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A equipe da unidade de terapia intensiva e a qualidade do cuidado: desafios nos tempos de poucos intensivistas

A necessidade de cuidados intensivos vem crescendo, em parte como resposta a uma população que envelhece com uma maior prevalência de doenças graves, e a avanços em tratamentos médicos de risco mais elevado.( 1Adhikari NK, Fowler RA, Bhagwanjee S, Rubenfeld GD. Critical care and the global burden of critical illness in adults. Lancet. 2010;376(9749):1339-46. , 2Angus DC, Kelley MA, Schmitz RJ, White A, Popovich J Jr; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Caring for the critically ill patient. Current and projected workforce requirements for care of the critically ill and patients with pulmonary disease: can we meet the requirements of an aging population? JAMA. 2000;284(21):2762-70. ) Não são apenas os números de leitos nas unidades de terapia intensiva (UTI) que aumentam,( 3Halpern NA, Pastores SM, Greenstein RJ. Critical care medicine in the United States 1985-2000: an analysis of bed numbers, use, and costs. Crit Care Med. 2004;32(6):1254-9. ) mas as responsabilidades dos especialistas em cuidados críticos ("intensivistas") também vão além da UTI, como membros de equipes de emergências médicas e das equipes hospitalares de cuidados em longo prazo. Assim, a distância entre a necessidade de cuidados críticos e a disponibilidade de intensivistas continua a crescer. É difícil saber quantos exatamente são necessários para atender as crescentes necessidades em cuidados críticos;( 4Halpern NA, Pastores SM, Oropello JM, Kvetan V. Critical care medicine in the United States: addressing the intensivist shortage and image of the specialty. Crit Care Med. 2013;41(12):2754-61. ) no entanto, em 2000, o Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Services (COMPACCS) projetou, para 2020, um défice de 22% em horas de intensivistas, enquanto em 2030 esse défice seria de 35%.( 2Angus DC, Kelley MA, Schmitz RJ, White A, Popovich J Jr; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Caring for the critically ill patient. Current and projected workforce requirements for care of the critically ill and patients with pulmonary disease: can we meet the requirements of an aging population? JAMA. 2000;284(21):2762-70. )

Os desafios desse desequilíbrio trazem a oportunidade para repensar e para refinar a estrutura e os processos envolvidos no provimento de cuidados de UTI, inclusive em termos de equipe.( 5Barnato AE, Kahn JM, Rubenfeld GD, McCauley K, Fontaine D, Frassica JJ, et al. Prioritizing the organization and management of intensive care services in the United States: the PrOMIS Conference. Crit Care Med. 2007;35(4):1003-11. , 6Garland A, Gershengorn HB. Staffing in ICUs: physicians and alternative staffing models. Chest. 2013;143(1):214-21. Review. ) Neste comentário discutiremos as evidências atuais do impacto que os modelos de formação de equipes das UTIs têm nos desfechos dos pacientes, como medida de qualidade do cuidado, e proporemos orientações para mais pesquisas nessa área.

Modelos de formação de equipes médicas em unidades de terapia intensiva

O modelo mais amplamente estudado de formação de equipes médicas em UTI se relaciona ao grau em que os intensivistas estão envolvidos no gerenciamento do paciente. As UTIs de "alta intensidade" são aquelas em que mais pacientes são cuidados por um intensivista em tempo integral ou como consultor, enquanto as UTIs de "baixa intensidade" não têm o envolvimento de um intensivista ou apenas consultas eletivas a intensivistas.( 7Pronovost PJ, Angus DC, Dorman T, Robinson KA, Dremsizov TT, Young TL. Physician staffing patterns and clinical outcomes in critically ill patients: a systematic review. JAMA. 2002;288(17):2151-62. Review. ) Não foram realizados estudos clínicos randomizados comparando UTIs de alta e baixa intensidade, mas há fortes evidências observacionais que sugerem que equipes de alta intensidade se associam a menor mortalidade, e a menos tempo de permanência hospitalar e na UTI.( 7Pronovost PJ, Angus DC, Dorman T, Robinson KA, Dremsizov TT, Young TL. Physician staffing patterns and clinical outcomes in critically ill patients: a systematic review. JAMA. 2002;288(17):2151-62. Review. ) Esse achado foi coerente entre pacientes clínicos e cirúrgicos, hospitais acadêmicos e comunitários, e estudos realizados nos Estados Unidos e em outros países. A conclusão predominantemente obtida desses dados é a de que a capacitação dos intensivistas realmente faz diferença na UTI. Entretanto, é importante notar que nenhum estudo avaliou exatamente quais elementos de um modelo organizacional de alta intensidade são responsáveis pela melhora dos desfechos dos pacientes. Considerando-se as atuais restrições fiscais em cuidados de saúde e as potenciais implicações da contratação de mais intensivistas em termos de custos, muitas UTIs podem não conseguir adotar o modelo de equipes de alta intensidade. Levantamento realizado em 2006 com 393 diretores de UTI nos Estados Unidos revelou que metade das UTIs era de baixa intensidade, 26% eram de alta intensidade, e as demais tinham uma presença intermediária de intensivistas.( 8Angus DC, Shorr AF, White A, Dremsizov TT, Schmitz RJ, Kelley MA; Committee on Manpower for Pulmonary and Critical Care Societies (COMPACCS). Critical care delivery in the United States: distribution of services and compliance with Leapfrog recommendations. Crit Care Med. 2006;34(4):1016-24. )

Se algum grau de exposição a intensivistas é benéfico aos pacientes, então uma maior exposição seria ainda melhor? Essa noção, combinada com uma priorização internacional da segurança do paciente, levou a uma proliferação do modelo com presença noturna de intensivistas, sem uma sólida base de evidência. O maior estudo retrospectivo de coorte até hoje realizado não encontrou qualquer benefício, em termos de mortalidade, da presença de um intensivista durante a noite em UTIs com equipes diurnas de alta intensidade, mas uma redução significante na mortalidade nas UTIs com o modelo diurno de baixa intensidade.( 9Wallace DJ, Angus DC, Barnato AE, Kramer AA, Kahn JM. Nighttime intensivist staffing and mortality among critically ill patients. N Engl J Med. 2012;366(22):2093-101. Erratum in N Engl J Med. 2012;367(9):881. ) Uma UTI acadêmica de alta intensidade realizou o único estudo clínico randomizado sobre a presença noturna de intensivista e também encontrou que isso não acrescentava qualquer benefício em termos de mortalidade, quando comparado à presença de médicos em treinamento com acesso telefônico a um intensivista.( 1010 Kerlin MP, Small DS, Cooney E, Fuchs BD, Bellini LM, Mikkelsen ME, et al. A randomized trial of nighttime physician staffing in an intensive care unit. N Engl J Med. 2013;368(23):2201-9. ) Assim, os dados disponíveis sugerem que uma UTI com equipe diurna pode não precisar também de uma equipe noturna de intensivistas. Ou, talvez, a presença durante a noite de qualquer médico é tão efetiva quanto a de um intensivista. Mais ainda, a presença noturna de um intensivista tem potencialmente implicações significantes em termos de custo, educação e comunicação da equipe, cuja extensão ainda não foi completamente identificada.

Potenciais soluções

Cremos que há três potenciais soluções para atender essa limitação de profissionais: (1) aumentar a disponibilidade de intensivistas, (2) utilizar médicos não intensivistas na UTI, e (3) usar a tecnologia auxiliar, como telemedicina em UTI. Embora provavelmente nenhuma solução isoladamente seja suficiente para cobrir o défice, em conjunto elas podem agir sinergicamente para manter, ou até mesmo melhorar, a qualidade do cuidado fornecido pelos intensivistas.

A expansão da disponibilidade de intensivistas demandaria incrementar o recrutamento, a educação e a retenção de médicos para treinamento. Os que propõem o aumento da força de trabalho de médicos em terapia intensiva têm proposto incrementar a "marca" da especialidade, trabalhando as percepções referentes aos aspectos indesejáveis, em termos de estilo de vida, vias de treinamento e alinhamento de esforços dos programas de treinamento específicos para a área de cuidados críticos, para minimizar a prática atual de transmissão restrita de informações nessa especialidade.( 4Halpern NA, Pastores SM, Oropello JM, Kvetan V. Critical care medicine in the United States: addressing the intensivist shortage and image of the specialty. Crit Care Med. 2013;41(12):2754-61. , 6Garland A, Gershengorn HB. Staffing in ICUs: physicians and alternative staffing models. Chest. 2013;143(1):214-21. Review. )

O uso de mão de obra não intensivista, como médicos do hospital e provedores de prática avançada (do inglês "advance practice providers" - APP), como enfermeiros ou assistentes médicos, oferece as vantagens de maior abundância e menos responsabilidades clínicas concomitantes, em comparação a intensivistas treinados na especialidade. Evidências observacionais sugerem que a mortalidade e o tempo de permanência na UTI e no hospital não são diferentes em modelos de UTI liderados por internistas e intensivistas.( 1111 Wise KR, Akopov VA, Williams BR Jr, Ido MS, Leeper KV Jr, Dressler DD. Hospitalists and intensivists in the medical ICU: a prospective observational study comparing mortality and length of stay between two staffing models. J Hosp Med. 2012;7(3):183-9. ) Do mesmo modo, a integração de APPs nos modelos com equipe diurna de intensivistas parece ser tão eficaz quanto a dos tradicionais modelos de equipes da casa, podendo efetivamente melhorar a qualidade do cuidado, por sua maior adesão às diretrizes de prática clínica.( 1212 Gershengorn HB, Wunsch H, Wahab R, Leaf DE, Brodie D, Li G, et al. Impact of nonphysician staffing on outcomes in a medical ICU. Chest. 2011;139(6):1347-53. , 1313 Kleinpell RM, Ely EW, Grabenkort R. Nurse practitioners and physician assistants in the intensive care unit: an evidence-based review. Crit Care Med. 2008;36(10):2888-97. Review. )

A telemedicina em UTI é uma nova abordagem para permitir que mais pacientes tenham acesso remoto a especialistas em cuidados intensivos, talvez de forma mais econômica. As primeiras evidências dessa nova tecnologia sugerem que ela pode resultar em cuidados de melhor qualidade, com melhores desfechos para os pacientes, embora tais dados ainda sejam um tanto conflitantes.( 1414 Wilcox SR, Bittner EA, Elmer J, Seigel TA, Nguyen NT, Dhillon A, et al. Neuromuscular blocking agent administration for emergent tracheal intubation is associated with decreased prevalence of procedure-related complications. Crit Care Med. 2012;40(6):1808-13. ) Apesar da rápida adoção inicial, o crescimento de novos programas de telemedicina em UTI tem se tornado mais lento em razão de importantes barreiras organizacionais à implementação, como custos iniciais, mínimo reembolso, incertezas quanto à eficácia, e a falta de conhecimento sobre o uso mais eficiente e efetivo dessa tecnologia.( 1515 Kahn JM, Cicero BD, Wallace DJ, Iwashyna TJ. Adoption of ICU telemedicine in the United States. Crit Care Med. 2014;42(2):362-8. )

Não há um modelo universal

A melhor abordagem à formação de equipes de UTI continua incerta, mas, em face do crescimento da necessidade de intensivistas, é evidente que opções alternativas para a formação dessas equipes devem ser compreendidas, otimizadas e implantadas. A pesquisa futura deve entrar nos aspectos específicos das UTIs para definir mais detalhadamente os processos e a aplicação de cada modelo de formação de equipes. Finalmente, à medida que as evidências relativas a cuidados em UTI de menor custo e à utilização apropriada dos leitos evoluem, o modelo ideal para formação equipes de UTI permanecerá como um alvo móvel.

  • Editor responsável: Jorge Ibrain de Figueira Salluh

AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi parcialmente subsidiado pelo National Institutes of Health/National Heart, Lung, and Blood Institute (NIH/NHLBI (K08HL116771, Kerlin e T32 HL098054, Courtright).

REFERÊNCIAS

  • 1
    Adhikari NK, Fowler RA, Bhagwanjee S, Rubenfeld GD. Critical care and the global burden of critical illness in adults. Lancet. 2010;376(9749):1339-46.
  • 2
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    Halpern NA, Pastores SM, Oropello JM, Kvetan V. Critical care medicine in the United States: addressing the intensivist shortage and image of the specialty. Crit Care Med. 2013;41(12):2754-61.
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    Pronovost PJ, Angus DC, Dorman T, Robinson KA, Dremsizov TT, Young TL. Physician staffing patterns and clinical outcomes in critically ill patients: a systematic review. JAMA. 2002;288(17):2151-62. Review.
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    Kleinpell RM, Ely EW, Grabenkort R. Nurse practitioners and physician assistants in the intensive care unit: an evidence-based review. Crit Care Med. 2008;36(10):2888-97. Review.
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    Wilcox SR, Bittner EA, Elmer J, Seigel TA, Nguyen NT, Dhillon A, et al. Neuromuscular blocking agent administration for emergent tracheal intubation is associated with decreased prevalence of procedure-related complications. Crit Care Med. 2012;40(6):1808-13.
  • 15
    Kahn JM, Cicero BD, Wallace DJ, Iwashyna TJ. Adoption of ICU telemedicine in the United States. Crit Care Med. 2014;42(2):362-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2014
  • Aceito
    13 Jun 2014
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