    Martínez E, Miró JM, Almirante B, Aguado JM, Fernandez-Viladrich P, Fernandez-Guerrero ML, Villanueva JL, Dronda F, Moreno-Torrico A, Montejo M, Llinares P, Gatell JM; Spanish Pneumococcal Endocarditis Study Group. Effect of penicillin resistance of Streptococcus pneumoniae on the presentation, prognosis, and treatment of pneumococcal endocarditis in adults. Clin Infect Dis. 2002;35(2):130-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2015
  • Aceito
    09 Dez 2015
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br