Acessibilidade / Reportar erro

O uso de hipotermia e desfechos após ressuscitação cardiopulmonar em 2014

O PASSADO

Identificou-se, em estudos realizados em animais, que o desfecho e o dano histopatológico ao tecido cerebral, devidos à hipoxia após parada cardíaca, são reduzidos pelo uso de hipotermia terapêutica leve.(11. Safar P, Xiao F, Radovsky A, Tanigawa K, Ebmeyer U, Bircher N, et al. Improved cerebral resuscitation from cardiac arrest in dogs with mild hypothermia plus blood flow promotion. Stroke. 1996;27(1):105-13.,22. Takata K, Takeda Y, Sato T, Nakatsuka H, Yokoyama M, Morita K. Effects of hypothermia for a short period on histologic outcome and extracellular glutamate concentration during and after cardiac arrest in rats. Crit Care Med. 2005;33(6):1340-5.)

Os estudos clínicos principais realizados em 2002 também identificaram que hipotermia terapêutica leve - entre 32 ºC e 34 ºC - por 12 a 24 horas tem um efeito neuroprotetor no tratamento da síndrome após parada cardíaca.(33. Hypothermia after Cardiac Arrest Study Group. Mild therapeutic hypothermia to improve the neurologic outcome after cardiac arrest. N Engl J Med. 2002;346(8):549-56. Erratum in N Engl J Med. 2002;346(22):1756.

4. Bernard SA, Gray TW, Buist MD, Jones BM, Silvester W, Gutteridge G, et al. Treatment of comatose survivors of out-of-hospital cardiac arrest with induced hypothermia. N Engl J Med. 2002;346(8):557-63.
-55. Hachimi-Idrissi S, Corne L, Ebinger G, Michotte Y, Huyghens L. Mild hypothermia induced by a helmet device: a clinical feasibility study. Resuscitation. 2001;51(3):275-81.) A última atualização das diretrizes internacionais para ressuscitação, ralizada em 2010, enfatizou os benefícios da hipotermia para quase todos os pacientes após parada cardíaca que continuem comatosos depois de retornar da circulação espontânea (ROSC, sigla do inglês return of spontaneous circulation).(66. Nolan JP, Hazinski MF, Billi JE, Boettiger BW, Bossaert L, de Caen AR, et al. Part 1: Executive summary: 2010 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science With Treatment Recommendations. Resuscitation. 2010;81 Suppl 1:e1-25.) Muitos dados foram publicados, demonstrando benefício significativo para o desfecho neurológico na prática clínica também em grandes estudos.

Em nosso próprio centro, após a implantação de hipotermia terapêutica leve, conseguimos reduzir a taxa de pacientes em coma persistente após parada cardíaca para uma impressionante marca de 50%, duplicando, assim, o grupo de pacientes que recebem alta com desfechos satisfatórios. Contudo, evidentemente esses resultados são, hoje em dia, devidos a mais do que apenas o controle da temperatura, pois sabemos que um conjunto terapêutico completo, que inclua realização precoce de angiografia invasiva, ventilação otimizada, pressão arterial média, controle glicêmico, monitoramento da diurese e prevenção de acidose grave, aumentará o número de pacientes com desfecho satisfatório.(77. Sunde K, Pytte M, Jacobsen D, Mangschau A, Jensen LP, Smedsrud C, et al. Implementation of a standardised treatment protocol for post resuscitation care after out-of-hospital cardiac arrest. Resuscitation. 2007;73(1):29-39.,88. Polderman KH. Hypothermia and neurological outcome after cardiac arrest: state of the art. Eur J Anaesthesiol Suppl. 2008;42:23-30. Review.)

Atendendo às recomendações dos recentes consensos publicados por cinco diferentes sociedades médicas de terapia intensiva, atualmente nos referimos a "hipotermia terapêutica" (HT, termo do inglês targeted temperature management), em vez de hipotermia.(99. Nunnally ME, Jaeschke R, Bellingan GJ, Lacroix J, Mourvillier B, Rodriguez-Vega GM, et al. Targeted temperature management in critical care: a report and recommendations from five professional societies. Crit Care Med. 2011;39(5):1113-25.)

O PRESENTE

A implantação da HT varia amplamente nos diferentes países, ou mesmo nos diferentes hospitais, embora nunca tenham sido relatados, de forma significante, efeitos colaterais graves e com risco à vida pelo uso dessa abordagem terapêutica.(1010. Wolfrum S, Radke PW, Pischon T, Willich SN, Schunkert H, Kurowski V. Mild therapeutic hypothermia after cardiac arrest - a nationwide survey on the implementation of the ILCOR guidelines in German intensive care units. Resuscitation. 2007;72(2):207-13.,1111. Soreide E, Sunde K. Therapeutic hypothermia after out-of hospital cardiac arrest: how to secure worldwide implementation. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21(2):209-15.) Assim, não há razão para que os sobreviventes de parada cardíaca deixem de receber algum tipo de controle da temperatura após parada cardíaca.

Um problema ainda persiste e diz respeito à prática não guiada para retirada do tratamento em pacientes sem sinais ou marcadores confiáveis que possam prever maus resultados com 100% de certeza. Isso pode também influenciar os desfechos em muitos estudos, como uma profecia autorrealizada. No futuro, a implantação deve ser enfatizada em todo o mundo, assim como a necessidade de mais estudos para obtenção do conhecimento em relação às dificuldades prognósticas.

Permanecem, contudo, em aberto três questões principais: (1) qual subgrupo se beneficia mais da HT?; (2) por quanto tempo manter o resfriamento?; e (3) qual deve ser a temperatura alvo ideal? Estudo sobre HT recentemente publicado por Nielsen et al. no New England Journal of Medicine comparou dois alvos de temperatura diferentes (33º e 36 ºC) e avaliou a mortalidade geral e desfecho.(1212. Nielsen N, Wetterslev J, Cronberg T, Erlinge D, Gasche Y, Hassager C, Horn J, Hovdenes J, Kjaergaard J, Kuiper M, Pellis T, Stammet P, Wanscher M, Wise MP, Åneman A, Al-Subaie N, Boesgaard S, Bro-Jeppesen J, Brunetti I, Bugge JF, Hingston CD, Juffermans NP, Koopmans M, Køber L, Langørgen J, Lilja G, Møller JE, Rundgren M, Rylander C, Smid O, Werer C, Winkel P, Friberg H; TTM Trial Investigators. Targeted temperature management at 33ºC versus 36ºC after cardiac arrest. N Engl J Med. 2013;369(23):2197-206.) Esse estudo multicêntico randomizado avaliou 939 pacientes em 12 países (n=473 com 33 ºC e n=466 com 36 ºC). O resultado principal foi a ausência de diferença significante entre ambos os alvos de temperatura quanto à mortalidade e ao desfecho neurológico; a taxa geral de mortalidade foi respectivamente de 50% no grupo com 33 ºC e 48% no grupo com 36 ºC. Ao interpretar equivocadamente esses resultados, alguns hospitais deixaram de usar a HT em todos os pacientes, ou sentiram-se justificados para não implantarem a HT quando já não a realizavam antes. Uma questão importante é se esses resultados podem ou não ser extrapolados para todo o mundo. Por que? A maioria dos participantes estava localizados na Escandinávia, onde o Suporte Básico de Vida (SBV) é parte da formação educacional regular, resultando em uma altíssima taxa de 73% de ressuscitação cardiopulmonar (RCP) realizada por circunstantes. Um outro possível fator de confusão pode ser o prolongado tempo exigido pelo grupo com 33 ºC para obtenção da temperatura alvo (>8 horas). Os resultados do estudo de HT são, na verdade, neutros. Não há evidência para cessar completamente a HT e nenhuma dúvida de que a hipertermia precisa ser evitada em qualquer momento após uma parada cardíaca. Por um lado, parece problemático aplicar os resultados do estudo de HT a todos os pacientes de parada cardíaca, pois alguns grupos de pacientes podem ser diferentes (por exemplo, apresentar um tempo prolongado para retorno da circulação) e pode haver demora para iniciar SBV ou até ausência de realização de SBV por circunstantes. Por exemplo, na Alemanha, a taxa de SBV realizado por circunstantes é de 16%.(1313. Gräsner JT, Wnent J, Seewald S, Neukamm J, Fischer M. [First aid and trauma management: results from the German resuscitation registry]. Anasthesiol Intensivmed Notfallmed Schmerzther. 2012;47(11-12):724-32. German.) É bem sabido que a RCP precoce é um fator significativo de previsão de desfecho favorável.(1414. Adielsson A, Hollenberg J, Karlsson T, Lindqvist J, Lundin S, Silfverstolpe J, et al. Increase in survival and bystander CPR in out-of-hospital shockable arrhythmia: bystander CPR and female gender are predictors of improved outcome. Experiences from Sweden in an 18-year perspective. Heart. 2011;97:(17)1391-6.) Por outro lado, os resultados podem abrir a possibilidade de resfriar a 36 ºC pacientes que não tolerariam 33 ºC por diversos motivos (por exemplo, instabilidade hemodinâmica ou sangramento grave). Entretanto, a distância entre 36 ºC e hipertermia (>37 ºC) é pequena e, portanto, o controle da temperatura deve ser estrito e facilitado por um dispositivo computadorizado.

Uma conclusão não pode, entretanto, ser obtida a partir dos dados do estudo de HT, e precisamos perguntar se nossas próprias coortes de pacientes após parada cardíaca são ou não comparáveis às analisadas no estudo - além do que ainda deve ser respondida a questão a respeito de qual a melhor temperatura alvo ou individual. A Sociedade Alemã de Terapia Intensiva e Medicina de Emergência publicou recentemente um consenso sobre os resultados do estudo de HT com a forte recomendação de que se continue utilizando a faixa de 32 ºC a 34 ºC como uma temperatura alvo confiável. Esse fato também foi apoiado pelo atual consenso do International Liaison Committee on Resuscitation (ILCOR), que recomenda seguir as diretrizes ainda válidas para tratamento após parada cardíaca.(1515. International Liaison Committee - ILCOR. ILCOR update: Targeted Temperature Management. Targeted temperature management following cardiac arrest: An update. ILCOR; 2013. Available from: http://www.ilcor.org/data/TTM-ILCOR-update-Dec-2013.pdf
http://www.ilcor.org/data/TTM-ILCOR-upda...
)

O FUTURO

Tendo em mente esses fatos, as questões mais interessantes para o futuro se referem a encontrar uma forma de caracterizar a gravidade do dano cerebral hipoxêmico para promover o ajuste da HT em termos de profunidade e duração.

Também estará além de qualquer dúvida que a implantação da HT precisa ser incrementada, apesar das questões ainda em aberto. Além disso, um promissor novo campo de indicação pode ser representado pelos pacientes com infarto do miocárdio com elevação de ST, para tratamento de lesões de reperfusão miocárdica.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Safar P, Xiao F, Radovsky A, Tanigawa K, Ebmeyer U, Bircher N, et al. Improved cerebral resuscitation from cardiac arrest in dogs with mild hypothermia plus blood flow promotion. Stroke. 1996;27(1):105-13.
  • 2
    Takata K, Takeda Y, Sato T, Nakatsuka H, Yokoyama M, Morita K. Effects of hypothermia for a short period on histologic outcome and extracellular glutamate concentration during and after cardiac arrest in rats. Crit Care Med. 2005;33(6):1340-5.
  • 3
    Hypothermia after Cardiac Arrest Study Group. Mild therapeutic hypothermia to improve the neurologic outcome after cardiac arrest. N Engl J Med. 2002;346(8):549-56. Erratum in N Engl J Med. 2002;346(22):1756.
  • 4
    Bernard SA, Gray TW, Buist MD, Jones BM, Silvester W, Gutteridge G, et al. Treatment of comatose survivors of out-of-hospital cardiac arrest with induced hypothermia. N Engl J Med. 2002;346(8):557-63.
  • 5
    Hachimi-Idrissi S, Corne L, Ebinger G, Michotte Y, Huyghens L. Mild hypothermia induced by a helmet device: a clinical feasibility study. Resuscitation. 2001;51(3):275-81.
  • 6
    Nolan JP, Hazinski MF, Billi JE, Boettiger BW, Bossaert L, de Caen AR, et al. Part 1: Executive summary: 2010 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science With Treatment Recommendations. Resuscitation. 2010;81 Suppl 1:e1-25.
  • 7
    Sunde K, Pytte M, Jacobsen D, Mangschau A, Jensen LP, Smedsrud C, et al. Implementation of a standardised treatment protocol for post resuscitation care after out-of-hospital cardiac arrest. Resuscitation. 2007;73(1):29-39.
  • 8
    Polderman KH. Hypothermia and neurological outcome after cardiac arrest: state of the art. Eur J Anaesthesiol Suppl. 2008;42:23-30. Review.
  • 9
    Nunnally ME, Jaeschke R, Bellingan GJ, Lacroix J, Mourvillier B, Rodriguez-Vega GM, et al. Targeted temperature management in critical care: a report and recommendations from five professional societies. Crit Care Med. 2011;39(5):1113-25.
  • 10
    Wolfrum S, Radke PW, Pischon T, Willich SN, Schunkert H, Kurowski V. Mild therapeutic hypothermia after cardiac arrest - a nationwide survey on the implementation of the ILCOR guidelines in German intensive care units. Resuscitation. 2007;72(2):207-13.
  • 11
    Soreide E, Sunde K. Therapeutic hypothermia after out-of hospital cardiac arrest: how to secure worldwide implementation. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21(2):209-15.
  • 12
    Nielsen N, Wetterslev J, Cronberg T, Erlinge D, Gasche Y, Hassager C, Horn J, Hovdenes J, Kjaergaard J, Kuiper M, Pellis T, Stammet P, Wanscher M, Wise MP, Åneman A, Al-Subaie N, Boesgaard S, Bro-Jeppesen J, Brunetti I, Bugge JF, Hingston CD, Juffermans NP, Koopmans M, Køber L, Langørgen J, Lilja G, Møller JE, Rundgren M, Rylander C, Smid O, Werer C, Winkel P, Friberg H; TTM Trial Investigators. Targeted temperature management at 33ºC versus 36ºC after cardiac arrest. N Engl J Med. 2013;369(23):2197-206.
  • 13
    Gräsner JT, Wnent J, Seewald S, Neukamm J, Fischer M. [First aid and trauma management: results from the German resuscitation registry]. Anasthesiol Intensivmed Notfallmed Schmerzther. 2012;47(11-12):724-32. German.
  • 14
    Adielsson A, Hollenberg J, Karlsson T, Lindqvist J, Lundin S, Silfverstolpe J, et al. Increase in survival and bystander CPR in out-of-hospital shockable arrhythmia: bystander CPR and female gender are predictors of improved outcome. Experiences from Sweden in an 18-year perspective. Heart. 2011;97:(17)1391-6.
  • 15
    International Liaison Committee - ILCOR. ILCOR update: Targeted Temperature Management. Targeted temperature management following cardiac arrest: An update. ILCOR; 2013. Available from: http://www.ilcor.org/data/TTM-ILCOR-update-Dec-2013.pdf
    » http://www.ilcor.org/data/TTM-ILCOR-update-Dec-2013.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2014
  • Aceito
    26 Mar 2014
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br